ASPECTOS
DA
CONSTITUIÇÃO
DO
LÉXICO
PORTUGUÊS
Vito Manzolillo
(UNESA)
(...) os
vocábulos
incluídos na
classe
das
palavras
hereditárias têm de
comum,
não
a
circunstância
de uma consangüinidade de
origem,
como
à
primeira
vista
poderia
parecer,
mas
o
fato
de haverem contribuído, no
mesmo
grau,
para
a
constituição
da
modalidade
do
latim
corrente
ou
vulgar
da Lusitânia.
(CARDOSO,
Wilton &
CUNHA,
Celso
Ferreira
da.
Estilística
e
gramática
histórica:
português
através
de
textos.
Rio
de
Janeiro:
Tempo
Brasileiro,
1978, p. 137.)
Informações
preliminares
De
acordo
com
Azeredo (2000:72),
quando a
língua portuguesa começou a
ser
escrita – no
início do
século XIII –
seu
léxico reunia
cerca de 80% de
palavras de
origem
latina e
outros
cerca de 20% de
palavras pré-romanas, germânicas e
árabes.
Trata-se do
acervo
vocabular
que
se pode
denominar
hereditário,
isto
é,
aquele
surgido
junto
com
o
idioma,
que
a
ele
forneceu
padrão
fonético
e morfológico.
A
partir
do
século
XIII,
fatores
diversos
colocaram o
português
em
contato
com
várias outras
línguas
ao
redor
do
planeta.
Como
resultado
disso, a
adoção
de numerosas
palavras
pertencentes a
esses
idiomas,
num
processo
de enriquecimento
contínuo,
que
ainda
hoje
se verifica.
Nesse
sentido,
a
língua
portuguesa ostenta,
em
seu
pecúlio
lexical,
vocábulos
provenientes de
sistemas
lingüísticos
tão
diferentes
quanto
o
provençal,
o holandês, o hebraico, o
persa
e o
quíchua
ou
o chinês, o
turco,
o
japonês,
o
alemão
e o russo,
sem
falar
em
idiomas
bem
mais
familiares,
como
o
inglês,
o
francês,
o
espanhol
e o italiano, os
quais,
juntamente
com
muitos
outros,
ajudaram a
moldar
esse
heterogêneo
mosaico
que
é o
léxico
português.
Palavras
hereditárias e
palavras
de
empréstimo
Aplicando-se ao
português
uma
noção
que
é
pertinente
às
línguas
de
modo
geral,
é
possível
classificar
as
palavras
que
compõem o
seu
vocabulário
em
hereditárias e de
empréstimo.
As primeiras,
elementos
do
léxico
original,
“fazem
parte
de uma
tradição
lingüística
ininterrupta”
– Pisani (s/d:57) –, refletindo “as transformações
fonéticas
que
caracterizam o
idioma
à
época
dos
seus
primeiros
momentos”
– Bechara (1998:116). Transmitidas
oralmente,
encontram-se identificadas
com
a
fase
pré-histórica do
idioma,
tendo
passado
por
todas as transformações
fonéticas
do
latim
ao
português,
ou
seja,
são
“aquelas
que
viviam no
léxico
da
língua
quando
deixou de
ser
latim
para
ser
identificada
como
português,
numa
passagem
ininterrupta
no
tempo
e no
espaço”
– Bechara (2002:217-8).
Nos
termos
de Melo (1981:158), trata-se do
conjunto
constituído pelas
palavras
“que
vieram
por
tradição
histórica,
de
boca
a
ouvido,
através
das
gerações”.
Compreendem
não
só
a
base
latina
popular
– indiscutivelmente, o
grosso
do
conjunto
–,
mas
igualmente
unidades
lexicais
de
origem
pré-românica,
isto
é, das
línguas
pertencentes aos
povos
que
habitavam a
Península
Ibérica
antes
da
chegada
dos
romanos
no
século
II a.C. (arroio,
baía,
balsa,
barro,
bezerro,
bico,
bizarro,
brio,
cabana,
cama,
cambiar,
caminho,
camisa,
carpinteiro,
carro,
cerveja,
esquerdo,
garra,
gato,
gordo,
lança,
légua,
lousa,
manto,
mapa,
mata,
peça,
saco,
sapo,
sarna
etc.)
e pós-românicas,
ou
seja,
germanismos
(frutos
das
invasões
bárbaras do
século
V,
por
exemplo,
albergue,
anca,
arauto,
arreio,
banco,
bando,
banho,
branco,
brasa,
carpa,
coifa,
elmo,
espora,
estribo,
guerra,
roupa,
sabão)
e
arabismos
(resultado
da
presença
dos
árabes
na
Península
a
partir
do
ano
711,
por
exemplo,
açougue,
açude,
alcachofra,
alface,
álgebra,
alicate,
arroz,
azeite,
oxalá), as
quais
contribuíram da
mesma
maneira
para
a
formação
do
português.
