ENSINO DE ARGUMENTAÇÃO NA ESCOLA
(UMA
NOVA PROPOSTA)

Sigrid Gavazzi (UFF e URFJ)

 

Introdução

Este ensaio pretende apresentar algumas sugestões teórico-metodológicas para o ensino de redação, em seu cunho argumentativo, objetivando oferecer, a estudiosos e professores, contribuiçãomesmo que preliminar - para a sua práxis em sala de aula. Pretendemos, então, otimizar o uso (real) das chamadastécnicas argumentativas” que representam, a nosso ver, instrumental necessário para que o educando articule convenientemente seu pensamento, por meio de exemplário ancorado em textos diversificados,[1] compatíveis com o seu nível de compreensão.

Daí, não nos preocuparmos neste artigo em discutir teorias ou vértices teóricos mais particulares, mas intentamos adequar (alguns) pontos que julgamos mais relevantes para o professor e que, praticamente, ainda não constam de material didático editado.[2]

 

Justificativa

Normalmente, o ensino de argumentação / dissertação, nas escolas brasileiras, tem seu início nas 7ª e 8ª séries do ensino fundamental mas, sobretudo, ocupa lugar de destaque no ensino médio. Tal fato se daria porque, neste momento, estaria o aluno cognitivamente preparado para um raciocínio de ordem analítica (que solicita determinada organização de dados da realidade). Sobre estes dados deve o aluno opinar e redigi-los sob forma dissertativa.

Afinal, deve possuir arcabouço ideológico suficiente para tal : leitura, interpretação de textos (sobretudo narrativos / descritivos, em gêneros diversos) e redação são trabalhados arduamente pelo professorado até as séries em questão. Este último fato proporcionaria a ascensão à modalidade dissertativa , que se fundamenta em idéias e / ou valores, atemporais, ainda que “... que possam estar situadas em algum momento histórico ou fictício (CARNEIRO, 1996:105).

Tais idéias / valores são materializadas, neste momento, sob o prisma de argumentos (opiniões fundamentadas), isto é, diante de um tema polêmico (aquele que pressupõe uma discussão, em quesempre a possibilidade de mais de uma posição sobre o ponto em debate), apresenta-se uma tese (tomada de posição diante do tema), que, apoiada na escolha e ordenação desses argumentos, convencerá o público-alvo.

Logo, diz-se que argumentar

... é a arte de convencer e persuadir. Convencer é saber gerenciar informação, é falar à razão do outro, demonstrando, provando. (...) Persuadir é saber gerenciar relação, é falar à emoção do outro. (...) Mas em que convencer se diferencia de persuadir? Convencer é construir algo no campo das idéias. Quando convencemos alguém, esse alguém passa a pensar como nós. Persuadir é construir no terreno das emoções, é sensibilizar o outro para agir. Quando persuadimos alguém, esse alguém realiza algo que desejamos que ele realize. (ABREU, 2003:25).

Os PCNs, como não poderia deixar de ser, incentivam a “... possibilidade de [o aluno] poder expressar-se autenticamente sobre questões efetivas” (PCNs, 1998:40). Logo, os temas polêmicos são bem-vindos, pois, inerentes aos temas sociais,

Abrem possibilidades para o trabalho com a argumentação capacidade relevante para o exercício da cidadania - , por meio da análise de formas de convencimento empregadas nos textos, da percepção da orientação argumentativa que sugerem, da identificação dos preconceitos que possam veicular no tratamento das questões sociais etc. (idem, p. 41. Grifos nossos)

Em decorrência, os manuais didáticos apresentam farto material para a promoção da discussão de temas, bem como propostas de encadeamento de idéias (os “esqueletos argumentativos”, com introdução, desenvolvimento e conclusão). Outros poucos, ainda, pincelam noções como pressupostos, premissas, silogismos etc.

Entretanto, a nosso ver, a referida “identificação / análise das formas de convencimento ainda não se apresenta devidamente contemplada. Ao contrário, a percepção do tipo de argumento (e a conseqüente orientação que sugerem) mostra-se por demais generalizante.

