UMA
QUESTÃO DE
TERMINOLOGIA
GRAMATICAL
A CLASSIFICAÇÃO DOS
MORFEMAS
Ana Paula Araujo Silva (UERJ)
Uma das
características da
linguagem
humana é o
que Martinet (1974: 11),
lingüista
francês, chamou de
dupla
articulação:
A
linguagem
humana é
não
somente articulada,
mas
duplamente articulada
em
dois
planos,
aquele
em
que,
para
usar os
termos do
falar
cotidiano, os
enunciados se articulam
em
palavras, e
aquele
em
que as
palavras se articulam
em
sons.
A
primeira
articulação tem
como
constituintes
mínimos,
segundo Martinet,
unidades significativas, denominadas monemas:
“monema é o
menor
segmento de
discurso ao
qual se pode
atribuir
um
sentido” (Martinet,
1974: 13). A
segunda,
unidades distintivas (os
fonemas). O
lingüista
francês reservou a
denominação de
morfemas
para as
unidades
mínimas significativas
gramaticais. As
lexicais foram designadas lexemas. A
nomenclatura das
formas
mínimas varia
entre os
autores. Pottier (1968: 53-4)
usa o
termo
morfema
como
genérico; mantém a designação de lexemas,
mas
chama de gramemas os
morfemas
gramaticais. O
lingüista
brasileiro
Câmara Jr. (1977: 91-3) adota a de Vendryes (1978: 91-2),
que
chama de semantemas as
formas
mínimas de
valor
lexical e de
morfemas as de
valor
gramatical. Será,
aqui, adotada a
terminologia dos
autores
norte-americanos,
que parece
estar
mais
próxima dos
hábitos
didáticos
brasileiros:
morfema (termo
geral),
morfema
lexical e
morfema
gramatical (cf.
Azeredo, 2002: 69-71;
Silva & Koch, 1997:12).
É
comum o
valor
significativo dos
morfemas,
tanto
lexicais
quanto
gramaticais,
ser enfatizado.
Câmara Jr. (2002: 218) afirma
que os
primeiros apresentam uma significação
externa e os
últimos, uma significação
interna:
Ao
lado da significação dos semantemas,
dita significação
externa, há
para
considerar a significação
interna,
ou
gramatical,
que se refere aos
morfemas e pode
ser
categórica (indicativa
de uma
categoria
gramatical)
ou relacional (quanto
à
função do
morfema
como
conectivo).
Coseriu
(1978) define
cinco
tipos de
significado –
léxico, categorial, instrumental,
estrutural e ôntico. O
significado
léxico é o
correspondente,
como a
própria
denominação evidencia, aos
morfemas
lexicais:
O
significado
léxico,
que corresponde ao
quê da
apreensão do
mundo extralingüístico;
por
exemplo, o
significado
que é
comum a todas as
palavras de
cada uma das
séries:
quente –
calor –
esquentar,
rico –
riqueza –
enriquecer,
branco – brancura –
branquear – *brancamente,
e
que, ao
mesmo
tempo, diferencia
cada uma destas
séries,
como
um
todo, de outras
séries do
mesmo
tipo.
Já o
significado dos
morfemas
gramaticais é denominado instrumental
pelo
autor:
O
significado instrumental,
ou seja, o
significado dos
morfemas, e,
este,
independentemente de serem
palavras
ou
não;
assim,
por
exemplo, o
em o
homem, tem o
significado «atualizador», e –s,
em mesa-s, tem o
significado «pluralizador».
Pena (2000),
entretanto, critica a
definição do
morfema
como “unidade
significativa
mínima”, preferindo a de “unidade
gramatical
mínima”,
ou seja,
que
não pode
ser decomposta
em outras,
mas
sem
ser, necessariamente,
significativa
ou
distintiva:
(...) a
análise
formal da
palavra pode
dar
também
como
resultado
unidades
gramaticais
mínimas
carentes de
significado. O
que
quer
dizer
que a
definição do
morfema
como ‘signo
mínimo’
ou ‘unidade
significativa
mínima’ resulta inadequada
por
ser
demasiado
restritiva e
não
poder
assim
caracterizar a
totalidade das
unidades obtidas na
análise
formal
da
palavra,
relevantes
em
sua
estrutura
ou
constituição
morfológica.
