Via de mão dupla
a
seleção de textos na escola

Ana Crélia Penha Dias dos Santos (UFRJ)

 

O objetivo deste trabalho não é trazer conceitos inéditos, mas tecer reflexões acerca da seleção de textos na escola, fator que preocupa os profissionais da educação, uma vez que nossa origem imbrica-se, quase sempre, numa tradição em que o acesso do aluno ao texto se fazia por meio do livro didático exclusivamente, realidade talvez não tão distante.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL: 1998, p. 24) tratam o texto como objeto de ensino, unidade básica do aprendizado, cuja diversidademodalidades de gênero – pode constituir a grande ferramenta do trabalho em sala de aula.

Hoje, mais do que nunca, a competência comunicativa torna-se exigência em todas as áreas de atuação. O papel do sujeito na vida contemporânea pressupõe o desenvolvimento de habilidades de comunicação que viabilizem sua inserção nas mais variadas situações, de modo que seja, mais do que receptor, um agente na sociedade.

Não é mais admissível, portanto, pensar a seleção do texto como apenas um garimpar pedras preciosas no rol dos canônicos. A noção de gênerocom sua diversidade a ser explorada – passa a ser a linha-mestra a conduzir o trabalho com o texto na sala de aula. Essa perspectiva bakthiniana pressupõe a consideração do gênero como o conjunto de características mais ou menos estáveis, presentes nos textos produzidos – orais ou escritos. Assim, o bilhete, o receituário médico, a mensagem da internet, são textos que englobam características próprias e, portanto, configuram diferentes gêneros textuais.

Para selecionar textos, um outro conceito deve ser pauta de discussão na escola. Quando tratamos de texto¸não pode ser desprezada a modalidade oral, bem conhecida dos alunos, que por vezes se distancia da prática pedagógica devido à tradição de priorizar a modalidade escrita. Trabalhar textos orais é uma forma de dar continuidade ao aprendizado da linguagem, que começa em casa. Aprimorar essa habilidade é desenvolver a capacidade de organização do pensamento (que será muito útil quando do momento da produção do texto escrito), além de promover o acesso do aluno a um universo em que a linguagem é a principal ferramenta no exercício da cidadania.

Pensando o texto oral como “mediação necessária para a escrita”, Eglê Pontes Franchi (1998: 219), confronta a capacidade da criança de falar fluentemente a língua de sua comunidade (sem a necessidade de orientação especial para isso) e a preocupação excessiva da escola em inserir a criança no mundo da escrita. Do processo de abandono da oralidade decorre um distanciamento entre oralidade e escrita (no sentido de considerar a segundamais certa” do que a primeira) que, na realidade, transforma o que seria natural em tarefa que beira o impossível.

A oralidade traz grande contribuição para o trabalho com na escola, e o trabalho com textos orais dos alunosem exercícios de transposição de uma modalidade a outra, de debates para checagem da argumentação ou da eficiência do processo comunicativo junto ao interlocutor, por exemplo – promove maior dinamicidade ao tratamento do texto e atinge, portanto, o objetivo de desenvolver a capacidade comunicativa de maneira menos enfadonha, porque mais próxima do que seria a própria realização da tarefa de comunicar.

Quando falamos em um redimensionamento da função da oralidade na escola, não pretendemos, de forma alguma, seguir a via do extremo oposto: priorizar a oralidade em detrimento da escrita. Cada modalidade terá seu espaço, mas o trabalho com o texto escrito ainda deverá passar por uma reconsideração no que diz respeito aos gêneros priorizados pela instituição escolar.

É lícito que pensemos em desenvolver nos alunos a capacidade de compreensão de textos com os quais lidem mais diretamente em sua comunidade. Esse aspecto de aplicação dos estudos de linguagem ao cotidiano confere à disciplina Língua Portuguesa, principalmente mas não exclusivamente, o status de promover o acesso do aluno aos mecanismos de cidadania que passam pela capacidade de se comunicar com eficiência.

Entretanto, essa visão estritamente pragmática do estudo da linguagem não deve ser o limite. Com a diversidade de gêneros textuais, à escola cabe também a tarefa de ampliar o repertório do aluno, de modo que, além da função funcional, os estudos de linguagem cheguem aos usos públicos[1] (isto é, às situações em que os usuários consigam chegar ao controle de convenções próprias de determinadas situações), e à relação de prazer quando do contato com o texto, que não pode ser esquecida.

