Lúcia Helena Martins Gouvêa
(UFRJ, UVA e UNESA)
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como proposta a apresentação dos resultados dos estudos acerca dos tempos verbais e sua atuação no âmbito discursivo, a partir de textos dos gêneros editorial e opinião colhidos de exemplares dos jornais O Globo, Extra, Jornal do Brasil e O Dia (2003).
Com o objetivo de se investigar o modo pelo qual o emprego dos tempos pode funcionar argumentativamente, adotaram-se alguns critérios de natureza social e lingüística. Levando-se em conta o aspecto social, cotejaram-se textos de jornais destinados às classes privilegiadas quanto ao nível de escolaridade e situação econômica e textos de jornais dirigidos às classes populares. Além disso, procedeu-se ao paralelo O Globo x Extra, de um lado, e Jornal do Brasil x O Dia, de outro, a fim de examinar a conduta discursiva de uma única empresa escrevendo para públicos distintos, como é o caso dos dois primeiros periódicos. Em se tratando do aspecto lingüístico, foram considerados os fatores grupo, variação e discordância temporais.
No que concerne ao embasamento teórico, usaram-se as pesquisas de Weinrich (1968) sobre a estrutura e o funcionamento dos tempos na linguagem, bem como as contribuições de Koch (1993), à teoria do lingüista, no que se refere à sua validade para o português.
EMBASAMENTO TEÓRICO
Segundo Weinrich, a função dos tempos verbais não é a de marcar o tempo (cronológico), mas a de cientificar o ouvinte (ou leitor) quanto à situação comunicativa em que a linguagem se atualiza.
São tantas as situações comunicativas quantas as situações da vida, o que o faz arrolar algumas, como uma conferência científica, um diálogo, ou um relato de uma história, uma novela, enfim. Os dois primeiros tipos constituem situações de comentário, enquanto os segundos, situações de relato. Isso significa que o falante apresenta o mundo, comentando-o ou relatando-o, enquanto o ouvinte o entende como um comentário ou como um relato.
Os tempos verbais têm justamente a função de sinalizar a situação comunicativa e, segundo uma certa afinidade que apresentam com cada uma das duas ordens de situação, dividem-se em dois grupos. Pertencem ao grupo I o presente, o pretérito perfeito composto, o futuro do presente simples e composto, além das locuções. Pertencem ao grupo II o perfeito simples, o imperfeito, o mais-que-perfeito, o futuro do pretérito, bem como as locuções. Destaque-se que se trata dos tempos do indicativo, pois os do subjuntivo são considerados semitempos.
Ao narrar o mundo, o falante emprega a parte da linguagem que está prevista para narrar: os tempos do relato, os do grupo II, que Weinrich chama de tempos do mundo narrado. Trata-se de sinais lingüísticos segundo os quais o conteúdo de uma comunicação tem de ser entendido como um relato. Em todas as outras situações comunicativas, vale dizer, nas em que as manifestações lingüísticas não são de relato, empregam-se os tempos do grupo I, chamados de tempos do mundo comentado.
Os tempos do mundo narrado, quando empregados, instituem o locutor narrador e convidam o destinatário a tornar-se um simples ouvinte, levando-o a assumir uma atitude passiva, de puro relaxamento. Os tempos do mundo comentado, por outro lado, quando usados, sinalizam que o locutor está em tensão porque trata de assuntos que o afetam diretamente. De outra parte, advertem o ouvinte de que ele tem de reagir, de que o discurso exige a sua resposta, verbal ou não-verbal.
Para Weinrich, essa é a função dos tempos verbais, e não a de determinar um momento no Tempo. O lingüista só reconhece algo relacionado com o Tempo no conceito de perspectiva comunicativa. Enquanto o presente constitui o tempo zero do mundo comentado, e os pretéritos perfeito e imperfeito, os tempos zero do relato, os demais tempos, dos dois grupos, constituem as perspectivas retrospectiva e prospectiva em relação ao zero.