O
autor
espanhol cita as
vogais
temáticas e os interfixos
como
exemplos de
unidades
carentes de
significado.
Assim,
como
frisa
Pena (op. cit.), é
preciso
reconhecer
que
nem
sempre o
morfema é uma
entidade de
dupla
face. Há
morfema
sem
significante (morfema
zero) e
morfema
sem
significado.
A afirmação
de
que os
morfemas
são
sempre
significativos pode
ser questionada se relacionarmos o
significado ao
conteúdo
que o
emissor acredita
estar vinculando, e ao
que o
receptor entende. Ao
dizer cantávamos,
por
exemplo,
não faz
parte do
projeto de
discurso
comunicar
que
cantar é
um
verbo da
primeira
conjugação.
Logo, a
vogal
temática
verbal é
um
morfema
sem
significado.
O
que
Câmara Jr. (op. cit.)
chama de significação
interna e Coseriu (op. cit.) de
significado instrumental parece
ser, na
verdade, a
função dos
morfemas
gramaticais. Comparemos,
por
exemplo, as
conjunções
integrantes
que e se (morfemas
gramaticais). Ambas têm a
mesma
função,
todavia, a
primeira é semanticamente
vazia
enquanto a
segunda
expressa
dúvida.
Após essas
considerações, podemos
afirmar
que o
morfema é a
unidade
mínima da
língua
que possui,
em
princípio –
mas
não obrigatoriamente –,
significante e
significado.
ALGUNS
CONCEITOS
BÁSICOS
PARA A
ANÁLISE MÓRFICA
O
método utilizado na
análise mórfica (depreensão dos
morfemas) é a comutação,
que consiste na
substituição de
elementos a
partir da
qual resulta
um
novo
vocábulo.
Câmara Jr. (1996: 72-3) exemplifica a comutação
com o
vocábulo falamos:
A
primeira comutação
que ocorre é
um
zero (Æ),
que
nos dá o
vocábulo
fala.
Como
passa
então a se
tratar de
outra
pessoa
gramatical (a 3a
pessoa do
singular), concluímos
que –mos é
que é o
morfema da 1a
pessoa do
plural,
ou 4a
pessoa
gramatical.
Por
outro
lado, a comparação de falamos,
como falávamos, faláramos,
falaremos e falaríamos, indica
um
presente e
um
pretérito
com
morfema
zero e
dois
outros
pretéritos,
com
morfemas -va- e -ra-,
respectivamente, e
com
dois
futuros,
respectivamente, de
morfemas -re- (tônico)
e -ria- (com tonicidade no /i/). (...) O
primeiro
elemento
indivisível,
comum a todas as
formas de
cada
um dos
verbos, é o
morfema
lexical,
em
que se concentra a significação
específica do
ato
que
o
verbo
expressa:
fal-,
em
falamos,
referente a uma
atividade
vocal
distinta da de cantamos (morfema
lexical cant-),
ou da de gritamos (morfema
lexical grit-) (...).
É
necessário
associar à comutação o
critério
semântico
para,
por
exemplo,
verificar se
um
segmento fônico corresponde,
realmente, a
um
morfema.
Em
onipotente (oni- +
potente),
onisciente (oni- +
ciente),
onipresente (oni- +
presente) e
onívoro (oni- + -voro),
por
exemplo, oni- é
um
morfema
lexical.
