O TRABALHO FILOLÓGICO[1]

Bruno Fregni Bassetto (USP)

 

O trabalho filológico tem por objetivo a reconstituição de um texto, total ou parcial, ou a determinação e o esclarecimento de algum aspecto relevante a ele relacionado. Estende-se desde a crítica textual, cujo objeto é o próprio texto, até as questões histórico-literárias, como a autoria, a autenticidade, a datação etc., e o estudo e a exegese do pormenor.

 

CRÍTICA TEXTUAL

O objetivo desta primeira etapa é a reconstituição do texto, isto é, tentaremendar” o texto para aproximá-lo ao máximo da forma que recebera do próprio autor. Consta das seguintes fases discutidas a seguir.

 

recensio

Esta fase foi denominada recensio (“recenseamento”) por Lachmann; consiste no levantamento de todos os códices existentes da obra a ser publicada.

 

collatio codicum

 Completada a recensio direta e indireta, passa-se à fase seguinte, a collatio codicum, isto é, a comparação dos diversos códices ou edições da tradição direta.

 

estemática

Depois de devidamente classificados os documentos pertencentes à tradição direta, passa-se ao que Lachmann denomina originem detegere, “desvendar a origem”. Consiste no estabelecimento da genealogia do códice, isto é, sua filiação e modo de transmissão.

 

emendatio

Emendatio é o nome dado ao conjunto das operações que visam à correção do texto.

 

CRÍTICA HISTÓRICO-LITERÁRIA

Terminado o trabalho da crítica textual com a reconstituição do texto, passa-se ao estudo dos vários aspectos da chamada crítica histórico-literária, que procura esclarecer possíveis pontos obscuros, eliminar lacunas no conhecimento de dados a respeito do texto etc. Aqui também são usados os critérios externos, sobretudo citações, alusões, referências etc. A crítica histórico-literária aborda os itens identificados a seguir.

 

autenticidade

Autenticidade diz respeito à autoria do texto, que se dirá autêntico se realmente for do autor ao qual se atribui.

 

datação

Determinar a data, o ano ou, pelo menos, a época em que o documento foi escrito pode ser muito útil para a compreensão de seu conteúdo, de sua forma, finalidade e outros aspectos, que um escrito, de uma forma ou de outra, é um reflexo de sua época.

 

fontes

Neste tópico, pesquisam-se as citações diretas e as indiretas, as alusões, os possíveis plágios, as imitações, em resumo, toda e qualquer influência de outros autores sobre o texto.

 

circunstâncias

Circunstâncias são todas as variáveis que “estão ao redor” de algo. Situar um documento em seu contexto histórico, cultural, social e político pode facilitar a compreensão de sua mensagem, esclarecer tópicos e alusões, além de alinhar autor e obra segundo as diversas correntes filosóficas, literárias, políticas etc.

 

sorte

Neste item, o filólogo procura rastrear a sorte, boa ou má, do documento. O êxito de um texto manuscrito se avalia pelo número de cópias, pelas citações, referências, estudos, alusões etc.

 

unidade e integridade

A um manuscrito era possível acrescentar textos e também suprimir-lhe uma parte menor ou maior; estudando esse ângulo, o filólogo verifica a integridade da obra, isto é, se está inteira, íntegra e completa.

 

linguagem do texto

Do estudo da linguagem do documento, o filólogo pode colher muitas informações importantes para um conhecimento mais aprofundado do próprio texto.

 

avaliação crítica

Como último passo desta etapa, o filólogo fará uma avaliação crítica final da obra sob dois aspectos: seu valor documental e seu valor literário.

 

EXEGESE DO PORMENOR

Completando o trabalho filológico, procurar-se-á estabelecer os detalhes ou os pormenores, que o leitor provavelmente não consiga entender claramente, ou que mereçam um aprofundamento maior. Para isso, aplicam-se os princípios da hermenêutica, a ciência da interpretação; à prática dessa ciência se dá o nome de exegese ([....]).

A exegese do pormenor buscará aclarar as alusões muitas vezes obscuras, verificará a autenticidade e a correção das citações, possíveis erros históricos; tentará ao menos explicar expressões típicas, tópicos obscurecidos por interpolações ou supressões, pesquisará a razão de aparentes ou reais incoerências do texto e outros problemas semelhantes. Esse trabalho exige do pesquisador muitos conhecimentos de ciências afins, bem como do contexto próximo e remoto.

 

EDIÇÃO

Concluído o trabalho filológico, poderá o autor publicar seu trabalho; dependendo de seus objetivos, poderá escolher o tipo de edição que lhe for mais conveniente, dentre os quais convém caracterizar os mais importantes.

 

edição crítica

A chamada edição crítica é, sem dúvida, a que melhor se coaduna com o longo esforço do trabalho filológico. Embora sem normas universalmente aceitas, deverá apresentar:

a.  Uma Introdução, em que se indicam os problemas encontrados e as soluções dadas na crítica textual, os critérios adotados em suas diversas etapas; o conspectus siglorum, o conjunto das siglas indicativas dos diversos códices, das diversas edições ou editores e das abreviaturas mais usadas; também serão úteis outras informações, como as colhidas no estudo histórico-literário, selecionadas de acordo com a importância dos esclarecimentos em relação à compreensão do texto.

b.  O Texto reconstituído; as variantes encontradas formam o “aparato crítico”, no rodapé de cada página, com a indicação do códice ou documento em que cada variante se encontra. Dependendo do caso, acrescentam-se os resultados da hermenêutica, como interpretações, comentários, notas e os esclarecimentos obtidos pela exegese do pormenor. Dependendo do assunto, um glossário pode ajudar consideravelmente a compreensão do texto.

 

edição diplomática

A edição diplomática ([....]) consiste na “reprodução tipográfica do original manuscrito, como se fosse completa e perfeita cópia do mesmo na grafia, nas abreviações, nas ligaduras, em todos os seus sinais e lacunas, inclusive nos erros e nas passagens estropiadas” (SPINA, Segismundo. Introdução à edotica. São Paulo: Cultrix; Edusp, 1977, p. 78).

 

edição paleográfica

A edição paleográfica resulta da transcrição de um manuscrito antigo ([...])., mais perfeita que a reprodução fac-similada, porque ressalta particularidades do texto e do material que um perito pode descobrir.

 

outros tipos de edição

Os meios técnicos modernos revolucionaram as formas de reprodução de textos; inventaram-se diversos meios mecânicos de cópia.[2]

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Sob outros pontos de vista, citam-se ainda outros tipos de edição, como: a. edição comentada, b. edição escolar, c. edição popular.

 

[Desculpe-nos se tiver havido algum erro de transcrição]


 

[1] Extratos autorizados de BASSETTO, Bruno Fregni. “O Trabalho Filológico”. In: –––. Elementos de Filologia Românica. São Paulo: Edusp, 2001, p. 43-62.

[2] não se pode ignorar a edição digitalizada (em cd-rom ou dvd) nem a virtual (na internet), com a inserção dos recursos de multimídia facilitadores da compreensão e da distribuição.