Por fim, no que diz respeito ainda à correspondência entre os grupos temporais e as situações comunicativas, o lingüista entende que, se a concordância dos tempos não for observada (o que ocorre com freqüência), introduzindo-se um ou mais tempos do mundo narrado no mundo comentado, ou vice-versa, tem-se o que ele chama de metáfora temporal.
O uso do imperfeito, do perfeito simples (muito raramente) e do condicional, numa situação comentadora, exprime um matiz de validez limitada, ao imprimir, no contexto comentador, uma atitude de relaxamento e de falta de compromisso típica do mundo narrado. Trata-se de matizes que podem exprimir, de um lado, modéstia, discrição, timidez [v.g., Queria perguntarle ... (p. 149)] e, de outro, cortesia, hipótese, atenuação do caráter categórico de uma expressão ou ainda prudência [v.g., le ministre préparerait une conferénce de presse (p. 144)].
Os tempos do mundo comentado, de outra parte, dilatam a validez do relato ou insistem sobre ela, ao levar, consigo, algo de sua tensão, compromisso e seriedade. É o que ocorre quando, num contexto de relato, usa-se o presente histórico, narrando-se como se se comentasse.
No português, a teoria de Weinrich também se aplica, não cobrindo apenas um fato lingüístico, segundo Koch: o pretérito perfeito simples apresenta uma freqüência elevada tanto no relato quanto no comentário, o que não ocorre no francês.
Em face do problema, Koch adota a seguinte conduta: quando o perfeito simples co-ocorre com tempos do mundo comentado em períodos distintos, têm-se momentos narrativos dentro do comentário, e não uma metáfora temporal. É o caso da introdução de um relato, à guisa de argumento, para defender uma tese que aparece posteriormente, ou da introdução de uma tese (ou comentário), acrescentando-se, a seguir, um argumento em forma de relato. Quando, porém, o perfeito simples co-ocorre com tempos do comentário dentro de um mesmo período, o que acontece freqüentemente no português, trata-se de um tempo do mundo comentado. Vale dizer, ocorre uma neutralização entre duas formas de perfeito simples: a que constitui o tempo zero do mundo narrado e a que representa a perspectiva retrospectiva em relação ao tempo zero do mundo comentado.
Tomando-se como apoio a concepção dos lingüistas, segue-se a análise dos textos.
O CORPUS
No que se refere aos fatores (grupo, variação e discordância temporais) estabelecidos para a análise do corpus, obtiveram-se os seguintes resultados.
Em se tratando do fator grupo temporal, formulou-se a hipótese de que, em todos os textos, predominariam os tempos do mundo comentado. A formulação da hipótese baseou-se no fato de o corpus constituir-se de textos dos gêneros editorial e opinião, portanto textos comentadores, o que implica o emprego dos tempos do grupo I, segundo a teoria de Weinrich.
A validade da teoria do lingüista foi constatada, mas não em 100% dos casos, significando que a hipótese não se confirmou completamente. Dentre os 64 textos examinados, 6 apresentaram um percentual maior de tempos do grupo II, isto é, de tempos do mundo narrado. Isso se deu em 1 editorial do O Globo (TC: 41%; TR: 58%)[1], em 2 editoriais do Jornal do Brasil (TC: 47,5%; TR: 52,5% - TC: 43,2%; TR: 56,8%) e em 3 textos do gênero opinião do Jornal do Brasil (TC:20,4%; TR: 79,6% - TC: 42,2%; TR: 57,8% - TC: 34,5%; TR: 65,5%).
A explicação para o predomínio de tempos do relato em textos em que se esperava a predominância dos tempos do comentário está no campo discursivo. Trata-se da adoção de uma outra estratégia argumentativa. Em vez de a argumentação se desenvolver preponderantemente por meio dos tempos comentadores, o que significa ficar no nível das idéias, dos raciocínios, passa a ser construída predominantemente por intermédio dos tempos narradores, o que quer dizer que passa para o âmbito dos fatos e do matiz significativo.
