ENSINO DE
ARGUMENTAÇÃO NA
ESCOLA
(UMA
NOVA
PROPOSTA)
Sigrid Gavazzi
(UFF e URFJ)
Introdução
Este
ensaio pretende
apresentar algumas
sugestões teórico-metodológicas
para o
ensino de
redação,
em
seu
cunho argumentativo, objetivando
oferecer, a
estudiosos e
professores,
contribuição –
mesmo
que
preliminar -
para a
sua
práxis
em
sala de
aula. Pretendemos,
então,
otimizar o
uso (real) das
chamadas “técnicas
argumentativas”
que representam, a
nosso
ver, instrumental
necessário
para
que o
educando articule
convenientemente
seu
pensamento,
por
meio de
exemplário ancorado
em
textos diversificados,
compatíveis
com o
seu
nível de
compreensão.
Daí,
não
nos preocuparmos neste
artigo
em
discutir
teorias
ou
vértices
teóricos
mais
particulares,
mas intentamos
adequar (alguns)
pontos
que julgamos
mais
relevantes
para o
professor e
que, praticamente,
ainda
não constam de
material
didático editado.
Justificativa
Normalmente, o
ensino de
argumentação /
dissertação, nas
escolas brasileiras, tem
seu
início nas 7ª e 8ª
séries do
ensino
fundamental
mas,
sobretudo, ocupa
lugar de
destaque no
ensino
médio.
Tal
fato se daria
porque, neste
momento,
já estaria o
aluno cognitivamente
preparado
para
um
raciocínio de
ordem
analítica (que
solicita
determinada
organização de
dados da
realidade).
Sobre
estes
dados deve o
aluno
opinar e redigi-los
sob
forma
dissertativa.
Afinal,
já deve
possuir
arcabouço ideológico
suficiente
para
tal :
leitura,
interpretação de
textos (sobretudo narrativos /
descritivos,
em
gêneros
diversos) e
redação
são trabalhados arduamente
pelo
professorado
até as
séries
em
questão.
Este
último
fato proporcionaria a
ascensão à
modalidade
dissertativa ,
que se
fundamenta
em
idéias e /
ou
valores,
atemporais,
ainda
que “...
que possam
estar situadas
em
algum
momento
histórico
ou
fictício” (CARNEIRO,
1996:105).
Tais
idéias /
valores
são materializadas, neste
momento,
sob o
prisma de
argumentos (opiniões
fundamentadas),
isto é,
diante de
um
tema polêmico (aquele
que pressupõe uma
discussão,
em
que há
sempre a possibilidade de
mais de uma
posição
sobre o
ponto
em
debate), apresenta-se uma
tese (tomada de
posição
diante do
tema),
que, apoiada na
escolha e
ordenação desses
argumentos, convencerá o público-alvo.
Logo, diz-se
que
argumentar
... é a
arte de
convencer e
persuadir.
Convencer é
saber
gerenciar
informação, é
falar à
razão do
outro,
demonstrando, provando. (...)
Persuadir é
saber
gerenciar
relação, é
falar à
emoção do
outro. (...)
Mas
em
que
convencer se diferencia
de
persuadir?
Convencer é
construir
algo no
campo das
idéias.
Quando
convencemos
alguém,
esse
alguém
passa a
pensar
como
nós.
Persuadir é
construir no
terreno das
emoções, é
sensibilizar o
outro
para
agir.
Quando
persuadimos
alguém,
esse
alguém realiza
algo
que desejamos
que
ele realize.
(ABREU, 2003:25).
Os PCNs,
como
não
poderia
deixar de
ser, incentivam a
“... possibilidade de [o
aluno]
poder
expressar-se autenticamente
sobre
questões
efetivas” (PCNs, 1998:40).
