GRAMÁTICA TEXTUAL: UM PONTO DE VISTA

Aileda de Mattos Oliveira (FGS e USS)

Desde o início de seu aprendizado, a criança e, posteriormente, o jovem universitário ouvem dizer que é na gramática onde se encontram as normas que determinam o bem falar e o bem escrever. Assim deve pensar, também, a maior parte dos falantes que passou pelos bancos escolares. Gramática, então, passa a ser, por metonímia, um livro repleto de regras e dividido em capítulos que tratam, de maneira estanque, os subsistemas da língua. Ir à Gramática, pesquisar na Gramática, significa ir a algo, utilizar-se de algo exterior ao falante, como se ele já não possuísse a sua gramática particular, praticada desde tenra idade.

O que aqui se faz é a constatação de um fato e não uma crítica à gramática normativa, pois o papel que cabe a ela é, justamente, o de descrever as ocorrências na organização frasal, mostrar as diferentes estruturações sintáticas, avaliar o que pertence à natureza da língua no que se refere à sua formação lexical ou fonético-fonológica entre outros ensinamentos. Naturalmente, por ter essa função reguladora, a gramática normativa torna-se prisioneira de sua própria constituição.

Há que se considerar, no entanto, as produções lingüísticas que se organizam mesmo com a ausência dos elementos gramaticais usuais na norma culta, articuladores da cadeia sintática. Isso significa que no caso de o objeto de análise passar a ser considerado uma unidade lingüístico-semântica, um texto, outros mecanismos analíticos vão ser acionados, a fim de estabelecer os elos que compõem essa unidade, embora estejam ausentes na linearidade da forma. Esses mecanismos são postos em prática dentro da visão do que se denomina gramática textual.

Condicionados ao tipo de gramática descritiva, cujo campo de atuação se estende pelos domínios da frase, da oração, do período, a expressão gramática textual pode causar uma certa ambigüidade aos estudantes, por não perceberem, de imediato, a distinção entre as duas concepções, respectivamente, de estudo da língua e de estudo do texto, talvez pela similaridade terminológica da própria palavra ‘gramática’.

Surgida na Alemanha nos idos de 1960, esse novo caminho que se abriu em relação ao estudo do texto, tendo como base a teoria gerativista, conquistou seguidores em outros países. Como toda teoria que surge dá margem a que novas posições conceituais sejam defendidas, recebeu a gramática textual outras denominações, dependendo da corrente à qual se filiavam os seus autores e do conceito que faziam de texto. Assim, a variável nomenclatura que batiza essa disciplina, como textologia, translingüística, hipersintaxe etc. comprova os distintos pontos de vista dessa modalidade de análise e concorre para que não se tornem transparentes aos iniciantes as noções introdutórias do seu campo de trabalho.

Uma outra linha de análise textual, também surgida na mesma época (década de sessenta) tem a preferência de alguns outros estudiosos que a denominam de lingüística textual ou lingüística do texto, por considerar que o indivíduo interage com outro por meio de uma unidade textual e não por frases isoladas. Nesse caso, há determinados fatores que concorrem para que uma produção lingüística do indivíduo, seja considerada um texto, como por exemplo, o da coesão e o da coerência textuais. A intertextualidade e a intencionalidade são alguns outros fatores que se somam aos anteriores para configurarem o que se designa texto.

A expressão lingüística textual tende a diminuir, de uma certa forma, essas dificuldades, considerando que a palavra gramática, sendo aí eliminada, contribui para tornarem mais definidos os objetivos dessa nova disciplina que vai preocupar-se, entre outras coisas, com os mecanismos lingüísticos responsáveis pela composição da trama de uma dada unidade comunicativa.

Diante de um elenco de teorias e reconhecendo que a produção de um texto está em relação proporcional ao desempenho lingüístico do emissor, acredita-se que uma única teoria não satisfaz a todos os requisitos exigidos na leitura e interpretação de diferentes realizações textuais. Sabe-se que se manter enquadrado numa determinada linha teórica de análise do texto, pode afetar a avaliação desse mesmo texto, porquanto se incorrerá na obediência a padrões previamente estabelecidos, que poderão não ser suficientes, em alguma situação, à análise do objeto em estudo.