A discordância dos tempos, como destaca Weinrich, exprime um matiz de validez limitada (metáfora temporal) e, como assinala Koch, diz respeito, às vezes, a momentos narrativos dentro do comentário. Para que serve, porém, o matiz de validez limitada senão para amenizar a dureza ou colorir o inexpressivo? Para que serve o relato de fatos senão para comprovar uma opinião? O predomínio dos tempos do relato está a serviço da argumentação. É por intermédio dos tempos narradores, nas metáforas temporais, que se atinge mais facilmente a subjetividade do destinatário. É por meio dos tempos narradores, nos momentos narrativos, que se alcança com mais facilidade a razão do destinatário.
Confira-se um dos argumentos utilizados por um articulista, para defender a tese de que “o expediente de jogar a carga tributária nas costas dos contribuintes é uma jogada velha”:
(1) Felipe II, no período de 1555-1566, usou e abusou dos impostos para financiar as tropas espanholas estacionadas nas 17 províncias dos Países Baixos, que herdara de Carlos XV. (Antônio Ermírio de Morais. A história se repete. Jornal do Brasil, 31/08/2003)
Como se pode observar no recorte, o pretérito perfeito e o mais-que-perfeito representam momentos narrativos dentro do comentário, marcando a apresentação de fatos para a defesa da tese.
Vejam-se outros argumentos, agora de um editorialista, usados a fim de defender a tese de que “o Brasil deve negociar um novo acordo com o FMI”:
(2) No ano passado, o acordo com o FMI, nas condições obtidas, significou grande vitória do recém-eleito presidente Lula. As exigências nada tiveram de anormais e o próprio governo tratou de fixar alto padrão de superávit fiscal. Um novo acordo com o Fundo surtiria o mesmo efeito. (Blindagem útil. Jornal do Brasil, 28/09/03)
Percebe-se, neste caso, o emprego do pretérito perfeito na avaliação e apresentação de fatos, e, por último, o uso do futuro do pretérito na profecia de resultados. Passou-se do campo da certeza para o da hipótese. O condicional, ao limitar a validez do argumento (metáfora temporal), tornou-o menos categórico do que se tivesse sido apresentado por meio do futuro do presente, e a conduta de fugir à certeza funciona como uma estratégia argumentativa, à semelhança da estratégia em que se constitui o processo da concessão (DUCROT, 1990). Em outras palavras, o editorialista, ao dar ao último argumento um caráter hipotético, diz, implicitamente: Eu não sou dono da verdade, e o imponderável existe, mas creio que um novo acordo surtiria o mesmo efeito.
No que diz respeito ao fator variação temporal, formulou-se a hipótese de que os textos do O Globo e do Jornal do Brasil (jornais voltados para as classes A e B) apresentariam uma variação maior entre os tempos dos dois grupos do que os textos do Extra e do O Dia (jornais destinados às classes C e D). Em outros termos, acreditava-se que os textos dos dois primeiros jornais apresentariam um percentual maior de tempos do mundo narrado do que o percentual dos textos dos outros dois.
Essa hipótese foi aventada, levando-se em conta o público-alvo. Sabe-se que, quanto mais alto é o nível intelectual do auditório (PERELMAN, 1996), mais exigente e criterioso ele se torna no que se refere à avaliação das opiniões alheias. Isso significa que, para convencê-lo, a argumentação deve estar num patamar mais avançado, ou seja, não se limitar ao plano das idéias ou dos raciocínios quase-lógicos (PERELMAN, 1996).
A narrativa de fatos como argumentos é justamente uma condição indispensável para a eficácia da comprovação de uma tese, funcionando como uma estratégia argumentativa bastante convincente (GOUVÊA, 2002). Ora, quanto mais alto é o percentual de tempos do grupo II, mais casos há de momentos narrativos dentro do comentário e de metáforas temporais. Tem-se, portanto, a utilização de fatos como argumentos bem como o uso de matizes significativos.