Passados esses necessários conceitos iniciais, passemos ao foco do interesse aqui. Se oral ou escrito, como selecionar texto na escola? mencionamos aqui o fato de o acesso do aluno ao texto estar limitado ao repertório do livro didático, que prioriza, muitas vezes, o trabalho com fragmentos curtos, quase sempre literários, e, em sua quase totalidade, de narrativas.

Se a escola é o espaço privilegiado de acesso ao texto escrito (em muitos casos o único), é premente a necessidade de pensarmos em qual escolher para trabalhar com os alunos. O compromisso com as práticas sociais e a necessidade de ampliar o repertório do usuário deve orientar a seleção do gênero adequado a casa situação. Assim, uma turma de jovens e adultos, que vive a emergência da inserção no mercado de trabalho, necessita desenvolver a habilidade de escrever uma carta ou compor um currículo, por exemplo; o que não exclui a possibilidade de os alunos ultrapassarem esse limite.

Mas o problema do texto na escola não está apenas na seleção ou mesmo no fato de o livro didático ser a única fonte. Pouco avançaremos nesse processo se tivermos excelentes textos, perfeitamente adequados à comunidade em que trabalhamos, mas se o dermos um tratamento de diluição. Na tentativa de ajudar os alunos a compreenderem melhor o que lêem, a escola, por vezes, incorre no equívoco de fazer recortes indevidos ou mesmo adaptar desnecessária e precariamente o texto original. Decorre daí uma prática de falseamento e, desse jogo de representação, pouco se extrai de conhecimento produtivo.

Paralelamente à adaptação e ao recorte inadequados está o tratamento didático minimizador a que se submete o texto. Questionários e as tradicionais aulas de interpretação devem ser repensados, uma vez que práticas cristalizadas como essas levam à reprodução de aspectos que não solicitam nenhuma reflexão por parte do aluno. Textos diferentes exigem tratamento também diferente. Estratégias, como resumo e esquema, podem ser grandes aliadas dos interlocutores quando trabalham com textos das diferentes áreas de conhecimento, por exemplo.

Têm sido freqüentes os depoimentos de professores que, acreditando no desenvolvimento de uma prática discursiva que passa, primordialmente, pela reflexão, relatam os trabalhos que realizam com jornal, preferido no rol dos não-literários, fonte riquíssima em gêneros textuais, e que pode ser usado das séries iniciais aos estudos mais avançados. Dos quadrinhos ao editorial, passando pelas cartas aos leitores e até mesmo pelos classificados, diferentes atividades podem ser realizadas, utilizando um veículo que não é dispendioso e que, se bem escolhido, pode trazer resultados muito satisfatórios.

Paralelamente ao tratamento informativo, que fornece ao usuário dados específicos para um campo de estudo, ou ainda informações sobre fatos da atualidade, está o a peculiaridade do texto literário. Numa perspectiva que vise abordar não somente o funcional, o texto literário não pode ser desprezado. Em diferentes gêneros, a literatura é fonte inesgotável para o trabalho em sala de aula. Entretanto, a especificidade de estarmos trabalhando um texto em que a apreensão e a interpretação do real não se fazem pelos mesmos canais do texto científico, por exemplo, não implica conduzir o tratamento a um caminho sem contornos ou ainda dar-lhes contornos cristalizados. Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais,

O tratamento do texto literário oral ou escrito envolve o exercício de reconhecimento de singularidades e propriedades que matizam um tipo particular de uso da linguagem. É possível afastar uma série de equívocos que costumam estar presentes na escola em relação aos textos literários, ou seja, tomá-los como pretexto para o tratamento de questões outras (valores morais, tópicos gramaticais) que não aquelas que contribuem para a formação de leitores capazes de reconhecer as sutilezas, as particularidades, os sentidos, a extensão e a profundidade das construções literárias. (BRASIL: 1998, 27)

Dada a especificidade e a necessidade de aprofundamento de leitura, o texto poético é, sem dúvida, o recordista entre os excluídos pela escola. Se observarmos entre os didáticos, são poucos os poemas que adentram o universo escolar, e os que entram, constituem o lugar-comum da seleção: Vinícius de Moraes, Cecília Meireles e Drummond estão entre os preferidos e os textos que aparecem são quase sempre os mesmos.