Na visão tradicionalista de análise de um texto, a tendência em verificar as conexões oracionais determinadas pelos cânones gramaticais é o primeiro passo. Isso porque a gramática normativa preocupa-se com as estruturas frasais, com a organização lógico-sintática, cujos elos de ligação são, basicamente, os conectores e os transpositores. Assim, esses instrumentos gramaticais passam a ter uma carga funcional acentuada no trabalho de estabelecer a relação entre as orações. Isso é observado no exemplo que segue:

O Brasil precisa acelerar com urgência investimentos para aumentar a sua capacidade de produção e assim assegurar um novo ciclo de crescimento da economia, sem o qual dificilmente o país conseguirá resolver seus graves problemas sociais. (O Globo, 2/1/2005, ‘Editorial', p. 6.)

No trecho acima, “para aumentar a sua capacidade de produção” é a finalidade dos “investimentos”, cuja conseqüência é “assegurar um novo ciclo de crescimento da economia” que, por sua vez, é condição essencial para que o país consiga “resolver seus graves problemas sociais”. Isso satisfaz o que estabelece a análise sintática. No entanto, se a oração introduzida por “e assim” indica uma conseqüência, significa que a oração anterior, introduzida pelo infinitivo (=para que aumente a sua capacidade de produção) mesmo sendo classificada como final, acumula o valor semântico de causa. Seguindo esta mesma linha de raciocínio, a oração classificada como principal “O Brasil precisa acelerar com urgência investimentos” também transmite a noção de causa em relação às demais citadas. É, aliás, a causa principal da ocorrência positiva dos demais fatos. Há, então, uma cadeia causal e uma cadeia conseqüencial. Esta interpretação é referendada pela gramática do texto.

Essa seqüência de palavras, de orações, aí organizadas de tal maneira a configurarem um período, não é organizada de maneira aleatória.. Ao contrário, há instrumentos lingüísticos que vão compondo a cadeia relacional, de maneira recorrente, como o pronome em “sua capacidade de produção” e em “seus graves problemas sociais” que se referem de maneira anafórica a “Brasil”, como anafórico é também “o qual”, elemento referencial de “novo ciclo de crescimento da economia” o que confere ao todo, uma unidade semântica de coerência temática, por meio de elementos de coesão. Por este caminho segue a lingüística textual (ou lingüística do texto).

Se é importante a compreensão de um determinado texto, é importante, também, que a leitura que se faz dele seja distinta da leitura que se faz de um segundo texto e assim sucessivamente, porque as intenções de quem escreve são personalíssimas e determinam os seus objetivos a atingir. Isso significa que o tratamento que se dá a cada um deve ser diferenciado, levando-se em conta as diferenciadas circunstâncias de sua produção

Há, em primeiro lugar, que definir texto. Essa preocupação já se encontra em Quintiliano (c.30-c.100 d.C.) para quem textus è “aquilo que reúne, junta ou organiza elementos diversos e mesmo dissociados, [...] aquilo que os transforma em um todo organizado” (CHARAUDEAU, 2004: 466). Contemporaneamente, Halliday e Hasan afirmam que

Um texto é mais bem pensado não como uma unidade gramatical, mas antes como uma unidade de tipo diferente: uma unidade semântica. A unidade que o texto tem é uma unidade de sentido em contexto, uma textura que expressa o fato de que ele se relaciona como um todo com o ambiente no qual está inserido (Op. cit. p. 467).

Pode-se apontar uma convergência de pensamentos entre o orador latino e os lingüistas modernos, tendo em vista que a visão do primeiro em considerar que os elementos distintos que não se associam por meio da lógica gramatical são transformados num todo organizado, significa a existência da conexão semântica e do contexto (“aquilo que os transforma”) como determinadores da coerência e, portanto, da mensagem.

