A LÍNGUA PORTUGUESA EM TIMOR LESTE
RELEVÂNCIA SOCIOLINGÜÍSTICA

Giannina Laucas de Campos (UERJ)

Introdução

A voz do poeta solitário de Timor clama e denuncia para o mundo o desrespeito aos direitos humanos de seu povo sofrido que, sob o guante indonésio, fora dizimado.

As primeiras cenas do filme Timor Lorosae, o massacre que o mundo não viu, coincide com o poema de Monsenhor Jorge Barros (padre timorense, deputado por Timor à Assembléia Nacional, autor de vários livros sobre seu país, falecido) que segue:

Um povo cativo

− É tarde! Fosca, lívida tarde!
Tênue fogacho que apenas arde!...
Mal aberto sorriso
De lábios em desmaio,
Indeciso,
em ensaio!...
Rolam nuvens no céu!
Oh! São nuvens de exílio,
Ensangüentado véu
De um povo sem auxílio!...
São nuvens ou espuma
De altas ondas do mar,
Flocos de sumaúma
A voar..., a voar..., a voar!...
Véus imensos,
Grandes lenços
Postos no ar
A enxugar!...
Ai! Não se enxugam mais!...
Embebeu-as o mar
Em prantos eternais,
Longos, penosos ais;
Todo um povo a chorar!...
Cerrou-se o horizonte!...
Ah! Quanto chove além,
No prado e no monte!...
Como se fora fonte,
O meu beiral também,
Enternecido, chora
Sobre tanta pedrinha
Enjeitada cá fora,
Na lama pecadora,

Como coisa daninha!...
E as pedrinhas,
Molhadinhas,
Ah! Tiritam
E saltitam,
Afeitas ao seu mal,
A tão mísera vida!
Gente no lamaçal,
Exposta ao vendaval!...
Um povo sem guarida!...
Pedras?!... Mas gosto delas,
Dessas pobres pedrinhas!...
Ai! Num céu sem estrelas,
As nuvens são mais belas,
Mais leves, levezinhas,
Quando as vejo, lá no ar
Voando acima de tudo,
Asas feitas de luar,
Abertas para dar
Sombra ao cascalho miúdo!...
Eu amo essas pedrinhas!...
Lembram um mundo além
De gentes coitadinhas,
Almas esquecidinhas,
Sem nada, sem ninguém!...
Mas a nuvem adensa-se agora
Sobre tamanha miséria! E chora!
E lá vai sobre o mar,
Fugindo sem cessar...,
Sempre voando,
Alta no ar,
E chorando
Sem parar!...

A beleza destes versos transcende o fundo branco do papel, pois revela toda dor sofrida pelos timorenses e reafirma a identidade cultural desse povo através do traço lingüístico, visto que são escritos em português. A língua portuguesa representa para essa gente não só o elemento preservador da cultura, mas também é sinônimo de libertação, o que se verificará nas discussões implementadas neste texto.

O objetivo deste trabalho é analisar as relações sócio-históricas e lingüístico-culturais em Timor Leste, contemplando o pressuposto teórico de Elia (2001).

Assim, para compreender o contexto econômico, político, sociolingüístico e cultural de Timor, recorremos aos Cadernos do Terceiro Mundo (maio/jun. 2002), a Chaui (2000), Gilbert (1998), Hall (1999), Hobsbawm (1999), ao Jornal do Brasil (28/jul.2002) e ao site http: //www.untel.net/udttimor/tim-hist.html (acesso em 26-07-2002) e, para a análise sociolingüística, o suporte teórico é fornecido pelo professor Sílvio Elia (2001).

Em contraponto com o filme, as questões aqui desenvolvidas obedecem à seguinte ordem: (i) respingos históricos: contexto econômico, político e social na pós-modernidade; (ii) descrição étnica e sociolingüística do povo timorense; (iii) história e língua em Timor Leste: da ocupação portuguesa à independência; (iv) considerações finais: repercussão dos fatos histórico-sociais sobre a língua.