O aluno, portanto, não é surpreendido com informação nova, que lhe proporcione melhor domínio da escrita dissertativa. Colocar em cena, então, nos bancos escolares, as técnicas argumentativas forneceria, possivelmente, ferramentas para que este aluno pudesse argumentar com mais segurança e, sobretudo, com mais criatividade. Em outros termos : entendesse “...a diversidade dos pontos de vista e as formas de enunciá-los” além de aprender “... a convivência com outras posições ideológicas, permitindo o exercício democrático (PCNs: 1998; 40)

 

As técnicas argumentativas
sob o prisma lingüístico-pedagógico

Falar em argumentação, hoje, implica trabalho sobre critérios do verossímil – a probabilidade do saber estabelecido e do que virá a ser instituído – em outros termos : a formação de opinião própria. A necessidade desta formação se confirma no dizer de Breton (1999:36), quando afirma que a situação típica da argumentação coloca em pauta a ação da opinião. E, apesar de desgastada,

... a “opinião” continua a ser uma realidade forte, que designa aquilo em que acreditamos, aquilo que guia nossas ações e que alimenta nossos pensamentos. O homem não é feito unicamente de opiniões, mas são estas opiniões que fazem um homem e sobretudo sua identidade social.

Na constituição da opinião que se tornará o argumento ainda se consultam (mais do que nunca) os postulados argumentativo-retóricos preconizados por Aristóteles e Górgias. Os novos tratados argumentativos procuram, inclusive, manter, na base, a mesma divisão pelos antigos preconizada. Procede-se, por conseguinte, à divisão das técnicas em dois grandes grupos : as que utilizam argumentos quase-lógicos[3] e as que trabalham com argumentos baseados na estrutura do real.

Os primeiros (quase-lógicos) preocupam-se comverdades para o Homem em geral seu caráter é genérico, porque universal. As segundas, por sua vez, apresentam características mais acentuadas de teor contextual (incluindo-se variantes comunitárias culturais, regionais, temporais, etárias, entre outras).

Assim, se um locutor, usar como tese um mandamento comoNão matarás”, estará utilizando uma verdade universal – os homens consideram, realmente, inadequado retirar dolosamente a vida de outrem. Entretanto, algumas culturais aceitam e recomendam a pensa de morte, caso se trate de determinado delito. , então, entra-se no campo da fundamentação daquilo que é ideal, levando-se em conta as circunstâncias da cenografia do momento histórico em questão.

Muitas são as técnicas para os dois conjuntos. Pedagogicamente, porém, cremos que o professor deve selecionar aquelas que julgar mais pertinentes – de maior eficácia para a produção textual do aluno –, inclusive porque uma exacerbação de conteúdo nem sempre é tão bem assimilada. Além disso, espera-se que o discente não reconheça a técnica utilizada (e os exemplos que passaremos a expor podem contribuir para tal) como também – e sobretudo – coloque talengrenagem textual em prática.

Entretanto, como um ensaio requer uma condensação de conteúdos (e não poderemos abrir mão dos exemplos, pois eles clarificam o enunciado e contribuem para o trabalho aplicativo, posterior dos mestres), vamos-nos ater, apenas, ao primeiro conjunto argumental: os quase-lógicos apresentam, normalmente, maior teor de dificuldade / de entendimento por parte do aluno. Requerem, pois, relevante esforço mental, pois devem apresentar um esquema de raciocínio que se aproxime dos esquemas um pouco mais lógicos – a tese a ser defendida não deve deixar margem a dúvidas.[4]

Neles, o argumentador centralizará seu foco de atenção na incompatibilidade dos dados a serem apresentados ou seja, estabelecida a tese que pretende defender, sempre se preocupará em demonstrar que X ou Y não podem conviver : um elimina o outro. Optamos, em nosso ensaio, apenas por cinco tipos, discriminados a seguir. [5]

 

Argumento da contrariedade

Neste tipo de técnica, o que se quer provar é justamente o contrário ao estabelecido pela premissa inicial, sem admitir nenhum tipo de contradição.