Em
ônibus, no
entanto, é
apenas uma
seqüência de
fonemas, uma
vez
que
ônibus é uma
palavra
simples. No
estágio
atual da
língua
não há
como
pensar
em uma
divisão ôni- + -bus. O
vocábulo bus
até existe
em
português,
mas
em
nada se relaciona
com
ônibus. O
critério
semântico é
importante
também
para o
reconhecimento da
homonímia
em
pares
como
caso –
casa. A
homonímia pode
abranger
todos os
morfemas de uma
palavra
como
em
canto (“ângulo”)
e
canto (“ato de
cantar”). No
último
caso,
conforme explica
Câmara Jr. (1977: 95), “é o
contexto
ou a
situação
que identifica a
forma (cf. ‘a
cadeira estava num
canto’, ‘aprecio o
canto de Gigli’)”.
É
preciso
ressaltar
que há
morfemas
que
não podem
ser depreendidos
diretamente
pelo
método da comutação. Podemos
citar as
vogais
temáticas
como
exemplo,
visto
que da
troca de uma
vogal
temática
nominal
ou
verbal
por
outra resulta, na
maioria das
vezes, uma
forma
inexistente (mes/a,
*mes/o, *mes/e;
grit/a/r, *grit/e/r, *grit/i/r).
ALOMORFIA
Alomorfia é a variação de
um
morfema
sem
mudança no
seu
significado.
Em
infeliz e
imutável,
por
exemplo,
tanto in-
quanto i- indicam
negação.
Para se
estabelecer a
forma
básica, utilizam-se
dois
critérios (Kehdi,
2002: 20-1): o
estatístico (qual das
variantes é a
mais
freqüente) e o da regularidade (caso
os alomorfes apresentem a
mesma
freqüência). Voltando ao
exemplo
acima,
como i-
só ocorre
diante de determinadas
consoantes (l-, m- e r-), in-
será considerada a
forma
básica. No
caso dos
morfemas de
modo e
tempo no
futuro do
presente do
indicativo (-ra- e -re-), é
necessário
utilizar o
segundo
critério,
visto
que
ambos ocorrem
com a
mesma
freqüência (três
vezes).
Como, estatisticamente, os
morfemas modo-temporais apresentam, no
português, a
forma
básica
em –a e a
variante
em -e, têm-se -ra-
como
forma
básica e -re-
como
variante. Kehdi (op. cit., p. 22)
mostra
ainda
que, havendo uma
forma isolada e
outra
que
só ocorra
junto a
um
novo
elemento, a
primeira deve
ser considerada a
forma
básica. Cita o
autor
chapéu e chapel- (em
chapelaria e
chapeleiro)
como
exemplos.
Vejamos
ainda a
diferença
entre
morfema e morfe.
Para
alguns
autores (cf.
Silva & Koch, op. cit., p.
26-7), o
primeiro é uma
entidade
abstrata e o
segundo,
sua concretização.
Assim, retomando os
exemplos
infeliz e
imutável, há, na
verdade,
um
morfema de
negação
que se realiza
através dos morfes in-
ou i-.
Todavia,
para
maior
simplicidade na
descrição,
não haverá,
aqui,
rigor na
distinção
entre os
termos
morfema e morfe, sendo considerada a
forma
básica o
morfema, e as
demais, alomorfes.
CUMULAÇÃO
Entende-se
por
morfema cumulativo
aquele
que traz
em
si
mais de uma
noção
gramatical.
Em
português, as
desinências modo-temporal e número-pessoal
são
morfemas cumulativos.
Em cantávamos,
por
exemplo, o
morfema -va- traz a
noção de
modo (indicativo),
tempo (pretérito) e
ainda
aspecto (imperfeito
ou
inconcluso).
Já o
morfema -mos indica o
número (plural) e a
pessoa (primeira).
SUPERPOSIÇÃO
Nem
sempre os
autores distinguem a cumulação da
superposição. A
diferença
entre os
dois
fenômenos está no
fato de o
primeiro
ocorrer
em
qualquer
contexto e o
segundo,
apenas
em
determinados
contextos.