Além do problema do repertório, existe também a especificidade do tratamento. Segundo Nelly Novaes Coelho (2000: 223), a poesia requer mediação quando o encontro se dá com o leitor inexperiente. A autora fala da mediação por meio do canto, o que acontece com as letras das músicas, por exemplo; e a mediação por performance artística. Sem invalidar esses mediadores, poderíamos acrescentar, o que seria implícito, a boa leitura, independente de trato artístico ou música, como a grande chave para o sucesso do estudo de poesia na escola. Um professor que conhece o texto, que lhe empresta ênfase adequada à vida latente, sem dúvida, surpreende seus alunos com o inusitado.

Quando tratamos de ensino médio, um imperativo ainda se impõe na escola: a inserção dos clássicos para o vestibular. Muito se discorreu sobre a importância de lermos esses textos e sobre isso não paira dúvida: de Ítalo Calvino a Ana Maria Machado, temos rentáveis argumentações a favor dos clássicos como fonte de leitura. Sobre isso não discutimos. O calcanhar de Aquiles aqui está no objetivo com que esse texto chega aos estudantes e na forma como isso se dá. Aqui também, como no caso da poesia, a mediação de um professor-leitor é essencial. Como? Lendo com os alunos, na tentativa de aproximá-los de um universo distante dos dias esquemáticos de nossos jovens. O resultado de uma leitura de imposição é o recorrer alucinado aos resumos da internet para fazer a prova. Mais uma vez, o empecilho é o caminho que se faz com o texto.

Existe, ainda em relação ao ensino médio, a possibilidade de expansão do trabalho com a literatura. Para desmistificar a relação do aluno com o texto e estabelecer relações temporais, podemos pensar uma sugestão. Por exemplo: trabalhando as Cartas chilenas, cuja autoria foi atribuída a Tomás Antônio Gonzaga, podemos desenvolver um projeto em que outras disciplinas, como História, estariam envolvidas. Poderiam os estudantes, com o auxílio do professor, ler o texto, investigar o contexto em que foi escrito (informalmente, sem as cobranças históricas desnecessárias) e ainda confrontar o texto de Gonzaga com outros contemporâneos de mesmo teor.

Assim, a seleção de texto, quando leva em conta os princípios bakhtinianos, colabora para funcionalizar os estudos ampliar os horizontes de leitura e construção de textos orais e escritos pelos alunos. Portanto, o acesso a diferentes gêneros propicia a ampliação lingüística e discursiva dos alunos, além de promover o tão falado acesso às demandas sociais.

Exercitar a leitura e a produção textual sob a perspectiva dos gêneros é uma atividade que pode ser estendida a todas as fases da vida do estudante. Como frisamos anteriormente, não pretendíamos o ineditismo, porque não ousamos “fornecer receitas”. Apenas buscamos refletir sobre uma prática cujo objetivo maior é o desenvolvimento da habilidade comunicativa adequada a cada situação. Não nos é própria a tarefa de indicar listas, ou ainda excluir títulos.

Repensar os conceitos de ler/produzir textos é necessidade premente, e esse trabalho precisa começar da base: principalmente, nas primeiras séries do ensino fundamental, temos de refletir sobre os objetivos do ensino de Língua Portuguesa, para que não sejamos surpreendidos, daqui a alguns anos, com resultados que evidenciem o fracasso, embora haja sido despendido muito tempo de estudo com essa disciplina.

Que texto escolher? Com um professor leitor, que conhece, porque leu, diferentes textos, de gêneros diversos, escolhidos não pelos valores ou pelos ensinamentos; com uma escola que prime por um projeto político-pedagógico que atribua à leitura o peso de condição para o aprendizado; com uma dose de bom senso, a seleção textual será adequada. A formação do professor é, sem dúvida, um dos pilares dessa reflexão.

 

BIBLIOGRAFIA

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa/ Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.

BRASIL. Secretaria de Ensino Médio. Parâmetros Curriculares Nacionais: ensino médio: linguagens, códigos e suas tecnologias. / Secretaria de Ensino Médio. Brasília: MEC, 2000.

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna, 2000.

FRANCHI, Eglê Pontes. Oralidade: mediação necessária para a escrita. In.: BARBOSA, Raquel Lazzari; LEITE et alii (orgs.). Formação de Professores. São Paulo: UNESP, 1998.

MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos universais desde cedo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.


 


 

[1] Esse conceito de uso público da linguagem é definido pelos Parâmetros Curriculares Nacionais como aqueles que “implicam interlocutores desconhecidos que nem sempre compartilham o mesmo sistema de referência.” (BRASIL: 1998, 24)