O exemplo a seguir ilustra o caso: à época, a mídia discutia os testes em laboratório, realizados em cobaias animais. Considerável parte do público se manifestava, por cartas, e-mails ou declarações em programas de diversidades, de forma veemente, na condenação às violências cometidas contra os animais. Os cientistas, responsáveis pelos testes, assumiriam, portanto, os papéis de “antagonistas do bem”.

Todavia, o autor do texto, Diretor do Instituto Butantan de São Paulo e Professor-Adjunto da PUC , raciocina em caminho completamente inverso. Admite sua posição a partir do próprio título : “ou você ou a cobaia”. No desenrolar, apresenta claramente o que o lado oposto apregoa para, então, seguir linha única (e contrária) de pensamento. Para tal, utiliza dois argumentos que – praticamente baseados em números (e números inferem credibilidade) – anulam qualquer dúvidahumanista” a respeito do valor ético de se usarem animais em testes. “Humanistas”, para o autor, avessamente ao que que dizem os defensores das cobaias, são os cientistas que se preocupam com o que há de mais humano : o próprio homem.

Ou você ou a cobaia

Corre o mundo uma campanha em defesa do direito dos animais, pregando o fim de seu uso em testes de laboratório. A imagem que se quer passar é a de que os cientistas são indivíduos sádicos, que usam e matam cobaias inocentes. (...)

Nenhuma das pesquisas que deram origem às vacinas seria possível sem o uso de animais de laboratório. Até hoje, a vacina contra raiva é testada em ratos para ver se não restou nela nenhum vírus (...).

Há 40.000 anos os homens viviam, em média, 28 anos. Hoje vivem mais de 70. Devemos isso às pesquisas que utilizam animais. (...)

É bem provável que os defensores dos direitos dos animais acreditem que é uma arrogância do homem moderno colocar-se no centro do universo pessoas que, como Pasteur, priorizam a vida humana diante da vida de outros animais. Para mim, essa arrogância tem outro nome : humanismo

(Isaías Raw , Superinteressante, no. 5, maio 2001)

 

Argumento da definição

Pode-se definircolocar entre limites, entrebarras” conceituais – algo ou alguém, de diversas maneiras. Usam-se definições normativas, etimológicas, expressivas..., enfim, cada argumentador defende sua tese sobre a definição que considera mais pertinente ao auditório universal. É um recurso primoroso, pois demonstra cultura do locutor, além de imprimir, ao seu discurso, certa dose de argumento de autoridade.

No exemplo abaixo, por exemplo, há duas definições : a primeira, de cunho lexical e etimológico; a segunda, de cunho estilístico, poético. Nesta última, inclusive, o autor reforça o arcabouço argumentativo com a intertextualidade (“cordeiro de Deus” / “cordeiro dos homens”), embora tivesse iniciado seu discurso com umanjo torto”, lembrando Drummond nosPoema das Sete Faces”. Veja-se:

Dolly, a revolução dos clones

Para Dolly nascer, foi preciso que um anjo torto, desses que andam de jaleco branco, a arrancasse inteira de dentro de outro animal (....)

Dolly é o que a ciência chama de “clone”, palavra de oridem grega que significa “broto”. Clone é a cópia idêntica de outro ser vivo produzida artificial e assexuadamente. (...)

Ela tem apenas uma origem que não é divina. É humana. Dolly é o cordeiro dos homens.