Assim, ao analisarmos diversas
formas
verbais, percebemos
que as
noções de
número e
pessoa
bem
como as de
tempo,
modo e
aspecto
são
sempre representadas
por uma
única
forma,
ou seja,
não há
forma
verbal
em
que o
número seja indicado
por
um
morfema e a
pessoa
por
outro. O
mesmo ocorre
com o
tempo, o
modo e o
aspecto. No
entanto,
em
formas
como cantaste e cantastes os
morfemas número-pessoais -ste e -stes
marcam
também
tempo,
aspecto e
modo (pretérito
perfeito do
indicativo) e
são,
por
isso, considerados
morfemas superpostos.
NEUTRALIZAÇÃO
Há
neutralização
quando a
oposição
distintiva
entre
dois
morfemas
deixa de
existir
pelo
aparecimento de
um
morfema
único.
Câmara Jr. (1996: 74) cita
dois
exemplos de
sua
ocorrência no
plano mórfico. Na 3ª
pessoa do
plural, ocorre a neutralização,
apenas no
plano
formal,
entre o
pretérito
perfeito e o mais-que-perfeito (falaram,
venderam, partiram). O
autor propõe duas
maneiras de
resolver a
ambigüidade causada
pela neutralização mórfica: o
paradigma (falou x falaram / falara x
falaram) e o
contexto da
comunicação (os
pretéritos
perfeito e mais-que-perfeito
são
empregados
em
diferentes
tipos de
frase).
Já
em teme e
parte,
por
exemplo, a indistinção
entre a 2ª e a 3ª
conjugação é
conseqüência
de uma neutralização
fonológica.
Bechara
(2001: 345), no
entanto, discorda
que o
primeiro
exemplo citado seja
um
caso da neutralização.
Para o
autor, há
sincretismo, uma
vez
que
não ocorre
suspensão da
oposição
entre
pretérito
perfeito e mais-que-perfeito
em
contexto
algum:
Não se há de
confundir neutralização e
sincretismo. A neutralização, (...), é a
suspensão,
em
determinado
contexto, de uma
oposição
funcional
que existe na
língua
em
um dos
seus
dois
planos: o da
expressão
ou do
conteúdo.
O
sincretismo,
por
seu
turno, é a
ausência de
manifestação
material, numa
seção de
um
paradigma
ou
em
um
paradigma, de uma
distinção de
conteúdo
que,
em outras
seções do
mesmo
paradigma
ou
em
outros
paradigmas
análogos, se
manifesta
também
materialmente (...) haverá
sincretismo, e
não neutralização,
em falaram
como
forma da 3ª
pessoa do
plural do pret. perf. e do pret.
mais-que-perfeito do
indicativo [grifo
nosso],
oposição recuperada na
forma de 3ª
pessoa do
singular (falou/falara) e
ainda
pelo
contexto.
TIPOS DE
MORFEMAS
Os
morfemas podem
ser divididos
em
lexicais e
gramaticais,
conforme
já abordado no
início deste
artigo. Os
primeiros apresentam o
significado
básico da
palavra, representam
elementos
externos à
língua e pertencem a uma
lista
aberta,
pois podem
ser
criados a
qualquer
momento. Os
últimos,
por
outro
lado, servem à
gramática da
língua e pertencem a uma
lista fechada,
só sendo
criados ao
longo de
muito
tempo.
Em cantávamos,
por
exemplo, há
um
morfema
lexical (cant-) e
três
morfemas
gramaticais (-a-, -va- e -mos).
O
morfema
lexical corresponde ao
radical de uma
palavra. É
importante contrastarmos os
termos
raiz e
radical.
Ambos constam na NGB. Há
alguns
autores
que os tomam
como
sinônimos;
outros
que empregam o
primeiro no
sentido
diacrônico e o
último no sincrônico; e
ainda
outros
que se referem à
raiz
como o
radical
primário de uma
palavra,
ou seja, o
segmento “irredutível a
que se
chega
dentro da
língua portuguesa e
comum a todas as
palavras de uma
mesma
família” (Bechara,
op. cit., p. 341).