Respingos históricos: contexto econômico, político e social
na pós-modernidade

Para compreender os fatos ocorridos em Timor Leste, entre os últimos vinte anos do século XX e os inícios do século XXI, importa esclarecer o panorama mundial da economia transnacional com reflexos sobre a política, a sociedade e a cultura na pós-modernidade. Embora de forma breve, vejamos o que dizem os pesquisadores a seguir. Hobsbawm (1999: 412-13) assevera que:

Enquanto suas dívidas cresciam, os bens reais ou potenciais dos Estados pobres não o faziam. A economia mundial capitalista, que julga exclusivamente por lucro ou lucro potencial, decidiu claramente cancelar uma grande parte do Terceiro Mundo nas Décadas de Crise. Das 42 “economias de baixa renda”, em 1970, dezenove tinham zero investimento estrangeiro líquido. Em 1990, os investidores estrangeiros diretos tinham perdido todo o interesse em 26. Na verdade, havia substancial investimento (mais de 500 milhões de dólares) em apenas catorze de quase cem países de baixa e média renda fora da Europa, e investimento maciço (de cerca de um bilhão para cima) em apenas oito, dos quais quatro estavam no leste e sudeste da Ásia (China, Tailândia, Malásia, Indonésia) e três na América Latina (Argentina, México, Brasil). (...)

O principal efeito das Décadas de Crise foi assim ampliar o fosso entre países ricos e pobres. (...)

Quando a economia transnacional estabeleceu seu domínio sobre o mundo, solapou uma grande instituição, até 1945 praticamente universal: o Estado-nação territorial, pois um Estado assim já não poderia controlar mais que uma parte cada vez menor de seus assuntos.

Essa assertiva de Hobsbawm se confirma na exposição de Chaui (2000: 7-16), pelas seguintes palavras:

É muito recente a invenção histórica da nação, entendida como Estado-nação, definida pela independência ou soberania política e pela unidade territorial e legal. Sua data de nascimento pode ser colocada por volta de 1830.

Se acompanharmos a periodização proposta por Eric Hobsbawm, em seu estudo sobre a invenção histórica do Estado-nação, podemos datar o aparecimento de “nação” no vocabulário político na altura de 1830, e seguir suas mudanças em três etapas: de 1830 a 1880, fala-se em “princípio da nacionalidade”; de 1880 a 1918, fala-se em “idéia nacional”; e de 1918 aos anos de 1950-60, fala-se em “questão nacional”. Nessa periodização, a primeira etapa vincula nação e território, a segunda a articula à língua, à religião e à raça e a terceira enfatiza a consciência nacional, definida por um conjunto de lealdades políticas.

Observe-se, nas páginas subseqüentes, que a discussão desenvolvida neste trabalho fará menção a essas três fases mescladas em pleno século XXI.

E sobre as características da cultura política pós-moderna, Gilbert (1998: 28-9) cita a lista de Gibbins, a seguir:

Informação, conhecimento, identidade e moralidade são conceitos situados no coração da política, assim como as mudanças revistas são em seu bojo políticas. Como conseqüência, [segue] a lista de Gibbins das características da cultura política pós-moderna:

(a) uma classe média afluente ‘pós-materialista’ tem criado novas alianças em torno de questões relacionadas ao ambiente, à paz e ao feminismo, assim como novas formas de expressão na política simbólica e de estilo de vida;

(b) a ordem política e a legitimidade são ameaçadas no momento em que a objetividade, a mensurabilidade a unidade e o ego integrado são desconstruídos e substituídos pelo relativismo, pelo pluralismo, pela fragmentação e pelo policulturalismo;

(c) o pós-modernismo significa descontinuidade entre economia, sociedade e forma de governo; uma economia centrada na informação e no consumidor coincide com o aumento de conflito nas esferas pública e privada, com desconfiança crescente em relação ao governo, bem como com realinhamentos de partidos e compromissos de classe;

(d) uma cultura eclética e amorfa de pluralidade e estilos de vida misturados combina-se com uma ênfase em lazer e consumo. Liberdade, espontaneidade e gratificação passam a preceder disciplina, autoridade e previsibilidade;

(e) o caráter emergente da cultura política contemporânea é pluralista, anárquico, desorganizado, retórico, estilizado e irônico.