Baseando-se na
forma
fonética
– “combinação
de
fonemas
concorde
com
a
estrutura
fonética
de
determinada
língua”
(Jota,
1981:forma
fonética)
– oferecida
pelos
itens
léxicos
pertencentes à
camada
hereditária,
é
possível
afirmar
que
gato,
leão,
leite
e
mesa
podem
representar
lexemas legitimamente portugueses, ao
passo
que
speranza, felicidad, eau e school
não
podem,
visto
estarem
em
desacordo
com
os
padrões
dessa
língua.
Melo (1981:149)
não
fala
em
palavra
hereditária,
mas
em
continuidade
lingüística,
isto
é,
as
palavras
que
compõem o
fundo
originário
do
idioma,
as
palavras
herdadas,
que
nasceram
com
a
língua
e receberam a
impressão
de
seus
sinais
característicos
e de
suas
tendências
marcantes.
No
caso
do
português
são
os
vocábulos
que
se usavam no
latim
vulgar
e no
romance
portucalense e
que
continuaram a
ser
empregados
pelo
povo
na
fala
de suevos,
visigodos
e
mais
gente
que
habitou a
faixa
ocidental
da
Península
entre
os
séculos
V e IX. As
contribuições
germânica
e
árabe
se capitulam nesta
primeira
fonte.
Por
outro
lado,
palavras
de
empréstimo
são
as provenientes de
outros
sistemas
lingüísticos
–
inclusive
do
latim,
os chamados cultismos
ou
eruditismos
– acolhidas
pelo
português
após
o
término
de
seu
período
de
formação.
Artificialmente
vestidas à portuguesa, denunciam,
em
maior
ou
menor
grau,
sua
procedência
alienígena.
Conforme
observa Robins (1977:324)
relativamente
à
relação
francês
/
latim,
Evidentemente,
o
termo
empréstimo
é
apenas
usado de
modo
sensato
em
relação
a uma
língua
admitida
já
estar
em
existência
independente.
Não
se pode
considerar
o
vocabulário
do
francês,
que
tem
estado
em
uso
contínuo
desde
a
época
dos
romanos,
enquanto
ocorreram mudanças
lingüísticas
constituídas da
passagem
do
latim
para
o
francês,
como
empréstimos
do
latim,
já
que
o
francês
é
simplesmente
a
forma
que
o
latim
tomou numa
certa
parte
da Europa.
Já
Bechara (1998:115-6), ao
comentar
a
relação
português
/
latim,
afirma
que
Antigamente,
uma
forma
do
tipo
pé
e
mês
era
chamada
popular,
e
outra
do
tipo
de
pedal
e
mensal
era
chamada
erudita,
porque,
com
pequena
adaptação
ao
gênio
do foneticismo
português,
refletia a
integridade
da
forma
originária
latina.
Hoje,
em
vez
desses
nomes,
que
podem
levar
o
leitor
a
dar
interpretação
literal
aos
adjetivos
popular
e
erudita
– e
assim
entender
uma
meia
verdade
–, preferem-se,
respectivamente,
as
expressões
hereditário
e
de
empréstimo,
para
indicarem
formas
que
existiam no
léxico
na
época
em
que
o
português
se constituiu
como
tal
ou,
então,
formas
que
foram introduzidas
depois
dessa
fase.
Melo (1981:149)
conclui:
Este
vocabulário
original
é o
mais
importante,
não
só
por
ser
o
mais
freqüente
no
uso
comum,
mas
também
por
constituir
a fôrma (sic)
segundo
a
qual
se modelarão,
pelo
tempo
adiante,
milhares
e
milhares
de outras
palavras,
advindas da
importação
estrangeira
ou
decorrentes de
formação
vernácula.
Cultismos
e semicultismos
A
maior
parte do
léxico da
língua portuguesa é,
como
já mencionado
anteriormente, de
origem
latina. A
porção
mais
significativa desse
conjunto constitui-se dos
itens
lexicais
populares,
nunca é
demais
repetir,
aqueles
que, ao
longo do
tempo, foram sofrendo, na
boca do
povo,
toda uma
série de modificações
fonéticas espontâneas e contínuas.
Ao
lado
desses, é
possível
identificar
ainda
os chamados cultismos
ou
eruditismos,
introduzidos
por
via
escrita
–
razão
pela
qual
também
são
chamados de
termos
literários
–
depois
que
certas
mudanças
fonéticas
não
mais
ocorriam. É
fato
conhecido
que
as
leis
fonéticas
têm uma
duração
limitada no
tempo,
apresentando
um
período
específico
de
atuação.
Nesse
sentido,
é
comum
que
essas
palavras
apresentem
seqüências
fonológicas e
grupos
consonantais
evitados
pela
história
do
português,
tendo havido “apenas
a
adaptação
da
parte
final
aos
modelos
mórficos portugueses [gênero,
número
e
pessoa]
e uma
ou
outra
alteração
para
evitar
grupos
anômalos de
fonemas
(...)” –
Câmara
Jr. (1991:eruditos).
A
absorção
desses cultismos foi
particularmente
significativa
durante
o
Renascimento,
mas
não
se limitou a
esse
período.