A definição que segue, por ser eclética, parece ser a mais conveniente, uma vez que há que ter em conta as diferenciadas manifestações lingüísticas, produzidas por indivíduos de diferentes desempenhos gramaticais. Para Marcuschi,

Proponho que se veja a Lingüística do Texto, mesmo que provisória e genericamente, como o estudo das operações lingüísticas e cognitivas reguladoras e controladoras da produção, construção, funcionamento e recepção de textos escritos ou orais. Seu tema abrange a coesão superficial ao nível dos constituintes lingüísticos, a coerência conceitual ao nível semântico e cognitivo e o sistema de pressuposições e implicações a nível pragmático da produção do sentido no plano das ações e intenções. Em suma, a Lingüística Textual trata o texto como um ato de comunicação unificado num complexo universo de ações humanas. Por um lado deve preservar a organização linear que é o tratamento estritamente lingüístico abordado no aspecto da coesão e, por outro, deve considerar a organização reticulada ou tentacular, não linear portanto, dos níveis de sentido e intenções que realizam a coerência no aspecto semântico e funções pragmáticas. (Apud KOCH, 1991: 14)

Devemos, porém, lembrar que não se pode limitar a idéia de texto a uma realização verbal, mas a todas as manifestações expressivas, independentes dos signos utilizados na comunicação, sejam eles pictóricos, sejam cinéticos ou de outra categoria, embora as definições aqui se restrinjam à atividade verbal.

Quando se estuda um texto escrito, é comum dizer-se que determinado escritor recriou a língua. Esse recriar não é senão uma maneira pessoal de dizer algo, diferentemente do modo que outro diria. Para isso, no entanto, terá ele que dominar as normas gramaticais, pois não se pode inovar sem que se tenha prévio conhecimento da forma conservadora. É a partir da forma conservadora, tradicional ou clássica e o cotejo que se faz com outras formas recriadas, que se assinalam, num texto, as marcas inovadoras e que são admitidas como tais.

Isso ocorre nos textos trabalhados em sala de aula, que são predominantemente literários, nos quais, justamente, o estilo do autor prevalece (é a sua recriação), desviando-se, muitas vezes, da linha determinada, de maneira canônica, o que torna conflitante a teoria do professor sobre os valores sintáticos dos termos e a atividade prática que se exige do aluno, pois ele se confronta com as preferências estilísticas de cada autor, nem sempre obedientes aos preceitos normativos.

A gramática estabelece, por exemplo, que o adjetivo funciona como um delimitador do substantivo, determinando a sua extensão e, por essa razão, aumentando a sua compreensão, pelos detalhes que a ele são acrescentados. Dizer que “O galo cantou de madrugada” não esclarece qual deles foi o anunciador do amanhecer, o que não ocorre em “O galo branco cantou de madrugada”, quando o adjetivo em destaque exclui todos os outros galináceos, por ser eminentemente especificador. Além disso, o adjetivo é uma categoria que emite um julgamento de valor de quem o expressa em relação ao substantivo ao qual se relaciona. Assim, quando Graciliano Ramos, habitualmente tão econômico no emprego de adjetivos nas suas descrições, destaca, por meio dessa categoria gramatical, a sombria casa em que a personagem - ele mesmo - , viveu em criança, enfatiza o vazio familiar e a ausência de qualquer manifestação afetiva.

“Achava-me num deserto. A casa escura, triste; as pessoas tristes” (Um cinturão. RAMOS, [1969]: 48).

Os adjetivos, que foram destacados em negrito (e será assim nos demais exemplos), não são os únicos a externarem a posição crítica do narrador; a locução adverbial “num deserto”, também é uma expressão qualificadora por conotar tristeza, aridez e abandono. Todos os elementos que compõem a organização frasal se inter-relacionam semanticamente, independentes de pertencerem à mesma categoria gramatical.