Os
morfemas
gramaticais podem
ser subdivididos
em classificatórios, relacionais,
categóricos e derivacionais, de
acordo
com
sua
função.
Os
morfemas classificatórios
são,
geralmente, denominados
vogais
temáticas.
Subdividem-se
em
nominais (-a, -e, -o)
e
verbais (-a, -e, -i).
Há
discordância
quanto à classificação do
morfema
átono
final de
nomes
masculinos
que apresentam
um
par
opositivo
como
menino (x
menina) e
gato (x
gata).
Para
alguns
autores o
morfema -o de
menino e de
gato é uma
vogal
temática;
para
outros, é
marca
nítida de
gênero,
assim
como o
morfema -a do
feminino (cf.
Silva, 2004: 47-63).
Os
substantivos terminados
em
vogal
tônica (como
café,
saci e
bambu)
são considerados atemáticos.
Os terminados
em
consoante
também podem
ser
assim considerados.
Muitos
autores, no
entanto, preferem
postular uma
vogal
temática
teórica (*-e),
que reaparece no
plural (mares =
*mare + s). Parece-nos, sincronicamente,
mais
coerente
considerar -es
um alomorfe da
desinência de
número -s e
mar uma
forma atemática.
Além disso, esta
opção sincrônica de
análise evita
abstrações; nela,
não há
temas
teóricos
que
não existem
como
palavras. Há de se
admitir neste
caso, obviamente,
um alomorfe -es da
desinência de
plural -s.
Cada
um dos
morfemas
classificatórios
verbais agrupa
os
verbos
em uma
determinada
conjugação
verbal.
Assim,
cantar
pertence à 1a
conjugação;
vender, à 2a;
e
partir, à 3a.
Como as
vogais
temáticas
não
acrescentam
nenhum
significado ao
vocábulo,
não há
acordo
entre os
lingüistas a
respeito de
sua
inclusão
entre os
morfemas.
Esse
fato,
todavia,
não pode
ser
um
obstáculo
para a
inclusão das
vogais
temáticas
entre os
morfemas, uma
vez
que,
conforme
abordado
anteriormente,
nem
sempre o
morfema é uma
entidade de
dupla
face.
Ao
compararmos as
vogais
temáticas
nominais e
verbais, percebemos
que estas dividem os
verbos
em
grupos
que se flexionam de
maneira
distinta,
enquanto aquelas
não desempenham essa
função
tão
claramente.
Que
diferenças flexionais há
entre os
nomes terminados
em -o, -a e -e?
Henriques
(2002: 17) apresenta,
como
principal
motivo
para as
vogais
temáticas
nominais serem reconhecidas,
sua
função de “viabilizar o
radical
como
vocábulo,
para uns;
formar o
tema
para
outros”. No
artigo "Atualizadores
léxicos",
Carvalho (1973: 49-60) questiona a
função das
vogais átonas
finais dos
nomes, apresentando
um
minucioso
levantamento a
fim de
esclarecer a
relação
entre essas
vogais e o
gênero. O
autor conclui
que os
substantivos terminados
em -o
são, predominantemente,
masculinos,
que a
terminação -a é
característica de
elementos da
classe do
feminino e
que o
morfema -e é
indiferente à
categoria de
gênero.
Entretanto, há
um
bom
número de
substantivos de
dois
gêneros (guia,
vigia,
acrobata,
autodidata etc.)
ou
masculinos (dia,
mapa,
papa,
patriarca,
entre
outros)
em -a.
Dentre os
primeiros,
muitos podem
funcionar
como
adjetivos (poliglota,
homicida,
carioca etc.).
Em
relação aos
substantivos
em -e, podem
alguns,
referentes a
seres
animados, opor-se a
um
feminino
em -a (mestre
– mestra,
infante – infanta).
Salvo raras
exceções,
Carvalho (op. cit., p. 58) constata
que,
em
português, os
nomes no
singular terminam
em
vogal.