A hipótese foi plenamente confirmada. Os 32 textos – 16 do gênero editorial e 16 do gênero opinião – divididos entre o O Globo e o Jornal do Brasil apresentaram um percentual muito maior de tempos do mundo narrado do que os 32 textos divididos entre o Extra e o O Dia.
No O Globo, há, por exemplo, um editorial com 59% de tempos do grupo II, e o percentual menor de tempos desse grupo, em editoriais, é de 34,1. Já no Extra, o percentual menor de tempos do mundo narrado, nesse gênero de texto, é de 7,6, ou seja, quase cinco vezes menor. Com relação aos textos do gênero opinião, no O Globo, o percentual menor de tempos do mundo narrado é de 22,5, enquanto no Extra se tem um caso com 0 % seguido de outro com 4,4%; uma diferença, portanto, expressiva.
Cotejando-se os resultados finais dos dois periódicos, observou-se o seguinte: a) no que concerne aos editoriais, o jornal O Globo apresentou 41,7% de tempos do mundo narrado, contra 23,8% do Extra, o que indica que o O Globo apresentou quase o dobro da freqüência do Extra; b) no que diz respeito aos textos do gênero opinião, o O Globo perfez um total de 32,6% de casos de tempos do relato contra um total de 10,6% do Extra, significando que o primeiro teve o triplo da freqüência do segundo. Quanto aos dois jornais, portanto, a hipótese confirmou-se inteiramente.
No Jornal do Brasil, em se tratando dos editoriais, há um caso com 56,8% de tempos do grupo II e outro com 52,5%. O percentual menor de tempos desse grupo é de 18,6. No O Dia, há dois casos com percentual zero seguidos de um com 6,6%. Como se pode observar, a diferença entre os dois periódicos, no que concerne ao menor percentual é expressiva. Em se tratando dos textos do gênero opinião, o Jornal do Brasil apresenta três ocorrências com percentual maior de tempos do mundo narrado do que de tempos do mundo comentado: 79,6%, 65,5% e 57,8%. O percentual menor de tempos do mundo narrado é de 22,3. No O Dia, o percentual menor de tempos do grupo II é de 18,1.
Comparando-se a média percentual dos dois periódicos, verificaram-se estes resultados: a) quanto aos editoriais, o Jornal do Brasil apresentou um percentual de 37,4 de tempos do mundo narrado, enquanto o O Dia, um percentual de 13,7, o que indica que o Jornal do Brasil perfez um total quase três vezes maior; b) no que se refere aos textos do gênero opinião, o Jornal do Brasil obteve um resultado de 46,1% de tempos do relato contra 28,1% do O Dia, denotando uma diferença também expressiva. Esses resultados confirmam plenamente a hipótese levantada.
Os percentuais observados são indicativos da relação entre conduta argumentativa e público-alvo. A alternância dos grupos temporais (tempos do mundo comentado e do mundo narrado) e, portanto, das situações comunicativas (comentário / relato, ou vice-versa) evita a monotonia da seqüência de tempos do mesmo mundo, tornando o texto mais ágil, mais dinâmico. Além disso, permite que o destinatário abandone, por instantes, a postura de tensão que os tempos do comentário lhe impõem e assuma uma atitude de relaxamento, sugerida pelos tempos do relato. Essa alternância de postura, por seu turno, dá-lhe oportunidade e condições de refletir e avaliar melhor a opinião do locutor. A eficiência argumentativa de um texto dirigido para um auditório instruído passa, dentre alguns caminhos, pela capacidade que tem esse texto de oferecer alternativas – ora idéias, ora provas, ora matizes significativos – que, juntas, vão provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se apresentam à sua aprovação (PERELMAN, 1992).