A gramática textual liberta o leitor dessa tutela condicionadora dos elementos conjuncionais e o conduz a outros caminhos para a apreensão da mensagem. É o mesmo Graciliano que se utiliza da característica adjetiva dos verbos para transmitir as suas impressões da infância:

“A mão cabeluda prendeu-me, arrastou-me para o meio da sala, a folha de couro fustigou-me” (Op. cit., p. 48)

“Prender”, “arrastar” e “fustigar”, por conotarem a idéia de ação de uma pessoa violenta, poderosa, dominadora, mantêm conexão com o adjetivo cabeluda, que embora se referindo ao termo mão, na realidade animaliza o todo, o homem, de quem foi pintado o quadro de prepotência. Tem-se, também, nesse caso, distintas formas gramaticais conectadas (verbos e adjetivo) para consolidar a intenção do autor: reiterar a força da injustiça, integrada aos valores patriarcais, numa visão crítica de fatos que só o distanciamento temporal lhe poderia dar.

Não é necessário, portanto, obrigatoriamente, fazer uso do adjetivo para a descrição de algo; outros instrumentos lingüísticos podem também realizar o mesmo papel, como no caso citado. Por outro lado, a presença do pronome enclítico me que se liga a cada um dos verbos conotadores da arbitrariedade do agente da ação, mantém o elo coesivo tanto na organização linear da estrutura oracional, quanto no nível semântico, atando a personagem na rede que compõe a unidade textual.

No texto, a seguir, de Adonias Filho, observa-se que o emprego do aposto pode ser utilizado de diferentes maneiras, sem o formal emprego de dois pontos, como é mais usual na exemplificação da gramática normativa.

Outros vieram para ajudá-lo naquele trabalho de todos os dias, os tijolos empilhados, o barro na areia, levantavam uma casa. As paredes, a sala, os dois quartos, a cozinha, a varanda. Tudo, inclusive as telhas arrumadas, tudo a jindiba viu. (ADONIAS FILHO, 1983: 4).

(Empilhar) os tijolos, (juntar) o barro na areia e levantar uma casa é o aposto enumerativo de “trabalho de todos os dias”. Da mesma forma, o conjunto frasal em que são destacadas: “As paredes, a sala, os dois quartos, a cozinha, a varanda” não é, senão “uma casa” descrita por meio de suas partes constitutivas. Por esta razão, neste último caso, a recriação de Adonias foi organizar uma estrutura composta apenas de substantivos como se fosse uma oração absoluta, porém, sem verbos expressos. Além disso, “levantavam uma casa”, além de ter valor catafórico em relação a “As paredes, a sala, os dois quartos, a cozinha, a varanda” é, simultaneamente, uma conseqüência do “trabalho de todos os dias”. Não houve necessidade de empregar uma conjunção consecutiva, uma vez que a depreensão do fato conseqüencial é semanticamente clara. Esquematizando essa análise, tem-se:

1.“trabalho de todos os dias”, elemento catafórico em relação a “os tijolos empilhados, o barro na areia, levantavam uma casa”.

logo,

2.“os tijolos empilhados, o barro na areia, levantavam uma casa” é aposto enumerativo de “trabalho de todos os dias”, considerando a função que teria na gramática normativa.

3.“levantavam uma casa”, elemento catafórico em relação a “As paredes, a sala, os dois quartos, a cozinha, a varanda” que, igualmente, funciona como aposto enumerativo dentro da visão tradicional da análise sintática..

logo,

4.”levantavam uma casa“ é uma conseqüência do “trabalho de todos os dias”

5.“Tudo, inclusive as telhas arrumadas, tudo a jindiba viu”: “tudo”, nas duas posições é um elemento anafórico, porque remete ao que foi anteriormente dito. Tem, assim, a função sintática de aposto resumitivo.

Acrescenta-se, aqui, o processo metalingüístico dessa unidade textual.

É um fato a destacar, a tendência das produções textuais, serem, atualmente, pautadas preferencialmente em estruturas coordenadas (paratáticas) e, não, subordinadas (hipotáticas), significando que o falante está adaptando a língua às contingências modernas de comunicação. Essas contingências podem ter variadas razões: ou para tornar mais rápida e menos complexa a transmissão da mensagem; ou pela dificuldade no emprego dos transpositores subordinados; ou porque a mutação lingüística já se faz acentuada, devido às exigências pragmáticas da inter-relação social e não se deseja admitir o fato.