Quanto aos terminados nas
consoantes -s, -z, -r
ou -l, o
autor se posiciona a
favor da
postulação de
um
morfema
vocálico
latente -e, “que
se
torna
patente no
plural (cor
/
cores,
paz /
pazes)”.
Acredita,
assim,
que a
função
primária dos
morfemas
nominais -e, -o e -a é
permitir
que o
conjunto de formantes
léxicos (denominado
tema
pelo
autor) “seja integrado no
léxico, atualizado
com
um dos
seus
elementos (primeira
atualização da
palavra), e
em
seguida realizado
concretamente no
discurso (segunda
atualização)”. Propõe,
então, a
denominação de “atualizadores
léxicos”,
termo
que representaria a verdadeira
função desses
morfemas. Ressalta
também
que -o e -a podem, secundariamente,
indicar o
gênero.
Os
morfemas relacionais têm a
função de
conectar
palavras e/ou
orações. Subdividem-se
em
preposições,
conjunções,
verbos
auxiliares e
pronomes
relativos. Essa
não é, no
entanto, a
única
proposta de
análise desses
vocábulos. Azeredo (op. cit., p. 210-2),
dentre
outros, considera
preposições,
conjunções adverbiais e
integrantes e
pronomes
relativos,
bem
como
advérbios interrogativos,
pronomes
indefinidos
e
desinências aspectuais, transpositores,
ou seja,
instrumentos da transposição,
que é o “processo
pelo
qual se formam
sintagmas derivados de outras
unidades, as
quais podem
ser
sintagmas
básicos
ou
orações” (Azeredo,
op. cit., p. 211). Os
sintagmas formados pelas
preposições substituem
ora os
sintagmas adjetivais (líquido
sem
cor /
líquido
incolor)
ora os adverbiais (agiu
com
prudência / agiu
prudentemente). As
orações introduzidas
por
conjunções
integrantes (Ele
sabe
que os
meninos se escondem
lá. /
Ele sabe o
esconderijo dos
meninos.),
advérbios interrogativos (Vi
como
ele chegou. / Vi
sua
chegada.) e
pronomes
indefinidos (Todos
sabem
quanto custou a
casa. /
Todos sabem o
preço da
casa.) formam
sintagmas
nominais. As introduzidas
por
conjunções adverbiais formam
sintagmas adverbiais (Ele
saiu
quando
ela ligou).
Já os
pronomes
relativos iniciam
orações
que funcionam
como
sintagmas adjetivais (Não
comprei a
roupa
que vi na
loja. /
Não comprei a
roupa
vista na
loja.). As
desinências aspectuais –r, –ndo e
–do formam,
respectivamente, o
infinitivo, o
gerúndio e o
particípio dos
verbos (cantar, cantando
e cantado).
Os
morfemas
categóricos
não criam
palavras
novas.
São chamados
também de
morfemas flexionais e servem
para
indicar as
categorias
gramaticais próprias dos
nomes (gênero
e
número) e
verbos (modo,
tempo,
aspecto,
número e
pessoa). Os
morfemas -s de
casas e -mos de cantamos
são
exemplos de
morfemas
categóricos; o
primeiro
marca o
plural, e o
segundo traz a
noção de
número (plural) e
pessoa (primeira).
Os
morfemas derivacionais criam
novas
palavras na
língua a
partir do
morfema
lexical e podem
ser divididos
em
prefixos,
sufixos,
infixos, interfixos, circunfixos e confixos,
de
acordo
com a
posição
em
que se juntam à
base.
Os
prefixos se antepõem à
base (infeliz)
enquanto os
sufixos vêm
após esta (felizmente).
Entretanto,
prefixos e
sufixos se diferenciam
não
somente
pela
posição
em
que se juntam à
base
para
formar
um
novo
vocábulo. Os
sufixos
não ocorrem
independentemente na
língua, emprestam uma
idéia
acessória ao
vocábulo a
que se juntam e determinam a
classe a
que
este
pertence (o
sufixo –dade,
por
exemplo,
forma
substantivos
abstratos a
partir de
adjetivos:
igualdade,
crueldade etc.). Na
prefixação,
não há
mudança na
classe da
palavra. Os
prefixos podem
ser de
dois
tipos: os
que
são meras
partículas,
sem
existência
própria na
língua (como re-
em
refazer) e os
que costumam
funcionar
também
como
palavras
independentes (contra-
em
contradizer,
por
exemplo).