Dessa lista, em relação às questões propostas neste estudo, destaquem-se os itens (b), (c) e (d), pela sua proximidade com a problemática político-cultural e sociolingüística de Timor Leste, principalmente no que se refere à “cultura eclética e amorfa de pluralidade de estilos de vida”, que mescla as etnias, a língua e a cultura timorense.

Aproveitando ainda o contexto da exposição do primeiro parágrafo citado por Gilbert, acrescentamos que os eventos políticos em Timor, a partir de 1975, parecem ter sido sabotados pela imprensa mundial, com algumas exceções. É que, curiosamente, além dos textos encontrados na Internet, apenas a revista Cadernos do Terceiro Mundo se sensibilizou e reuniu esforços para divulgar a chacina ocorrida em Timor durante vinte e quatro anos, período histórico que vai de 07 de dezembro de 1975 (data da violenta ocupação indonésia) a 07 de setembro de 1999 (dia da libertação de Xanana Gusmão, líder das Forças Armadas de Libertação de Timor Leste – Falintil – preso em Cipinang, na Indonésia, que heroicamente, mesmo na prisão, seguiu comandando a luta timorense contra os invasores). Observamos, inclusive, que até o grande historiador Eric Hobsbawm, em sua obra Era dos extremos: o breve século XX, sequer faz uma referência às gravíssimas questões que envolveram esse país.

Descrição étnica e sociolingüística do povo timorense

Stuart Hall (1999: 62, 88 e 96) comenta que:

A etnia é o termo que utilizamos para nos referirmos às caracterísicas culturais – língua, religião, costumes, tradições, sentimentos de “lugar” – que são partilhadas por um povo. É tentador, portanto, tentar usar a etnia dessa forma “fundacional”. Mas essa crença acaba, no mundo moderno, por ser um mito. As nacões modernas são todas híbridas culturais.

Em toda parte, estão emergindo identidades culturais que não são fixas, mas que estão suspensas, em transição, entre diferentes posições.

O ressurgimento do nacionalismo e de outras formas de particularismo no final do século XX, ao lado da globalização e a ela intimamente ligado, constitui, obviamente, uma reversão notável, uma virada bastante inesperada dos acontecimentos. Nada nas perspectivas iluministas modernizantes ou na ideologia do Ocidente nem o liberalismo nem, na verdade, o marxismo, que, apesar de toda sua oposição ao liberalismo, também viu o capitalismo como o agente involuntário da “modernidade”, previa um tal resultado.

Essa reflexão será confirmada, nesta pesquisa, com os fatos históricos, econômicos, políticos, sociais e culturais sucedidos em Timor Leste entre fins do século XX e inícios do século XXI. Mas, para entender o cruzamento étnico e lingüístico desse povo, faz-se necessário recorrer às informações histórico-geológicas.

Numa perspectiva antropológica, a pré-história de Timor revela que este país foi povoado desde o Paleolítico. As pinturas rupestres ali encontradas datam provavelmente deste período e conservam as características das contemporâneas existentes no Norte da Austrália, em Nova Guiné e várias ilhas da Indonésia Oriental. É também desta época o estrato de quatro raças que permanecem mescladas na população timorense da atualidade: (i) o tipo vedo-australóide (c. 7000 a. C.), “de traços semelhantes aos aborígenes australianos e aos dos vedas de Ceilão”. Outra parte resulta da migração (ii) papua-melanésia (c. 3500 a. C.), com características negróides, sem familiaridade com os africanos. A esta migração se devem cinco das línguas de Timor (fataluco, macalere, macassai, mídic e búnac). Os traços fundamentais da cultura timorense provêm da migração da (iii) raça proto-malaia, que predomina em 60% da população e possui características parcialmente europóides, a quem se devem as outras línguas do Timor, de origem austronésia e malaio-polinésica. E cerca de 20% dos habitantes provêm da (iv) raça deutero-malaia, originária da fusão de mongóis com proto-malaios (www.unitel.net/udttimor/tim-hist.html. História, acesso em 26-07-2002).