Horst Isenberg, da corrente gerativista, citado por Fávero e Koch (1994: 51 e seg.), destaca construções, em língua alemã, que se relacionam sem a ausência de conectores. A mesma ocorrência é freqüente em língua portuguesa e coletaram-se exemplos de estruturas similares para servirem de ilustração ao trabalho em questão.

Um dado que eu não sabia, e que aumenta o terror: a velocidade da tsunami é quase igual a de um jato. Foi, em parte, por isso que as ondas atingiram as costas de surpresa, sem aviso, é que houve tantas mortes. Mas foi também porque a área mais atingida não tinha nenhum sistema de alarme (VERÍSSIMO, 2/1/2005: 7.). (Acrescentou-se o negrito)

Sabe-se que, pela análise tradicional, a conjunção adversativa “mas” deve introduzir uma oração, cuja idéia se oponha à idéia da oração anterior. No caso acima, o cronista não teve a intenção de tornar conflitantes os dois fatos apresentados, mas o de torná-los adicionais, o que confere ao “Mas” de seu texto um valor de conjunção aditiva “E”. Justamente, esses dois fatos adicionais, assinalados em negrito no texto, são a causa de ocorrerem “tantas mortes”.

Nem sempre, porém, a interpretação das estruturas enunciativas pode se valer dessa similaridade semântica dos conectores, porque, como já se fez referência anteriormente, cada produção textual é diferente de outra e, portanto, há que recorrer a outros meios lingüísticos de atingir-se a mensagem nela encerrada. Como ilustração, reproduz-se, aqui, uma parte da entrevista do diretor-geral da Polícia Federal ao repórter de O Globo:

A PF não disparou um único tiro nessas grandes operações...

LACERDA: É uma rigidez na execução das operações. Ao prender, tem que imobilizar. Pouca conversa e muita ação. Todo trabalho que a PF faz é submetido ao Ministério Público e ao Judiciário. Eventuais excessos serão levados ao Judiciário. Tinha um ditado que a gente usava nas aulas de ética da Academia que era ”Não seja arrogante com o humilde e nem humilde com o arrogante”. Infelizmente, na história da polícia como um todo, não é bem assim que acontece”. (O Globo, 2/1/2005, ‘O País’, p. 9.)

Numa primeira leitura, a resposta do emissor parece não se coadunar com a constatação feita pelo repórter. A relação assindética entre os enunciados torna-os construções soltas, desprovidas, à primeira vista, de coesão e de coerência, difíceis, portanto, de serem aceitas ou classificadas nos limites da análise tradicional. Nas leituras subseqüentes, porém, começa-se a perceber o elo coesivo implícito, elíptico, como elemento dispensável para o emissor, em razão de o contexto estabelecer as condições de interpretação. Essa característica não é exclusiva de uma entrevista oral (convertida em matéria escrita}, pois há escritores que se utilizam dessa forma sincopada de construção textual.

Para analisar as palavras do agente federal, é necessário recorrer à gramática do texto, a fim de esclarecer a mensagem que se mantém encoberta pelo que se consideram, aqui, construções-pinceladas e que, com o intuito de evitarem as respostas objetivas a especulações impertinentes do repórter, penetraram pelos caminhos atenuadores do eufemismo.

De saída, observa-se uma redundância nas idéias enunciadas: “rigidez” está relacionado a “imobilizar”; “execução das operações” é o mesmo que “prender”. Os verbos “imobilizar” e “prender” preenchem-se de valores conceituais relacionados ao campo semântico de “aprisionar”. Todas essas formas estão resumidas em “Pouca conversa e muita ação”. O que se tem, na realidade, é a tematização de um mesmo dado, apresentado de maneiras diferentes.