Logo, os
temas
polêmicos
são
bem-vindos,
pois,
inerentes aos
temas
sociais,
Abrem possibilidades
para o
trabalho
com a
argumentação –
capacidade
relevante
para o
exercício da
cidadania - ,
por
meio da
análise
de
formas
de
convencimento
empregadas
nos
textos,
da
percepção da
orientação
argumentativa
que
sugerem, da
identificação
dos
preconceitos
que possam
veicular no
tratamento das
questões
sociais etc. (idem,
p. 41.
Grifos
nossos)
Em
decorrência,
os
manuais
didáticos
apresentam
farto
material
para a
promoção da
discussão de
temas,
bem
como
propostas de
encadeamento de
idéias (os “esqueletos
argumentativos”,
com
introdução,
desenvolvimento
e
conclusão).
Outros
poucos,
ainda,
já pincelam
noções
como
pressupostos,
premissas,
silogismos
etc.
Entretanto, a
nosso
ver, a referida “identificação
/
análise das
formas de
convencimento”
ainda
não se
apresenta
devidamente
contemplada. Ao
contrário, a
percepção do
tipo de
argumento (e a
conseqüente
orientação
que sugerem)
mostra-se
por
demais
generalizante.
O
aluno,
portanto,
não é
surpreendido
com
informação
nova,
que
lhe
proporcione
melhor
domínio da
escrita
dissertativa.
Colocar
em
cena,
então,
nos
bancos
escolares, as
técnicas
argumentativas forneceria, possivelmente,
ferramentas
para
que
este
aluno pudesse
argumentar
com
mais
segurança e,
sobretudo,
com
mais
criatividade.
Em
outros
termos :
entendesse “...a
diversidade
dos
pontos
de
vista
e as
formas
de enunciá-los”
além de
aprender
“... a
convivência
com
outras
posições
ideológicas, permitindo o
exercício
democrático”
(PCNs: 1998; 40)
As
técnicas
argumentativas
sob
o
prisma
lingüístico-pedagógico
Falar
em
argumentação,
hoje, implica
trabalho
sobre
critérios do
verossímil – a
probabilidade
do
saber estabelecido e do
que virá a
ser instituído –
em
outros
termos : a
formação de
opinião
própria. A
necessidade
desta
formação se
confirma no
dizer de Breton (1999:36),
quando afirma
que a
situação
típica da
argumentação
coloca
em
pauta a
ação da
opinião. E,
apesar de
desgastada,
... a “opinião”
continua a
ser uma
realidade
forte,
que designa
aquilo
em
que
acreditamos,
aquilo
que
guia nossas
ações e
que
alimenta
nossos
pensamentos. O
homem
não é
feito
unicamente de
opiniões,
mas
são estas
opiniões
que fazem
um
homem e
sobretudo
sua
identidade
social.
Na
constituição
da
opinião –
que se tornará
o
argumento –
ainda se
consultam (mais
do
que
nunca) os
postulados
argumentativo-retóricos preconizados
por
Aristóteles e Górgias. Os
novos
tratados
argumentativos procuram,
inclusive,
manter, na
base, a
mesma
divisão
pelos
antigos
preconizada. Procede-se,
por
conseguinte, à
divisão das
técnicas
em
dois
grandes
grupos : as
que utilizam
argumentos
quase-lógicos
e as
que trabalham
com
argumentos
baseados na
estrutura do
real.
Os
primeiros
(quase-lógicos) preocupam-se
com “verdades”
para o
Homem
em
geral –
seu
caráter é
genérico,
porque
universal. As segundas,
por
sua
vez,
apresentam
características
mais
acentuadas de
teor
contextual
(incluindo-se
variantes
comunitárias culturais,
regionais,
temporais,
etárias,
entre outras).
Assim, se
um
locutor,
usar
como
tese
um
mandamento
como “Não
matarás”, estará utilizando uma
verdade
universal – os
homens
consideram,
realmente,
inadequado
retirar
dolosamente a
vida de
outrem.
Entretanto,
algumas culturais aceitam e recomendam a
pensa de
morte,
caso se trate
de
determinado
delito.