Alguns
autores preferem
considerar o
último
caso
como
um
exemplo de
composição, apontando
para a
natureza
lexical dos
prefixos. Monteiro (2002: 139) faz
um
breve
confronto
entre as duas
posições e constata uma acentuada
tendência
para se
incluir a
prefixação no
mecanismo da
derivação.
Em
seguida, o
autor propõe a
solução
que parece
ideal
para
esse
impasse – a
prefixação é
um
tipo de
derivação,
mas devem
ser retirados do
rol dos
prefixos
elementos
como
extra,
contra e super, usados
freqüentemente
como
formas
livres (preposições
nocionais
ou
advérbios).
Os
infixos se intercalam,
geralmente,
dentro da
raiz.
Alguns
estudiosos de
nossa
língua defendem a
existência desse
afixo
em
português,
enquanto
outros refutam
tal
idéia. Monteiro (op. cit., p. 62-3) expõe a
defesa dos
infixos no
português e cita
exemplos
como
pinicar e cineminha.
Já Bechara (op. cit., p 339) assegura
que “o
que se costuma
apontar
como
infixos
não interessa à
gramática descritiva portuguesa” e ressalta
que os
elementos de
ligação,
vogais e
consoantes,
não devem
ser confundidos
com
infixos
por serem facilitadores da
pronúncia
desprovidos de
significado.
Os interfixos
servem de
ligação
entre o
radical e
um
sufixo
ou
entre
dois
radicais de
um
composto (glorificar, filósofo),
mas podem
ser interpretados
como
integrantes “de
um
conglomerado de
sufixos”
ou “como
resultado de
um
alongamento de
sufixo” (Bechara,
op. cit., p. 340).
Como se
vê,
não há
consenso
entre os
autores na
análise das
chamadas
vogais e
consoantes de
ligação.
Alguns preferem interpretá-las
como
morfemas
independentes,
apesar de
não apresentarem
significado.
Outros optam
por incorporá-las aos
radicais
que as antecedem
ou aos
sufixos
que as seguem.
Monteiro (op.
cit., p. 59-62) as analisa
como
morfemas
independentes, alegando
não
haver
critério
definido
para a
incorporação das
vogais e
consoantes de
ligação a
outro morfe e chamando a
atenção
para o
crescimento do
número de alomorfes
caso
não se admitam os interfixos
como morfes segmentáveis.
Apesar das
alegações do
autor, parece
ser
mais
vantajoso
para a
descrição
interpretar,
sempre
que
possível, as ditas
vogais e
consoantes de
ligação
como
último
segmento fônico do
radical
ou
primeiro do
sufixo, uma
vez
que
morfemas
sem
significado
são
formas atípicas, e uma boa
descrição deve reduzi-las ao
mínimo
necessário.
Os
circunfixos caracterizam-se
como
afixos
descontínuos
por serem aplicados simultaneamente à
base dando
origem a
formações parassintéticas (entardecer).
Na
verdade, o
conceito
de
derivação
parassintética varia
entre
os
estudiosos.
Para
alguns,
basta
haver
prefixo
e
sufixo
no derivado
para
que
ele
seja considerado parassintético (como
em
infelizmente).
Para
outros,
o
acréscimo
dos
afixos
deve
ser
simultâneo,
de
tal
modo
que
não
existirá na
língua
a
forma
somente
com
prefixo
ou
sufixo
como
anoitecer
(não
existem as
formas
*anoite
nem
*noitecer).