Por outro lado, a variação bem menos freqüente de tempos dos dois grupos, com o predomínio dos tempos do grupo I, embora seja uma característica do comentário como mostra Weinrich, é um sinal de que a argumentação se constrói predominantemente pelo plano das idéias, com um mínimo de comprovação. Essa conduta discursiva se justifica pelo nível de exigência de um auditório menos instruído. Algumas idéias – e, portanto, raciocínios prontos - são o suficiente para convencê-lo da veracidade das teses que lhe são propostas. De outro ponto de vista, a não-recorrência tão freqüente à narrativa de fatos, como prova, corresponde a um procedimento que visa a evitar a complexidade e o alongamento da discussão, o que tornaria o texto cansativo e desinteressante para um auditório de instrução limitada.
Constata-se, então, que a maior ou menor variação temporal é determinada pelo público a que se destina o jornal. Como o O Globo e o Jornal do Brasil atendem a classes mais instruídas do que o Extra e o O Dia, apresentam uma variação maior no que se refere aos grupos temporais. Vale ainda observar que o fato de o O Globo e o Extra pertencerem à mesma empresa, mas se destinarem a auditórios distintos é mais uma comprovação de que a variação temporal é condicionada pelo público-alvo.
Em se tratando do fator discordância temporal, a hipótese formulada foi a de que a discordância dos tempos se caracterizaria predominantemente pela ocorrência de momentos narrativos dentro do comentário, ficando em segundo plano os casos de metáfora temporal e perspectiva retrospectiva em relação ao tempo zero do comentário.
Essa hipótese se fundamenta na importância e no alcance daquilo que Koch chama de momentos narrativos e daquilo que Weinrich chama de metáfora temporal. A narrativa de fatos – desde que eles sejam fidedignos, suficientes, adequados, pertinentes – constitui um tipo de argumento que cria a sensação de que o texto trata de situações verdadeiras e não de opiniões gratuitas (PLATÃO e FIORIN, 2002). Em função disso, atinge a razão do auditório. Por outro lado, a metáfora temporal reduz a validez do comentário, ao caracterizar hipótese, polidez, timidez etc. Em função disso, atinge a emoção do auditório. A persuasão não se dá apenas por intermédio da razão; alcançar a subjetividade do destinatário é uma estratégia bastante eficaz. A razão, entretanto, atingida pelo arrolamento de fatos é o modo mais eficiente de convencê-lo da veracidade da tese.
Observe-se um exemplo de cada tipo de discordância temporal:
(3) Os professores da UFRJ decidiram encerrar a greve iniciada em 8 de julho contra a reforma da previdência. A decisão aconteceu depois da manifestação de um grupo de professores, que estranhavam o teor da greve e a forma como ela fora decidida.
A mesma inquietação manifestou-se na UFF (...).
Pode-se dizer que é um sinal dos tempos. Uma interpretação simplista dirá que isso acontece porque este é um governo do PT, teoricamente mais afinado com as bases universitárias. (...) (Novos tempos. O Globo, 07/08/03) (momentos narrativos dentro do comentário)
(4) O desafio do ministro Sepúlveda Pertence deve servir como um alerta à própria Justiça de que chegou a hora de mudanças. É preciso oxigenar tribunais, fóruns e cartórios – mantida, óbvio sua independência. Não interessa a ninguém um Poder Judiciário impermeável à sociedade. (Um alerta. O Globo, 25/08/03) (perspectiva retrospectiva em relação ao tempo zero do comentário)
(5) Trata-se de saber se estamos diante de mais uma recuperação a ser frustrada cedo ou tarde, ou começamos de fato a pisar em terreno mais firme, em direção a um ciclo de crescimento mais sustentado. O palácio do Planalto já enxerga um pasto de vacas gordas.