(Eurípedes Alcântara, Veja,, 05 / 03 / 1997)

 

Argumento da justiça

A lei prescreve, por exemplo quetodos são iguais perante a Lei”; o imaginário social, a seu turno, não deixa por menos : no mínimo, “todos são iguais perante Deus”. Infringir o argumento da justiça significa dizer que se impinge tratamento desigual a seres em situações idênticas – ato absolutamente indigno que fere princípio básico da convivência social

No exemplo escolhido, o autor se mostra contra todo o tipo de violência, sobretudo contra pessoas / populações civis inocentes. Todavia, mais injusto que seu sofrimento, dor ou morte, é o silêncio em torno de atrocidades sofridas por aqueles que não pertencem à nossa (proeminente) civilização ocidental. O mundo não se interessa por eles, não lhes dá a mínima importância. Observe-se, que o início descreve, argumentativamente, uma cena, engate para o tom dramático e enfático que permeará as frases a seguir. As perguntas retóricas, constantes no texto, refletem também revolta e incitam o leitor a participar, com ele, de sua emoção, de sua ira. Os parágrafos são todos construídos tendo seu desenvolvimento por contraste, enfatizando a (injusta) diferenciação.

Quem cria lobos....

“Mamãezinha, minhas mãozinhas vão crescer de novo?”

Jamais esquecerei a cena que vi, na TV francesa, de uma menina da Costa do Marfim falando com a enfermeira que trocava os curativos de seus dois cotos de braços. Era uma criança linda, de quatro anos, a face da inocência martirizada e que em seu sofrimento não conseguia imaginar a extensão do mal que lhe haviam feito. Não entendia e ainda tinha esperanças.

E não era caso isolado. Milhares de crianças daquele país foram selvagemente mutiladas por .... (como qualificar quem fez isso?) em conseqüência de mais uma guerra, resultado tardio do colonialismo, ao criar na África países inviáveis abrigando etnias rivais, exacerbadas pelos colonizadores e massacrando-se com armas que sua gente não produz, vendidas por americanos, russos, europeus, israelenses e outros “civilizados” de boa consciência e que avaliam seus lucros em lugares como o World Trade Center (...)

Justifica-se um atentato terrorista como o de Nova Iorque ? Jamais ! Temos visto, repetidamente, dia após dia, pela TV, cenas da destruição, de tristeza e desespero(...) Estamos todos tristes, mas tristeza e indignação são grandes porque os atentados ocorreram em Nova Iorque (....)

Mas veja uma foto de Cabul, a capital desse Afeganistão mártir de guerras que não são suas e vítima do mais terrível fanatismo religioso. É uma ruína . (...) Mas como em Cabul não Quinta Avenida nem Central Parque, e como ninguém vai comprar tênis, videogames ou dar uma esticada depois de passear na Disney, ninguém se lixa para os milhões de mortos que quase 30 anos de guerras infringiram àquele triste lugar.

A verdade verdadeira é que não somos todos iguais. Uma bomba em Nova Iorque (...) desperta a dor do mundo. Mas quando tutsis e utus se trucidam em Ruanda, e morrem 1 milhão de africanos numa guerra, o assunto é de página dos jornais e os negócios das indústrias de armas continuam de vento em popa.

(Fritz Utzeri, JB, 17 de setembro de 2001)

 

Argumento do ridículo

Neste caso, usando de ironia ou qualquer outro artifício, não se condena claramente o argumento alheio. No entanto, este é colocado em posição de descrédito, perdendo, paulatinamente, sua legitimidade.

João Ubaldo Ribeiro, na crônica selecionada,. assim procede. Nela, trata o que considera “impiedoso terrorismo científico estatístico– é verdade, os cientistas têm sempre razão. Pena que, para o autor, discordem tanto entre si – é mesmo ... os cientistas teriam sempre razão?

Para formar a tessitura dos conceitosridículosque assolam os seres humanos, detém-se sobretudo no itemalimentação” (embora também margeie um ou outro a mais) e arrola inumeráveis exemplosem que uma assertiva vem acompanhada de seu contrário, demonstrando o conflito (ou embuste científico?), do tipoAçúcar faz mal. Açúcar não faz mal, inferindo que o leitor também tenha lido (ou ouvido) algo a respeito e esteja (teoricamente) tão confuso quanto ele, narrador.