Bechara (op. cit., p. 343) aponta
ainda
uma
terceira
análise
que
nega
a
existência
desse
processo
de
formação
de
palavras
e,
conseqüentemente,
dos circunfixos:
Pode-se
ainda
entender
que,
a
rigor,
não
existe a
parassíntese,
se partirmos do
fato
de
que,
numa
cadeia
de
novas
formações,
não
poucas
vezes
ocorre o
pulo
de
etapa
do
processo,
de
modo
que
só
virtualmente
no
sistema
exista a
forma
primitiva.
Assim,
para
se
chegar
a farmacolando, parte-se de
um
virtual
*farmacolar (à
semelhança
de
doutorar
em
relação
à
doutorando),
ou,
para
prefeitável, de
um
virtual
*prefeitar (...).
A
segunda
análise
parece
ser
a
mais
adequada, uma
vez
que
a
primeira
não
leva
em
conta
a
noção
dos
constituintes
imediatos,
e a
terceira
lida
com
formas
teóricas.
Fechando o
quadro de
morfemas derivacionais, temos os confixos,
formas
que
só aparecem combinadas
com
outros
elementos. Monteiro (op. cit., p. 53; 65)
aponta
como
exemplos as
formas,
já citadas
por Martinet, poli- e -edro,
que
só aparecem
em
combinações
como
poliedro,
polígono e
tetraedro.
Os
morfemas
também podem
ser
classificados, do
ponto de
vista do
significante,
em
aditivos, subtrativos,
alternativos e
zero.
Não
serão incluídos
aqui os
morfemas reduplicativos
nem os de
posição, uma
vez
que os
primeiros podem,
em
nossa
língua,
ser analisados
como
um
recurso de
caráter
expressivo, e os
últimos situam-se
entre a
Morfologia e a
Sintaxe. (cf.
Kehdi, op. cit., p. 45-7).
Os
morfemas
aditivos
são os
mais
produtivos na
língua portuguesa e consistem
em
segmentos
que se acrescem a
um
radical.
Podem
exprimir uma
indicação
gramatical
ou
formar uma
nova
palavra.
Temos
um
morfema subtrativo
quando a
indicação
gramatical se dá
pela supressão de
fonemas
como
em
réu –
ré,
órfão – órfã e
irmão – irmã.
Nos
dois
últimos
casos, Bechara (op. cit., p. 35),
entre
outros, prefere
considerar
que há supressão da
vogal
temática,
acréscimo de –a e
posterior
crase: “irmão →
irmã(o) + a →
irmãa → irmã (por
crase)”.
Os
morfemas
alternativos
ou de
alternância resultam da
troca de
fonemas
que ocorre
dentro do
morfema
lexical. A
alternância pode
ser
apenas
um
morfema
redundante (ou
submorfema). É
um
morfema
quando ocorre
como
única
marca da
noção
gramatical a se
expressar
como
em
avô – avó.
Por
outro
lado,
quando
apenas
reforça uma
noção
gramatical
já indicada
por
um
morfema segmental, é
um submorfema.
Em
porco –
porca,
por
exemplo, a
oposição
entre
masculino e
feminino é
apenas reforçada
pela
alternância
entre o
timbre fechado e o
aberto.
Por
fim,
morfema
zero (Ø) é,
como definiu
Câmara Jr. (1996: 72), “a
ausência de
um
morfema, num
dado
vocábulo,
que aparece noutro
vocábulo e estabelece
com o
primeiro uma
oposição
significativa”. Há, no
vocábulo cantava,
um
morfema número-pessoal
zero
que o opõe,
por
exemplo, a cantávamos (morfema
número-pessoal -mos) e,
em
casa,
um
morfema de
número
zero
que o opõe a
casas (morfema
de
número
plural –s).
Ressaltando
que o
intuito deste
trabalho
não foi
abranger todas as classificações dos
morfemas,
mas
apresentar
um
quadro coeso e
possível de classificação,
além de
contribuir na
reflexão
sobre o
conceito de
morfema, finalizamos
aqui
este
artigo, esperando
ter alcançado
nosso
objetivo.
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