Pode ser, mas são necessários cuidados. Um erro seria imaginar que seriedade fiscal e monetária só vale para tempos de crise. Engano. Ela também ajuda a manter o desenvolvimento. Outro requisito é persistir (...). (Ajudar o otimismo. O Globo, 10/10/03) (metáfora temporal)
O resultado da análise dos casos de tempos do mundo narrado confirmou a hipótese aventada, mas somente no que diz respeito aos periódicos dirigidos às classes A e B. Em se tratando dos jornais destinados às classes C e D, o panorama não foi o mesmo.
Reunindo-se os percentuais do O Globo e do Jornal do Brasil, obteve-se uma média de 57,3% de casos de momentos narrativos dentro do comentário, contra 11,5% de metáforas temporais e 31,2% de formas verbais representando uma perspectiva retrospectiva em relação ao tempo zero do comentário.
Já o Extra e O Dia perfizeram um total de 42% de momentos narrativos, contra 16,6% de metáforas temporais e 41,4% de perspectiva retrospectiva.
O predomínio de momentos narrativos no primeiro caso, mas não no segundo, é um resultado bastante compreensível e que já, praticamente, explicou-se no momento em que se estudou o fator variação temporal. Lá, justificou-se o índice mais alto de ocorrências de tempos do mundo narrado nos periódicos destinados às classes A e B do que nos destinados às classes C e D pelo nível de exigência de um auditório instruído. Uma argumentação mais bem elaborada, voltada para uma clientela mais criteriosa, passa, sobretudo, pela apresentação de fatos que vão comprovar as teses propostas. A argumentação dirigida a um auditório menos exigente configura-se pela a apresentação predominante de idéias, fincando os fatos relegados a plano secundário.
Aqui, em se tratando do fator discordância temporal, justifica-se do mesmo modo o predomínio de momentos narrativos (57,3%) - e o percentual mais baixo de metáforas temporais e perspectiva retrospectiva - nos jornais O Globo e Jornal do Brasil, mas não no Extra e no O Dia (42%). Nos primeiros, a narrativa de fatos é a estratégia preferida; nos segundos, o plano das idéias é valorizado, o que comprova o percentual alto de perspectiva retrospectiva em relação ao tempo zero do comentário (41%) – um empate com momentos narrativos.
Também não é difícil entender por que os casos de metáfora temporal têm uma freqüência baixa (11,5%) nos dois primeiros jornais. Neles, a argumentação se realiza, amiúde, pela narrativa de fatos, funcionando, as hipóteses (metáfora temporal), como uma estratégia cujo papel é o de amenizar, uma vez ou outra, o tom categórico das certezas veiculadas por esses fatos.
De outra parte, a freqüência um pouco mais alta de metáforas temporais (16,6%), nos dois segundos jornais, fundamenta-se no raciocínio inverso. Trata-se de uma argumentação que utiliza em menor grau a narrativa de fatos, e é justamente a menor freqüência de fatos que vai provocar a maior freqüência de hipóteses. Como o locutor recorre muito pouco à narrativa para comprovação de suas teses, fixando-se em opiniões, sente necessidade de se proteger em relação a determinadas declarações, o que faz por intermédio de construções do tipo
(6) Há fortes suspeitas de que a baderna estaria sendo promovida por homens ligados aos camelôs que vendem produtos pirateados. (Ataque e defesa. (Extra, 20/09/2004)
Nessa construção, o futuro do pretérito assinala o surgimento de uma outra voz, a que o locutor atribui a autoria do que é declarado. A utilização do processo da polifonia o resguarda de qualquer reclamação por parte dos acusados (KOCH, 1997, p. 59).
Comparando-se os resultados dos 4 jornais analisados, verifica-se o seguinte.
O O Globo apresentou um percentual de 53,9 de momentos narrativos e 13,2 de metáforas temporais. O Jornal do Brasil teve 60,6% de momentos narrativos - mais do que o O Globo, portanto – e 9,8% de metáforas temporais – menos do que o O Globo, por conseguinte. O Extra obteve 37,2% de momentos narrativos e 20% de metáforas, o que demonstra a diminuição de narrativa e o aumento de metáfora. O O Dia, por outro lado, obteve 46,8% de momentos narrativos – mais do que o Extra - e 13,2% de metáforas – menos do que o Extra.