O título da crônica é bastante claro e embute o “conselho” : ler os clássicos, literatura asséptica, recomendável, inclusive, porque não se preocupa em perturbar o sono do leitor com conselhos de “como vier mais e melhor comendo isto ou aquilo (ou não comendo isto ou aquilo)”.

Para dar mais efeito persuasivo, inclusive, simula identificação com um determinado destinatário-leitor, de faixa etária similar. A seguir, passa ao somatório de contradições – embaladas em repertório lexical absolutamente negativo - para, ao final, finalizar o texto comchave de ouro”: ratifica o argumento do sacrifício e da solidariedade _ “cede sua (dolorosa) experiência”- , mas reserva um pouco do argumento do ridículo também para aquele que lheatençãoafinal, se é para ler os clássicos, o que faz o leitor prestando atenção a uma (mera) passagem jornalística ?

ler os clássicos / Cuidado com o terror científico: tudo faz mal

Espero que, entre vocês, haja pessoas como eu que vieram de tempo mais simples e hoje se sentem cada vez mais sitiadas. Não me refiro a assaltos, drogas e coisas assim, que afetam a todos, não os coroas. Refiro-me ao impiedoso terrorismo científico estatístico que nos bombardeia de cada jornal, revista ou mesmo bate-papo. Tudo faz mal, geralmente provocando câncer ou horripilantes moléstias neurológicas, em que o padecente fica tremendo, babando e quadriplégico (...)

A comida, além disso, está toda inconsumível. (...) As verduras estão todas contaminadas por cólera, esquistossomose, tifo e disenterias sinistras, além é claro, de agrotóxicos tão mortíferos que oferecer a alguém uma salada de agrião, alface e tomate deveria ser considerado tentativa de homicídio. (...)

Cedo minha experiência àqueles que sofrem como eu : não leio nada, os clássicos. (...) Ler outras coisas, como tudo mais, faz mal horrível. Inclusive, é claro, esta página.

(João Ubaldo Ribeiro, O Globo, julho de 2003)

 

Argumento da retorsão

Talvez configura um dos mais convincentes modos de convencer : o argumentador utiliza os próprios argumentos do antagonista para “retorcê-los” a ser favor, imprimindo-lhes, é claro, nova interpretação.

Em crônica, por exemplo, realizada em época próxima ao segundo turno eleitoral, Luís Fernando Veríssimo – no momento absolutamente persuadido da competência daquele que seria eleito presidente, redige uma crônica em que vai adicionando, sem grandes elos coesivos, sentenças que pertenceriam ao lugar comum – ao imaginário social – de inúmeros brasileiros que, por anos a fio, coloquialmente assim se manifestaram.

Aproveita, então, um episódio retratado nos jornais - e reclamado comoum acinte às boas famíliaspor muitos. Nele, observa-se o (então) candidato sorvendo bebida alcoólica de alto valor monetário. Verifique-se:[6]

A audácia

O Lula tomando Romanée-Conti... Ora, faça-me o favor. Que coisa grotesca. Que coisa ridícula. Que acinte. Que escândalo. E que desperdício. Vai ver ele não sabe nem pronunciar o nome, quanto mais apreciar o sabor. Vai ver derramou um pouco pro santo, na toalha. Romanée-Conti não é pra gentinha, não Lula. As coisas boas da vida são para as pessoas finas do mundo, não pra rapado que bota gravata e acha que é doutor. Muito menos pra pé-rapado brasileiro. (...)

O Lula tomando Romanée-Conti... É o cúmulo. É uma inversão completa de valores sob os quais nos criamos, segundo os quais se Deus quisesse que os pobre tomassem vinho de rico daria uma ajuda de custo. É o fim de qualquer hierarquia social, portanto o caos. Ainda bem que existem patriotas alertas para denunciar o acinte, o escândalo, e chamar o Lula de volta à humildade. Para mandar o Lula se enxergar.

Sim, porque hoje é Romanée-Conti e amanhã pode ser até a presidência da República. Gentinha que não conhece o seu lugar é capaz de tudo.