Quando o emissor diz que “Todo trabalho que a PF faz é submetido ao Ministério Público e ao Judiciário”, parece uma informação desnecessária, uma vez que o interesse do repórter está centrada na atuação da PF e não em outros órgãos adjuntos. No entanto, o elo coesivo de causa e conseqüência torna-se evidente, pois o trabalho só foi bem realizado (conseqüência) porque o Ministério Público e o Judiciário já foram antecipadamente cientificados (causa), o que dá respaldo aos policiais na realização de um bom trabalho de equipe.

O ditado citado pelo diretor-geral e que foi aprendido nas aulas de ética da Academia, tem a inversão da palavra predicativa (“Não seja arrogante com o humilde e nem humilde com o arrogante”) como uma maneira de demonstrar a capacidade de o policial modificar seu comportamento (“arrogante”; “humilde”) diante de pessoas de contextos sociais distintos e manter, um tratamento austero e, ao mesmo tempo, justo.

Essa foi uma forma de demonstrar a grandiosidade do ato (“não disparou um único tiro”) e a perfeição do trabalho em equipe, apesar de, no final, fazer uma concessão aos desvios éticos ao afirmar que “Infelizmente, na história da polícia como um todo, não é bem assim que acontece”. Isso é o mesmo que dizer: “Embora tenhamos que ser humildes em determinadas situações, alguns não seguem os ensinamentos”..

Nesse fragmento de entrevista, os elos conectores do pensamento do agente federal não estão disponíveis na estrutura de superfície dos enunciados e que se devem buscar em outros níveis as interpretações semânticas que estão integradas a um determinado contexto que se deve antecipadamente conhecer. Se este contexto, não for previamente identificado, ou considerado factível, poderá ocorrer um equívoco interpretativo que redundará num erro de avaliação do todo analisado.

Chega-se à conclusão de que da mesma forma que não é possível ignorar a importância da gramática normativa nos estudos da língua em quaisquer níveis de ensino, considera-se também inadmissível não aceitar a contribuição da lingüística nos fatos que ela (a gramática) não pode resolver nos limites de seus domínios.

A inter-relação das duas disciplinas deve ser a preocupação do estudioso do assunto, pois na análise do texto nem sempre se deparará com estruturas lingüísticas definidas. Mesmo nestas, elementos gramaticais podem acumular valores anteriormente não percebidos. Assim, do nível linear ou de superfície onde se organiza a estruturação dos elementos lingüísticos deve-se partir para o nível semântico, determinar o contexto do texto e estabelecer a sua coerência.

No texto de Adonias Filho, fez-se, justamente, uma relação entre a lingüística e a sintaxe, quando se salientaram as formas estruturais com valor de aposto. É necessário dizer que os elementos sintáticos são elementos coesivos e vice-versa e esses detalhes não podem deixar de ser observados porque as estruturas lingüísticas são as mesmas e por serem os elementos gramaticais que as constituem também os mesmos. Portanto, não se pode ter uma visão estanque do funcionamento da língua quando se trata de sua realização como texto.

Se são diversos os caminhos teóricos que têm o texto como objeto de interesse, ou se esses caminhos mantêm pontos em comum, há que conformá-los às necessidades práticas de uma análise textual de qualquer natureza. Esse é o “ponto de vista” que faz parte do título deste trabalho.

REFERÊNCIAS

ADONIAS Filho. Luanda Beira Bahia. 10ª ed. São Paulo: Difel, 1983.

CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. Coord. da trad. Fabiana Komesu. São Paulo: Contexto, 2004.

FÁVERO, Leonor Lopes; KOCH, Ingedore G. Villaça. Lingüística textual: introdução. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 1994.

GLOBO (O), 2/1/2005, ‘Editorial”, p. 6.

GLOBO (O), 2/1/2005, ‘O País’. p. 9;

KOCH, Ingedore Villaça. A coesão textual. 3ª ed. São Paulo: Contexto, 1991.

RAMOS, Graciliano. Infância. 7ª ed. São Paulo: Martins, [1969].

VERÍSSIMO, Fernando. O Globo, 2/1/2005, ‘Opinião’, p. 7.