Aí,
então,
entra-se no
campo da
fundamentação
daquilo
que é
ideal,
levando-se
em
conta as
circunstâncias
da
cenografia do
momento
histórico
em
questão.
Muitas
são as
técnicas
para os
dois
conjuntos.
Pedagogicamente,
porém, cremos
que o
professor deve
selecionar aquelas
que
julgar
mais
pertinentes –
de
maior
eficácia
para a
produção
textual do
aluno –,
inclusive
porque uma
exacerbação de
conteúdo
nem
sempre é
tão
bem assimilada.
Além disso,
espera-se
que o
discente
não
só reconheça a
técnica
utilizada (e os
exemplos
que passaremos
a
expor podem
contribuir
para
tal)
como
também – e
sobretudo – coloque
tal “engrenagem”
textual
em
prática.
Entretanto,
como
um
ensaio requer
uma
condensação de
conteúdos (e
não poderemos
abrir
mão dos
exemplos,
pois
eles
clarificam o
enunciado e
contribuem
para o
trabalho
aplicativo,
posterior dos
mestres),
vamos-nos
ater,
apenas, ao
primeiro
conjunto
argumental: os quase-lógicos apresentam,
normalmente,
maior
teor de
dificuldade /
de
entendimento
por
parte do
aluno.
Requerem,
pois,
relevante
esforço
mental,
pois devem
apresentar
um
esquema de
raciocínio
que se
aproxime dos
esquemas
um
pouco
mais
lógicos – a
tese a
ser defendida
não deve
deixar
margem a
dúvidas.
Neles, o argumentador centralizará
seu
foco de
atenção na
incompatibilidade
dos
dados
a serem apresentados –
ou seja,
estabelecida a
tese
que pretende
defender,
sempre se
preocupará
em
demonstrar
que
X
ou Y
não
podem
conviver
:
um
elimina o
outro.
Optamos,
em
nosso
ensaio,
apenas
por
cinco
tipos,
discriminados a
seguir.
Argumento
da
contrariedade
Neste
tipo de
técnica, o
que se
quer
provar é
justamente o
contrário ao estabelecido
pela
premissa
inicial,
sem
admitir
nenhum
tipo de
contradição.
O
exemplo a
seguir ilustra o
caso: à
época, a
mídia discutia os
testes
em
laboratório, realizados
em
cobaias
animais.
Considerável
parte do
público
já se manifestava,
por
cartas,
e-mails
ou
declarações
em
programas de
diversidades, de
forma
veemente, na
condenação às
violências cometidas
contra os
animais. Os
cientistas,
responsáveis
pelos
testes, assumiriam,
portanto, os papéis de “antagonistas
do
bem”.
Todavia, o
autor do
texto,
Diretor do
Instituto Butantan de
São Paulo e Professor-Adjunto da PUC , raciocina
em
caminho
completamente inverso. Admite
sua
posição a
partir do
próprio
título : “ou
você
ou a
cobaia”. No
desenrolar, apresenta
claramente o
que o
lado
oposto apregoa
para,
então,
seguir
linha
única (e
contrária) de
pensamento.
Para
tal, utiliza
dois
argumentos
que – praticamente
baseados
em
números (e
números inferem
credibilidade) – anulam
qualquer
dúvida “humanista” a
respeito do
valor
ético de se usarem
animais
em
testes. “Humanistas”,
para o
autor,
avessamente ao
que
que dizem os
defensores das
cobaias,
são os
cientistas
que se preocupam
com o
que há de
mais
humano : o
próprio
homem.
Ou
você
ou a
cobaia
Corre o
mundo
uma
campanha
em
defesa
do
direito
dos
animais,
pregando o
fim
de
seu
uso
em
testes
de
laboratório.
A
imagem
que
se
quer
passar
é a de
que
os
cientistas
são
indivíduos
sádicos,
que
usam e matam
cobaias
inocentes.
(...)
Nenhuma das
pesquisas
que
deram
origem
às
vacinas
seria
possível
sem
o
uso
de
animais
de
laboratório.