(Veríssimo, O Globo, 15 de outubro de 2003)

Conclui-se daí que a retorsão nem sempre precisa estar clara e explicitamente presente no texto (o argumentador não precisa expressar o que o outro afirmou para usar o argumento a seu favor). No caso ilustrado, Veríssimo usa de retorsão na denúnciaclara – de assertivas que muitos pronunciam, em que muitos acreditam (aliás, grande parte da sociedade, nas eleições anteriores à que lhe deu a vitória), mas que poucos têm coragem de “colocar no papel”. A conseqüência também se insere, neste caso, no campo do ridículo. Mas a retorsão é a técnica argumentativa prioritário para se chegar.


 

Conclusão

O que se pretendeu, na verdade, nesta escritura foi a plantação de uma idéia – a de que conceitos retóricos clássicos podem (e devem) ser trabalhados com os alunos. Como conseqüência, espera-se ter, na medida do possível, contribuído para que o trabalho diário do professor, no entendimento de que textos - de qualquer gênero ou espécie – trazem embutida uma técnica específica. Compreendê-la e repassá-la ao alunado talvez seja o portal para a formação crítica, atuante de fato.

A tarefa não é tão difícil, ao contrário, mostra-se prazerosa até porque o profissional pode atuar com revistas, jornais, anúncios, lay-outs, enfim, um sem-número de possibilidades para que o educando absorva os fatos, comente-os, discuta-os, identifique clichês ideológicos, deixe de escreveraquilo que acha que os outros querem”

Nesse ponto, o ensino de técnicas argumentativas é fundamental. Argumentar prescinde de amadurecimento cognitivo-intelectivo. Resta saber como fazê-lo, como viabilizá-lo no dia a dia. Até mesmo porque

Saber argumentar não é um luxo, mas uma necessidade. Não saber argumentar não seria, aliás, uma das grandes causas recorrentes da desigualdade cultural, que se sobrepõe às tradicionais desigualdades sociais e econômicas, reforçando-as ? Não saber tomar a palavra para convencer não seria, no final das contas, uma das grandes causas da exclusão ? (BRETON:1999,19)

Portanto, uma sociedade que não disponibiliza a todos os meios para serem cidadãos, de fato, fere a regra da justiça. Não é verdadeiramente democrática.


 

Bibliografia

ABREU, Antônio Suarez. A arte de argumentar: gerenciando razão e emoção. 6ª ed. Cotia: Atelier, 2003.

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MIRABAIL, Huguette. Argumenter au lycée: modules et séquences. Midi-Pyrinées: Bertrand-Lacoeste, 1994. (traduzido)

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––––––. L’argumentation. Paris: Editions de Seuil, 1996. (traduzido)

TOULMAN, Stephen. Os usos do argumento. São Paulo: Martins Fontes, 2001.


 

[1] Especial agradecimento aos alunos da PG (Mestrado-Doutorado / UFF) pela coleta do material, inclusive do que integra este artigo, como amostragem.

[2] Procuramos, também, simplificar a nomenclatura utilizada, com o propósito de atingir o maior número possível de profissionais que labutam na área da educação.

[3] Argumentos lógicos (na linhasdemonstrativa” estariam fora de cogitação : trabalham dados matemáticos ou de ordem científica que, até prova técnica em contrário, não configuram campo polêmico : ou estão corretos ou estão fora do eixo da verdade

[4] Ficam os argumentos baseados na estrutura do Real para outra oportunidade.

[5] PERELMAN & OLBRECHSTS-TYTECA (1996, 219-295), a nosso ver o mais completo tratado argumentativo do presente, apresentam, entretanto, alinhamento diverso. Praticamente, também, esgotam o assunto, no estabelecimento de maior diversidade argumental. Todavia, selecionamos somente os mais utilizados pela mídia brasileira, tomando por escopo dados de nossa Pesquisa atual.

[6] Não grifos nesta excerto de crônica, pois copia os ditos populares praticamente do começo ao fim.