Diante de tantas influências raciais, seria impossível esse povo se comunicar apenas por meio de uma única língua. Além disso, o senso de 1970 “revelou um índice de analfabetismo na casa dos 90%! A conseqüência de ordem sociolingüística é o predomínio da linguagem oral dos nativos. Surgiu, entretanto, uma forma veicular desses falares, o tétum, que simplificada e mesclada de português é conhecida como tétum praça” (Elia, 2001: 52).

O documentário Timor Lorosae, inicia com a cerimônia fúnebre de um jovem. As cenas são coloridas, porém, tristes, refletindo o contraste entre a alegria da briga/dança de galos, em superposição de imagens: ora os galos em luta, ora a violência da guerra sob cujas lanças corpos são dilacerados; ora meninas que bailam uma dança típica mesclada de gestos delicados imitativos de ondas, traduzindo, talvez, a influência hindu em cada movimento. E as lápides se sucedem com inscrições também superpostas: em todas elas, os nomes são escritos em português, uns sobre outros, de maneira que deformam a grafia. Isto leva-nos a refletir sobre o número de mortos que, sem espaço para serem sepultados, são acumulados quais fardos sem utilidade.

De um lado, a beleza natural exuberante, de outro, o choro convulsivo de mães, parentes e amigos das vítimas do holocausto.

Lucélia diz que “Lorosae”, em tétum – língua veicular (Luís Filipe Apud Elia, 2001: 52) – significa o lugar onde nasce o sol. De outra parte, “Lorosa’e” é uma dança guerreira para celebrar uma vitória a qual, nos seus primórdios, terminava com o corte das cabeças aos prisioneiros inimigos. Esses dois significados enriquecem nosso estudo, pois talvez uma acepção complemente a outra, reafirmando a antítese entre sol (vida) e corte das cabeças (morte).

Em contraponto com os Respingos históricos, a descrição do sincretismo étnico e sociolingüístico do povo timorense desde os seus primórdios, vem ao encontro das observações de Hall (1999: 62), porque permite notar o “hibridismo cultural” em Timor através da miscigenação racial − mesclada das línguas oriundas das várias origens anteriormente descritas − sobre a variabilidade lingüística local, desdobrando-se em línguas, dialetos e falares. Este fato é evidenciado na entrevista que o professor Luís Filipe Thomaz, da Universidade Nova de Lisboa, concede ao documentário. Desse modo, ele afirma que o povo maubere é “constituído de muitas etnias de tradição guerreira: colecionavam as cabeças dos inimigos como troféu (tradição da caça às cabeças) e que o povo timorense é resultado do cruzamento de várias etnias: os aborígines australianos, os antepassados do propúrios (?) e os austronésios. Estes últimos constituem a base fundamental do povo timorense porque trouxeram, através da Ásia, o aspecto físico predominante no Timor e as línguas: o tétum e o baiqueno; portanto, essas línguas são austronésicas”.

Assim, há, grosso modo, três manifestações lingüísticas distintas predominando em Timor Leste: o tétum (língua veicular), os dialetos arraigados (manifestações locais) e o português (terceira língua utilizada, hoje, por parte da maioria). Ressaltamos que, durante a projeção da fita, percebe-se claramente essa mistura de línguas nas cerimônias religiosas, quando a objetiva as registra.