Até
hoje, a
vacina
contra
raiva é
testada
em
ratos
para
ver se
não restou
nela
nenhum
vírus (...).
Há 40.000
anos os
homens
viviam,
em
média, 28
anos.
Hoje
vivem
mais
de 70. Devemos
isso
às
pesquisas
que
utilizam
animais.
(...)
É
bem
provável
que os
defensores dos
direitos dos
animais
acreditem
que é uma
arrogância do
homem
moderno
colocar-se no
centro do
universo –
pessoas
que,
como Pasteur,
priorizam a
vida
humana
diante da
vida de
outros
animais.
Para
mim, essa
arrogância tem
outro
nome :
humanismo
(Isaías Raw , Superinteressante, no.
5,
maio 2001)
Argumento
da
definição
Pode-se
definir –
colocar
entre
limites,
entre “barras”
conceituais –
algo
ou
alguém, de diversas
maneiras. Usam-se
definições normativas, etimológicas,
expressivas...,
enfim,
cada argumentador defende
sua
tese
sobre a
definição
que considera
mais
pertinente ao
auditório
universal. É
um
recurso primoroso,
pois demonstra
cultura do
locutor,
além de
imprimir, ao
seu
discurso,
certa
dose de
argumento de
autoridade.
No
exemplo
abaixo,
por
exemplo, há duas
definições : a
primeira, de
cunho
lexical e
etimológico; a
segunda, de
cunho estilístico, poético. Nesta
última,
inclusive, o
autor
reforça o
arcabouço argumentativo
com a intertextualidade (“cordeiro
de
Deus” / “cordeiro dos
homens”),
embora
já tivesse
iniciado
seu
discurso
com
um “anjo
torto”, lembrando Drummond
nos “Poema das
Sete
Faces”. Veja-se:
Dolly, a
revolução
dos
clones
Para Dolly
nascer, foi
preciso
que
um
anjo
torto,
desses
que andam de
jaleco
branco, a
arrancasse
inteira de
dentro de
outro
animal (....)
Dolly é o
que
a
ciência
chama
de “clone”,
palavra
de oridem
grega
que
significa “broto”.
Clone
é a
cópia
idêntica
de
outro
ser
vivo
produzida
artificial
e
assexuadamente.
(...)
Ela tem
apenas uma
origem
que
não é
divina. É
humana.
Dolly é o
cordeiro dos
homens.
(Eurípedes Alcântara, Veja,, 05 / 03 /
1997)
Argumento
da
justiça
A
lei prescreve,
por
exemplo
que “todos
são
iguais
perante a
Lei”; o
imaginário
social, a
seu
turno,
não
deixa
por
menos : no
mínimo, “todos
são
iguais
perante
Deus”.
Infringir o
argumento da
justiça significa
dizer
que se impinge
tratamento
desigual a
seres
em
situações idênticas –
ato
absolutamente
indigno
já
que fere
princípio
básico da
convivência
social
No
exemplo escolhido, o
autor se
mostra
contra
todo o
tipo de
violência,
sobretudo
contra
pessoas /
populações civis
inocentes.
Todavia,
mais
injusto
que
seu sofrimento,
dor
ou
morte, é o
silêncio
em
torno de
atrocidades sofridas
por
aqueles
que
não pertencem à
nossa (proeminente)
civilização
ocidental. O
mundo
não se interessa
por
eles,
não
lhes dá a
mínima
importância. Observe-se,
que o
início descreve, argumentativamente, uma
cena,
engate
para o
tom
dramático e enfático
que permeará as
frases a
seguir. As
perguntas
retóricas,
constantes no
texto, refletem
também
revolta e incitam o
leitor a
participar,
com
ele, de
sua
emoção, de
sua
ira. Os
parágrafos
são
todos construídos tendo
seu
desenvolvimento
por
contraste, enfatizando a (injusta)
diferenciação.
Quem
cria
lobos....