Como
lembra Coutinho (1976:200), “as
traduções
de
obras,
sobretudo
latinas, contribuíram
para
a
existência
de
um
grande
número
de
palavras
cultas, no
nosso
vocabulário”.
Em
português,
alguns
adjetivos
eruditos
relacionam-se a
substantivos
populares,
como
nos
casos
de
água
/
aquoso,
céu
/
celeste
ou
celestial,
dor
/
doloroso,
fogo
/
ígneo,
ilha
/
insular,
lei
/
legislativo
ou
legal,
luz
/
lúcido,
mês
/
mensal,
neve
/ nívio,
olho
/
ocular,
ouro
/
áureo,
paz
/
pacífico,
povo
/
popular,
touro
/
taurino
e
vida
/
vitalício,
enquanto
certos
superlativos
eruditos
derivam-se de
adjetivos
populares,
por
exemplo,
crudelíssimo
/
cruel,
fidelíssimo /
fiel,
paupérrimo
/
pobre.
Por
vezes,
a
unidade
léxica
erudita
apresenta a
mesma
origem
de
outra
popular,
o
que
faz
surgir,
então,
as
chamadas
formas
divergentes
(cf.,
por
exemplo,
afeição
/
afecção,
avesso
/
adverso,
bola
/
bula,
bucho
/
músculo,
chamar
/
clamar,
chave
/
clave,
circo
/círculo,
coalhar
/
coagular,
comprar
/
comparar,
contar
/
computar,
cunhado
/
cognato,
dobro
/
duplo,
eira
/
área,
empregar
/
implicar,
escuro
/
obscuro,
estreito
/
estrito,
feição
/
facção,
feitura
/
fatura,
findo /
finito,
frio
/
frígido,
frouxo
/
fluxo,
geral
/
general,
grude
/
glúten,
herdeiro
/
hereditário,
leal
/
legal,
leigo
/
laico,
livrar
/
liberar,
logro
/
lucro,
lugar
/
local,
macho
/
másculo,
madeira
/
matéria,
mãe
/
madre,
mascar
/
mastigar,
meigo
/
mágico,
meio
/
médio,
miúdo
/
minuto,
paço
/
palácio,
palavra
/
parábola,
pardo
/
pálido,
partilha /
partícula,
pendência
/
penitência,
pesar
/
pensar,
primeiro
/
primário,
puir
/
polir,
puxar
/
pulsar,
queimar
/
cremar,
ração
/
razão,
recobrar
/
recuperar,
rezar
/
recitar,
rijo
/
rígido,
rolha
/
rótula,
ruído
/
rugido,
sarar
/
sanar,
segredo
/
secreto,
silvar
/
sibilar,
siso
/
senso,
sobrar
/
superar,
soldo
/
sólido,
soma
/
suma,
teia
/
tela,
teso
/
tenso,
traição
/
tradição,
viço
/
vício.
Mencione-se,
ainda,
a
existência,
no
léxico
do
português,
das
chamadas
formas
semicultas
ou
semi-eruditas,
espécie
de
meio-termo
entre
as cultas e as
populares,
as
quais
distinguem-se dessas últimas
por
“apresent[arem] mudanças
fonéticas,
mas
não
as mudanças
sistemáticas
e
fundamentais
que
constituem o
conjunto
das
leis
fonéticas
do romanço lusitânico e do protoportuguês” –
Câmara
Jr. (1991:semi-eruditos).
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Por
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segunda-feira
em
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SOARES, Maria
Nazaré Lins. O
vocabulário
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Cilene da
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PEREIRA, Paulo
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Dias (org. e
coord.).
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léxico do
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Filologia
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lingüística
portuguesa 1.
São Paulo:
Humanitas – FFLCH/USP, 1997.
1
Embora a
distinção
léxico
/
vocabulário
possa
ser
conveniente
em
alguns
casos, no
âmbito
deste
trabalho, os
dois
termos e
seus
derivados
serão
considerados
sinônimos.
Sobre a
diferenciação
léxico /
vocabulário, cf. Alves
(1990,
vocabulário
crítico:
léxico
e
vocabulário),
Vilela (1997:31-2),
Soares
(1995:413-4),
Câmara Jr. (1991:
léxico),
Gallisson & Coste (1983:
léxico),
Estrela &
Pinto-Correia (2001:113-4) e Dubois et al (1973:
léxico
e
vocabulário).
2
Sobre
a
origem
da
população
instalada na
Península
Ibérica
à
época
da
chegada
dos
romanos,
Silva
Neto
(1992:56) diz
não
ser
“fácil
expor,
com
segurança,
quais
eram os
povos
que
habitavam
esse
território.
Contra
nós
conspiram, de
um
lado,
a
carência
de
informações,
de
outro,
a
variedade
e complexidade deles. De
fato,
sobre
a
Península
desabaram, no
curso
dos
séculos,
numerosos
e variados
povos,
uns
como
amigos
e
outros
como
conquistadores”.
Cardoso &
Cunha
(1978:133-4) mencionam os
iberos,
os
celtas,
os
gregos
e os
fenícios.