História e língua em Timor Leste
da ocupação portuguesa à independência

Além do professor Filipe Thomaz, o documentário desfila os depoimentos das personalidades de relevo político e social, tais como José Alexandre Gusmão, Kay Rala Xanana Gusmão, atual presidente de Timor Leste, que fora condenado à prisão perpétua, tendo sido comutada a sentença para 20 anos, todavia, ele cumpriu pena por oito anos, por força das pressões da opinião pública mundial; Max Sthal, jornalista de origem holandesa que documentou, junto com outros profissionais, “a repressão a um protesto realizado por jovens durante o enterro de um colega, no cemitério de Santa Cruz, em 12-11-1991. O saldo foi trágico: 273 mortos” (TIMOR Lorosae finalmente livre. Cadernos do Terceiro Mundo, Rio de Janeiro, n. 241, p. 64, mai./jun. 2002); Taur Matan Ruak, líder da Fretilin, grupo de resistência aos indonésios oposto à Falintil; Comandante Lerhi, representante da ONU; senhor e senhora Gomes, vítimas da violência Indonésia, relatam, de maneira comovente, a morte dos filhos pequeninos por inanição; Alberto Pereira dos Santos, representante do povo; Maria Domingos, membro da FOKUPERS, organização que denuncia as atrocidades indonésias cometidas contra as mulheres e meninas timorenses; Dom Carlos Filipe Ximenes Belo, bispo de Dili, Prêmio Nobel da Paz, em 1996, junto com o representante internacional da resistência, José Ramos Horta; Manuel Carrascalão, político timorense cujo filho fora cruelmente assassinado pelas milícias organizadas e incitadas pelo exército indonésio a matar os próprios compatriotas de Timor; e Maria Olandina Caeiro, que denuncia a droga disseminada pelos indonésios entre as milícias timorenses como estratégia de guerra, levando irmãos a se destruírem: eram filhos que assassinavam os pais e pais que exterminavam a própria família ao sorverem a droga anginguila, em tétum, que quer dizer cão maluco.

No segundo capítulo de sua obra, Elia (2002: 16-55) explicita que chamará “Lusitânia” ao espaço geolingüístico ocupado pela língua portuguesa, no conjunto de sua unidade e variedade”. Informa ainda que “lusofonia” refere-se a este espaço e que “lusofalantes” são seus usuários. Com isso, ele subdivide a Lusitânia atual em “Lusitânia Antiga”, compreendida entre Portugal, Madeira e Açores; “Lusitânia Nova”, que é o Brasil; “Lusitânia Novíssima”, constituída pela descolonização portuguesa abrangendo Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe – países que adotaram o português como língua oficial; “Lusitânia Perdida”, compreendendo “regiões da Ásia ou da Oceania onde já não há esperança de sobrevivência para a língua portuguesa” (grifo nosso), envolvendo a Índia, Macau e Timor; e “Lusitânia Dispersa”, que são as comunidades lingüísticas do português salpicadas aqui e ali por regiões não lusófonas do mundo.

O grifo acima visa a esclarecer que, à época da publicação da obra de Sílvio Elia (2002), os acontecimentos político-sociais em Timor Leste estavam ainda indefinidos quanto à questão da língua portuguesa, pois somente em 2002 é que este país apresentou-se como candidato a ingressar na Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP). Esta candidatura foi apresentada, pessoalmente, por Xanana Gusmão ao presidente de Moçambique, Joaquim Chrissano, durante reunião ministerial dos sete países que compõem esta comunidade (Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné Bissau, São Tomé e Príncipe, Portugal e Brasil), realizada em Dili. A adesão de Timor Leste só foi concretizada entre 31 de julho e 7 de agosto de 2002, durante a IV Conferência da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, ocorrida em Brasília, quando a cúpula oficializou a inclusão de Timor Leste como país membro da CPLP (OS OLHOS e ouvidos do Timor. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 28 jul. 2002). Por isso, A Língua Portuguesa no Mundo não informa as últimas ocorrências históricas em Timor.