“Mamãezinha,
minhas
mãozinhas
vão
crescer de
novo?”
Jamais
esquecerei a
cena
que vi, na TV
francesa, de uma
menina da
Costa do
Marfim falando
com a
enfermeira
que trocava os
curativos de
seus
dois
cotos de
braços.
Era uma
criança
linda, de
quatro
anos, a
face da
inocência
martirizada e
que
em
seu sofrimento
não conseguia
imaginar a
extensão do
mal
que
lhe haviam
feito.
Não entendia e
ainda
tinha
esperanças.
E
não
era
caso isolado.
Milhares
de
crianças
daquele
país
foram selvagemente mutiladas
por
.... (como
qualificar
quem
fez
isso?)
em
conseqüência
de
mais
uma
guerra,
resultado
tardio
do
colonialismo,
ao
criar na África
países
inviáveis
abrigando
etnias
rivais,
exacerbadas
pelos
colonizadores e massacrando-se
com
armas
que
sua
gente
não produz,
vendidas
por
americanos,
russos,
europeus,
israelenses e
outros
“civilizados” de boa
consciência e
que avaliam
seus
lucros
em
lugares
como o World
Trade Center (...)
Justifica-se
um
atentato
terrorista
como
o de
Nova
Iorque ?
Jamais
! Temos
visto,
repetidamente,
dia
após
dia,
pela TV,
cenas da
destruição, de
tristeza e
desespero(...)
Estamos
todos
tristes,
mas
tristeza e
indignação
são
grandes
porque
os
atentados
ocorreram
em
Nova
Iorque (....)
Mas
veja uma
foto
de Cabul, a
capital
desse Afeganistão
mártir
de
guerras
que
não
são
suas
e
vítima
do
mais
terrível
fanatismo
religioso.
É uma
ruína
só.
(...)
Mas
como
em
Cabul
não
há
Quinta
Avenida
nem
Central
Parque,
e
como
ninguém
vai
lá
comprar
tênis,
videogames
ou
dar
uma
esticada
depois
de
passear
na Disney,
ninguém
se
lixa
para
os
milhões
de
mortos
que
quase
30
anos
de
guerras
infringiram
àquele
triste
lugar.
A
verdade
verdadeira é
que
não
somos
todos
iguais.
Uma
bomba
em
Nova
Iorque (...) desperta a
dor
do
mundo.
Mas
quando
tutsis e utus se trucidam
em
Ruanda, e morrem 1
milhão
de
africanos
numa
guerra,
o
assunto
é
pé
de
página
dos
jornais
e os
negócios
das
indústrias
de
armas
continuam de
vento
em
popa.
(Fritz Utzeri, JB, 17 de
setembro de
2001)
Argumento
do
ridículo
Neste
caso, usando de
ironia
ou
qualquer
outro
artifício,
não se condena
claramente o
argumento
alheio. No
entanto,
este é colocado
em
posição de
descrédito, perdendo,
paulatinamente,
sua
legitimidade.
João Ubaldo
Ribeiro, na
crônica
selecionada,.
assim procede. Nela,
trata o
que considera “impiedoso
terrorismo
científico
estatístico” – é
verdade, os
cientistas têm
sempre
razão.
Pena
que,
para o
autor, discordem
tanto
entre
si – é
mesmo ... os
cientistas teriam
sempre
razão?
Para
formar a
tessitura dos
conceitos “ridículos”
que assolam os
seres
humanos, detém-se
sobretudo no
item “alimentação” (embora
também margeie
um
ou
outro a
mais) e arrola
inumeráveis
exemplos –
em
que uma assertiva vem acompanhada de
seu
contrário, demonstrando o
conflito (ou
embuste
científico?), do
tipo “Açúcar
faz
mal.
Açúcar
não faz
mal”, inferindo
que o
leitor
também
já tenha lido (ou
ouvido)
algo a
respeito e esteja (teoricamente)
tão confuso
quanto
ele, narrador.