Essas porcentagens, denotando a regularidade dos resultados intermediários, confirmam a interpretação de que a maior ou menor recorrência à metáfora temporal é determinada pela escolha da estratégia argumentativa: maior ou menor utilização da narrativa de fatos.
Quanto ao uso do pretérito perfeito significando perspectiva retrospectiva em relação ao tempo zero do comentário - O Globo com 32,9% e o Jornal do Brasil com 29,6%; o Extra com 42,8% e o O Dia com 40% - constata-se um percentual mais alto nos jornais dirigidos ao auditório menos instruído.
Esse resultado serve para ratificar os números apresentados quando se tratou do fator variação temporal. Demonstrou-se, lá, que os jornais Extra e O Dia apresentaram um percentual maior de tempos do mundo comentado do que o O Gobo e o Jornal do Brasil. Como o pretérito perfeito, em português, pode ser considerado um tempo de retrospecção do mundo comentado (KOCH, 1993), a sua freqüência mais alta, aqui, confirma a estratégia observada anteriormente: mais exposição de opiniões no Extra e no O Dia do que no O Globo e no Jornal do Brasil; menos narrativa de fatos nos primeiros do que nos segundos.
CONCLUSÃO
Em face dos resultados obtidos, confirma-se a pertinência da teoria de Weinrich na língua portuguesa: os tempos do grupo I efetivamente marcam a situação comunicativa de comentário. O predomínio desses tempos em 58 dos 64 textos dos gêneros editorial e opinião é a prova.
Deve-se salientar, entretanto, que a eficácia da argumentação não está propriamente ou somente no predomínio dos tempos do comentário, tempos que indicam a presença de idéias ou raciocínios na construção da crítica. A eficiência do discurso argumentativo está na escolha da estratégia adequada ao público-alvo. Se se tratar de periódicos direcionados às classes A e B, a eficácia está na variação ou alternância dos grupos temporais, com um máximo possível de relato funcionando como comprovação das teses propostas. Esse é o significado dos altos percentuais de tempos do mundo narrado nos jornais destinados a um auditório instruído - e, portanto, mais exigente. Por outro lado, se se tratar de jornais destinados às classes C e D, a eficiência está no predomínio acentuado de tempos do mundo comentado. É isso que representam os altos percentuais de tempos desse mundo, os baixos percentuais de tempos do relato e, ainda, os altos percentuais da variável perspectiva retrospectiva em relação ao tempo zero do comentário, nos textos dirigidos a um público menos (ou pouco) instruído - e, por conseguinte, menos exigente.
Ao se proceder ao levantamento dos tempos e à análise da sua função no discurso, espera-se estar contribuindo não só para o alcance de uma compreensão mais apurada dos gêneros textuais editorial e opinião mas também para o domínio de uma das estratégias de produção de textos de caráter argumentativo: o emprego dos tempos verbais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DUCROT, Oswald. Argumentation et persuasion. In.: Énonciation et parti pris. Actes du Colloquie de l’Université d’Anvers, 1990, p. 143-158.
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KOCH, Ingedore Villaça. Argumentação e linguagem. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1993.
––––––. A inter-ação pela linguagem. São Paulo: Contexto, 1997.
PERELMAN, Chaim e OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. (1952) Tratado da argumentação: a nova retórica. Tradução de Maria Ermantina G. Pereira da edição francesa de 1992. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
PLATÃO, Francisco Savioli e FIORIN, José Luiz. Lições de texto: leitura e redação. 4. ed. São Paulo: Ática, 2002.
WEINRICH, Harald. Estructura y función de los tiempos en el lenguaje. Madrid: Gredos, 1968.