Segundo as noções contidas nessa mesma obra, entendemos por comunidade lingüística a reunião de grupos humanos que, ao adotarem um código verbal comum, mesmo não sendo exclusivo, o impõem a todos, através de normas coercitivas − e eis aí a presença da força centrípeta − para preservar o vínculo de amparo mútuo. Sendo assim, a CPLP tem cumprido seu papel de manter a solidariedade social entre seus membros, visto que Timor Leste foi acolhido como o oitavo país deste grupo.

Importa agora realizarmos uma breve digressão, para compreender, num passeio histórico, o modo pelo qual a língua portuguesa chegou a Timor Leste na condição de língua transplantada, sendo adotada, de um lado, por uma pequena parte da população − constituída da elite, numa restrita esfera comunicativa − e, de outro, mescla-se à língua local, derivando daí o tétum, língua veicular. Por isso, a professora Isabel Jerônimo, na condição de chefe do Departamento de Língua Portuguesa da Universidade Nacional de Timor Loro Sae, assevera que “há uma grande correspondência de vocábulos entre o Português e o Tétum” (Internet, julho/2002: essas informações foram substituídas recentemente).

Sob uma perspectiva geopolítica, a localização geográfica desta pequena ilha, cuja capital é Dili, configurou-se como um ponto de contato entre europeus e asiáticos, favorecendo a instalação dos navegadores portugueses, desde os primórdios do séc. XVI. Dessa maneira se estabeleceu o intercâmbio entre os povos do Arquipélago da Insulíndia (Índia Insular), também conhecido por Arquipélago Malaio − constituído de vários Estados soberanos ao longo dos tempos, tais como: República das Filipinas, República da Indonésia, Estados da Austrália, Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte e República Portuguesa (administradora jurídica de Timor Leste até o final do século XX). Portanto, os mares de Timor e das Flores são repletos de navegadores provenientes da Europa e das várias regiões asiáticas. Assim inferimos que, devido às influências culturais indo-javanesa (c. 1049-1527), chinesa (no comércio de sândalo, entre os séculos XV e XVIII) e malaio-muçulmana (nos séculos XV-XVI), a língua portuguesa naturalmente encontraria resistência para se alojar no interior do povo maubere, à época das navegações.

Informa-nos Elia (2002: 52) que o professor Luís Filipe estabelece quatro fases distintas na ocupação portuguesa, a saber: 1a) é de ordem exclusivamente comercial; 2a) inicia propriamente a colonização, com a presença de missionários (jesuítas e dominicanos), a partir de meados do século XVI; 3a) representada por interesses econômicos e políticos, principia uma organização político-administrativa, com o desembarque de tropas militares e a nomeação de um governador; 4a) é a da consolidação do poder político português na ilha, a partir do enfraquecimento do domínio dos régulos locais (liurais), nos fins do século XIX, que passaram a ser tutelados pela administração portuguesa.

Sobre os régulos, acrescentamos a seguinte informação: desde os seus primórdios, Timor era dividido em dezesseis reinos no lado ocidental contra 46 na parte oriental. Os primeiros eram submetidos ao domínio de um grande Liurai de Senobai, enquanto os segundos aceitavam a supremacia de outro Liurai de Behale. No início de 1700, o governador António Coelho Guerreiro (1702-1705) retirou a supremacia destes dois régulos maiores e os submeteu à autoridade portuguesa. Dessa maneira, os régulos seguiram chefiando seus Sucos, algumas povoações e aldeias (leo, lissa ou ili, conforme o dialeto). Assim, tanto os liurais como os chefes de suco eram príncipes (datós) que constituíam a nobreza. Recebiam do povo o imposto da terra (rai-ten) e repassavam para os cofres portugueses uma parcela destes tributos (http: //www.unitel.net/udttimor/tim-hist.html. Reinos, 26-07-2002).

A partir desses registros, arriscamos afirmar que Portugal fora um colonizador, até certo ponto, pacífico, pois agira semelhantemente aos romanos quando expandiram seu território: respeitavam a cultura e as instituições dos povos dominados, todavia recolhiam pesados tributos destes, sob imposição político-militar.