O
título da
crônica é
bastante
claro e
já embute o “conselho”
:
só
ler os
clássicos,
literatura
asséptica, recomendável,
inclusive,
porque
não se preocupa
em
perturbar o
sono do
leitor
com
conselhos de “como
vier
mais e
melhor comendo
isto
ou
aquilo (ou
não comendo
isto
ou
aquilo)”.
Para
dar
mais
efeito
persuasivo,
inclusive, simula
identificação
com
um
determinado destinatário-leitor, de
faixa
etária
similar. A
seguir,
passa ao
somatório de
contradições – embaladas
em
repertório
lexical
absolutamente
negativo -
para, ao
final,
finalizar o
texto
com “chave de
ouro”: ratifica o
argumento do
sacrifício e da
solidariedade _ “cede
sua (dolorosa)
experiência”- ,
mas
reserva
um
pouco do
argumento do
ridículo
também
para
aquele
que
lhe dá
atenção –
afinal, se é
para
ler os
clássicos, o
que faz o
leitor prestando
atenção a uma (mera)
passagem
jornalística ?
Só
ler os
clássicos
/
Cuidado
com
o
terror
científico:
tudo
faz
mal
Espero
que,
entre
vocês,
haja
pessoas
como
eu
que
vieram de
tempo
mais
simples
e
hoje
se sentem
cada
vez
mais
sitiadas.
Não
me
refiro a
assaltos,
drogas
e
coisas
assim,
que
afetam a
todos,
não
só
os
coroas.
Refiro-me ao
impiedoso
terrorismo
científico
estatístico
que
nos
bombardeia de
cada
jornal,
revista
ou
mesmo
bate-papo.
Tudo
faz
mal,
geralmente
provocando
câncer
ou
horripilantes
moléstias
neurológicas,
em
que o
padecente fica
tremendo,
babando e
quadriplégico
(...)
A
comida,
além disso,
está
toda
inconsumível. (...) As
verduras
estão todas contaminadas
por
cólera,
esquistossomose,
tifo
e
disenterias
sinistras,
além
é
claro,
de
agrotóxicos
tão
mortíferos
que
oferecer a
alguém uma
salada de
agrião,
alface e
tomate deveria
ser considerado
tentativa de
homicídio.
(...)
Cedo
minha
experiência
àqueles
que
sofrem
como
eu
:
não
leio
nada,
só
os
clássicos.
(...)
Ler
outras
coisas,
como
tudo
mais,
faz
mal
horrível.
Inclusive,
é
claro,
esta
página.
(João Ubaldo
Ribeiro,
O
Globo,
julho de 2003)
Argumento
da retorsão
Talvez configura
um dos
mais
convincentes
modos de
convencer : o argumentador utiliza os
próprios
argumentos do
antagonista
para “retorcê-los” a
ser
favor, imprimindo-lhes, é
claro,
nova
interpretação.
Em
crônica,
por
exemplo, realizada
em
época
próxima ao
segundo
turno
eleitoral, Luís Fernando Veríssimo – no
momento
absolutamente persuadido da
competência daquele
que seria eleito
presidente, redige uma
crônica
em
que vai adicionando,
sem
grandes
elos coesivos,
sentenças
que pertenceriam ao
lugar
comum – ao
imaginário
social – de inúmeros
brasileiros
que,
por
anos a
fio,
coloquialmente
assim se manifestaram.
Aproveita,
então,
um
episódio retratado
nos
jornais - e reclamado
como “um
acinte às boas
famílias”
por
muitos. Nele, observa-se o (então)
candidato sorvendo
bebida
alcoólica de
alto
valor
monetário. Verifique-se:
A
audácia
O
Lula
tomando Romanée-Conti...
Ora,
faça-me o
favor.
Que
coisa
grotesca.
Que
coisa
ridícula.
Que
acinte.
Que
escândalo.
E
que
desperdício.
Vai
ver
ele
não
sabe
nem
pronunciar
o
nome,
quanto
mais
apreciar
o
sabor.
Vai
ver
derramou
um
pouco
pro
santo,
na
toalha.
Romanée-Conti
não
é
pra
gentinha,
não
Lula.
As
coisas
boas da
vida
são
para
as
pessoas
finas do
mundo,
não
pra
pé
rapado
que
bota
gravata
e
acha
que
é
doutor.
Muito
menos
pra
pé-rapado
brasileiro.
(...)
O
Lula
tomando Romanée-Conti...
É o
cúmulo.
É uma
inversão
completa
de
valores
sob
os
quais
nos
criamos,
segundo
os
quais
se
Deus
quisesse
que
os
pobre
tomassem
vinho
de
rico
daria uma
ajuda
de
custo.
É o
fim
de
qualquer
hierarquia
social,
portanto
o
caos.
Ainda
bem
que
existem
patriotas
alertas
para
denunciar
o
acinte,
o
escândalo,
e
chamar
o
Lula
de
volta
à
humildade.
Para
mandar
o
Lula
se
enxergar.
Sim,
porque
hoje
é Romanée-Conti e
amanhã
pode
ser
até
a
presidência
da
República.
Gentinha
que
não
conhece o
seu
lugar
é
capaz
de
tudo.
(Veríssimo, O
Globo,
15 de
outubro de
2003)
Conclui-se daí
que a retorsão
nem
sempre
precisa
estar
clara e explicitamente
presente no
texto (o argumentador
não
precisa
expressar o
que o
outro afirmou
para
usar o
argumento a
seu
favor). No
caso ilustrado, Veríssimo
usa de retorsão na
denúncia –
clara – de assertivas
que
muitos pronunciam,
em
que
muitos acreditam (aliás,
grande
parte da
sociedade, nas
eleições
anteriores à
que
lhe deu a
vitória),
mas
que
poucos têm
coragem de “colocar no
papel”. A
conseqüência
também se insere, neste
caso, no
campo do
ridículo.
Mas a retorsão é a
técnica argumentativa
prioritário
para
lá se
chegar.
Conclusão
O
que se pretendeu, na
verdade, nesta
escritura foi a
plantação de uma
idéia – a de
que
conceitos
retóricos
clássicos podem (e devem)
ser trabalhados
com os
alunos.
Como
conseqüência, espera-se
ter, na
medida do
possível, contribuído
para
que o
trabalho
diário do
professor, no
entendimento de
que
textos - de
qualquer
gênero
ou
espécie – trazem
embutida uma
técnica
específica. Compreendê-la e repassá-la ao alunado
talvez seja o
portal
para a
formação
crítica,
atuante de
fato.
A
tarefa
não é
tão
difícil, ao
contrário, mostra-se
prazerosa
até
porque o
profissional pode
atuar
com
revistas,
jornais,
anúncios, lay-outs,
enfim,
um
sem-número de possibilidades
para
que o
educando absorva os
fatos, comente-os, discuta-os, identifique
clichês ideológicos, deixe de
escrever “aquilo
que
acha
que os
outros querem”
Nesse
ponto, o
ensino de
técnicas argumentativas é
fundamental.
Argumentar prescinde de amadurecimento cognitivo-intelectivo.
Resta
saber
como fazê-lo,
como viabilizá-lo no
dia a
dia.
Até
mesmo
porque
Saber
argumentar
não é
um
luxo,
mas uma
necessidade.
Não
saber
argumentar
não seria,
aliás, uma das
grandes
causas
recorrentes da
desigualdade cultural,
que se
sobrepõe às tradicionais desigualdades
sociais e
econômicas, reforçando-as ?
Não
saber
tomar a
palavra
para
convencer
não seria, no
final das
contas, uma
das
grandes
causas da
exclusão ?
(BRETON:1999,19)
Portanto, uma
sociedade
que
não disponibiliza a
todos os
meios
para serem
cidadãos, de
fato, fere a
regra da
justiça.
Não é verdadeiramente
democrática.
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