Fechando o ciclo de dominação portuguesa em Timor, faremos nossas as palavras de Sílvio Elia (2002: 53):

Com a “Revolução dos Cravos”, acelerou-se o processo de descolonização. Em 1975, o Governo Português criou em Timor um governo de transição ao qual caberia traçar os rumos da independência em marcha. Mas, entre as próprias forças ditas revolucionárias, surgiram cisões, que levaram à luta armada. O resultado foi o enfraquecimento militar interno, o que favoreceu a invasão da ilha pela Indonésia.

Durante a projeção do filme, Xanana Gusmão lembra que sua geração viveu três períodos de destruição, sendo o último realizado pela Indonésia. Com expressões de otimismo, ele revela que, assim como seu povo já havia reconstruído Timor nas vezes anteriores, com certeza isso seria feito novamente.

Eric Hobsbawm, em Respingos históricos, informa o interesse dos Estados Unidos da América em investir na Indonésia, emprestando-lhe milhões de dólares. À época da invasão militar a Timor Leste, Gerald Ford (presidente americano) visita Suharto (presidente indonésio) e dez horas após o retorno do líder americano aos EUA, ocorre a violenta ocupação em 07-12-1975.

A partir desta data, crimes de guerra, holocaustos sobre uma população indefesa, são cometidos sem piedade. E, sem apoio dos países ricos, os líderes da luta armada pedem socorro ao Brasil, a Moçambique e Angola. Portugal parece ignorar as terríveis fatos em Timor Leste até a realização do seminário internacional sobre Timor, em 1980. Graças a este seminário, Lisboa responde positivamente, pela primeira vez, em favor do povo maubere. E a ONU, sob o comando do brasileiro Sérgio Vieira de Mello, estabelece uma administração transitória, após acordo assinado em 5 de maio de 1999, quando o referendo de autodeterminação manifesta a vontade de 80% dos timorenses se desligarem da Indonésia. Dá-se início à negociação pela paz, rumo à independência desse povo sofrido.

Considerações finais
repercussão dos fatos histórico-sociais sobre a língua

Acreditamos que a língua tem sido o elemento de primordial importância para assegurar a independência de Timor Leste, já que três fatores concorreram para a divulgação do genocídio e a violação dos direitos humanos contra a população maubere: a premiação do Nobel da Paz para o bispo de Dili, Dom Ximenes Belo e o jornalista José Ramos Horta; o anúncio da Indonésia para o mundo sobre a prisão de Xanana Gusmão; as inúmeras viagens de Mari Alkatiri (atual primeiro ministro de Timor Leste) aos países de língua portuguesa em busca de apoio. Essa assertiva é confirmada pela demonstração gentil e fraterna com que Beatriz de Bissio, em artigo publicado na revista Cadernos do Terceiro Mundo, no 241, se refere às relações entre Brasil e Timor Leste: “Se a ‘pátria é a língua’, como disse Camões, era um pedaço da nossa pátria maior que estava sendo vítima de um genocídio”.

Entre os elementos componentes da etnia citados por Hall, notamos que a língua portuguesa tem sido um marcante traço de identidade cultural dos timorenses, o que já foi explicitado quanto à formação étnica do povo maubere, aos eventos histórico-sociais de Timor Leste e à necessidade que esta nova nação teve em procurar apoio na Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP). Com isso se verifica na nossa língua a tendência ao substrato, em virtude do apoio político externado principalmente por Moçambique, Angola e Brasil.

Todavia, para cada época histórica dos mauberes, as relações de substrato, adstrato e superstrato se estabelecem de forma diferenciada. Dessa maneira, os lusitanos jamais chegaram a se fixar lingüisticamente como superstrato, pois o português tem sido ora adstrato (durante todos os séculos de colonização portuguesa), convivendo com o tétum, ora substrato, quando se verificam as marcas lingüísticas do português na formação do tétum. Desse modo, a configuração lingüística de Timor possui esta característica. Finalmente, se a política cultural da República de Timor permanecer incentivando o ensino da língua portuguesa desde a alfabetização até a universidade e difundindo a cultura erudita e popular por meio da lusofonia, certamente este substrato predominará.

O lingüista português Eduardo Paiva Raposo, no tocante ao aspecto sociolingüístico, assevera que “a realidade da noção de língua portuguesa, aquilo que lhe dá uma dimensão qualitativa para além de um mero estatuto de repositório de variantes, pertence, mais do que ao domínio lingüístico, ao domínio da história, da cultura e, em última instância, da política”. Somente esta citação validaria nosso estudo, todavia, reiteramos o fato de se evidenciar uma tendência à implementação da língua portuguesa como superstrato em Timor, obedecendo à vontade nacional do povo maubere.

Conforme as observações do professor Sílvio Elia (op. cit), a língua portuguesa em Timor Leste, então, pode ser caracterizada como: língua transplantada, língua oficial, língua de cultura e, mais recentemente, língua padrão.

Curiosamente, estes fatores fazem-nos refletir sobre a distinção entre uma colonização lusitana de certo modo “pacífica” e uma invasão Indonésia devastadora, que levou o povo a optar pela língua portuguesa como fator de identidade étnica, rejeitando definitivamente a influência lingüística asiática. Por estas razões, Timor Leste vive hoje uma fase de reconstrução, qual fênix transformadora, em plena pós-modernidade, resgatando o conceito (aparentemente diluído) de nação, para realizar, em um amplexo fraternal lingüístico-comunitário, a união dos países de língua portuguesa.

Por isso, agora o poeta não canta mais sozinho; uniremos à sua a nossa voz em uníssono:

Lembranças Propositadas

Sinto ainda o cheiro do sândalo e lembro o aroma
da vida e a expectativa
de colheitas abundantes.
Lembro tantas coisas belas
no seio das famílias
humildes plantadas no solo
timorense.
Lembro o Natal herdado, o
café sempre presente, o
arroz, o milho, búfalo...
Tudo numa harmonia que
escapava à percepção
porque a ecologia é útil,
não é poesia. É sobretudo
expressão de viver!
Lembro ainda o Natal sem
prendas, sem fartura...
Lembro um Natal herdado,
certo, um Natal só com um
presépio, a partilha de uma
noite ou um dia,
Um menino e doces,
canções pedindo
a companhia dos anjos ou
que se repetisse a magia de Belém.
É que encanto pode vir
tão só de uma noite de
pobreza cantada ou de um
minuto preso à esperança
de dias belos!

(Crisódio T. Araújo, In Kaibauk No 22).

Referências BIBLIOGRÁFICAS

CHAUI, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. In Coleção História do Povo Brasileiro. 1ª ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.

ELIA, Sílvio. A língua portuguesa no mundo. 2ª ed. São Paulo: Ática, 2001. (Série Princípios).

GILBERT, Rob. Cidadania, educação e pós-modernidade. In: SILVA, Tomaz Tadeu da & MOREIRA, Antônio Flávio (orgs.). Territórios contestados: o currículo e os novos mapas políticos e culturais. 2ªed. Petrópolis: Vozes, 1998.

HALL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. 3ª ed. Rio de Janeiro, DP&A, 1999.

HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

MIRANDA, José Luís Carneiro de & GUSMÃO, Heloísa Rios. Artigo científico: estrutura e redação. Niterói: Intertexto, 2000.

OS OLHOS e ouvidos do Timor. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 28 jul. 2002.

TIMOR Lorosae finalmente livre. In: Cadernos do Terceiro Mundo. Rio de Janeiro, n° 241, p. 40-64, mai./jun. 2002.

www.unitel.net/udttimor/tim-hist.html História; Geografia; Reinos; Direito; Poesia, 26-07-2002.

 

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