obra literária
questão de inserção contextual
Maria Antonia da Costa Lobo
(UCB e UniverCidade)
O vínculo de uma obra a aspectos que contribuíram para que ela se tornasse possível, e o ato de pensar no surgimento da mesma, em uma certa época, não constituem uma tarefa nova.
Mas é necessário analisar a articulação de uma obra contextualizada, sendo possível aos analistas enveredar por uma rede de textos ou pelo caminho dos historiadores. Dois rumos podem, então, ser tomados:
1) aquele voltado para a Estilística, o qual pode levar à apreensão da obra, enquanto universo fechado; e
2) aquele da história literária, a qual pode envolver um léxico conveniente a múltiplas eventualidades (expressar, representar, influenciar,...).
Não se pode negar que há, no caso, uma separação entre um interior e um exterior do texto, separação essa endossada mesmo pelo Estruturalismo.
Mas outros aspectos, outrora relegados a um plano inferior (intertextualidade, pragmática, enunciação lingüística, análise do discurso...) impuseram, todavia, nova concepção referente ao fato literário.
Em verdade, atualmente texto e contexto são indissociáveis. A textualidade tem um caráter enunciativo, o qual não deve ser menosprezado. O entendimento da problemática da enunciação muito contribui para a compreensão de um fato literário.
Deve a obra literária ser relacionada com a configuração histórica da qual ela emerge?
Em verdade, a história literária está estritamente ligada a um empreendimento filológico.
No Ocidente (incluindo a literatura e a cultura), desde os gramáticos alexandrinos (século III a.C.), esse empreendimento filológico é refletido na relação entre (um) texto literário e (o) contexto histórico, no qual ele brotou.
Ressalte-se que as transformações sociais gregas e a eclosão de formas lingüísticas pouco a pouco tornaram nebulosos alguns textos de prestígio.
Contudo, desenvolveu-se uma das disciplinas, a Filologia, cujo objetivo era levar esses textos aos contemporâneos, pela análise dos manuscritos e pela investigação histórica, as quais representavam a restituição do texto original, o esclarecimento de palavras ou de passagens obscuras, buscando encontrar a intenção do respectivo autor e as condições de trabalho do mesmo.
Logo, na segunda metade do século XIX, foi desenvolvida uma rica metodologia de Crítica Textual, visando a comparar os manuscritos, datá-los, determinar a origem dos mesmos, acompanhar a respectiva transmissão, detectar eventuais falsificações, etc... O texto era tratado pelo filólogo como sendo um documento a respeito do espírito e dos costumes da sociedade, já que dela era a expressão.
Segundo Michel
Foucault (1969: 14), tratava-se de...reconstituir a partir do que esses documentos diziam - às vezes em meias palavras - o passado do qual emanavam e que se esvaneceu longe no tempo; o documento era sempre tratado como a linguagem de uma voz então reduzida ao silêncio - seu vestígio frágil, mas por sorte decifrável.
A questão a respeito de Homero, durante todo século XIX que o diga. Houve debates para saber se, de fato, existiu um cidadão chamado Homero, autor da Ilíada e da Odisséia, ou se essas obras simplesmente seriam um conjunto de poemas anônimos, produto do Helenismo. Considerando-se que havia a pretensão que essas obras expressassem o espírito social grego arcaico, entende-se porque alguns indivíduos negavam que tivessem um autor e as atribuíam diretamente ao povo.
Atualmente, escritores e artistas aparecem como indivíduos notáveis, aos quais se atribui o poder de exprimir pensamentos e sentimentos dos respectivos contemporâneos.
Assim se encontra em uma edição crítica de La Bruyère (1970: 147):
Ao término de uma leitura atenta, o livro dos Caractères aparece em estrita ligação com a respectiva época que resume e exprime maravilhosamente. Nesse final do reinado de Luís XIV, é um testemunho das irritações e inquietações que atormentam os espíritos que refletem, reflete melhor do que qualquer outro livro os sentimentos que animaram a França nesses anos desastrosos e abre-nos muitas perspectivas a respeito do outro lado do grand siècle (...). Permite-nos sobretudo conhecer, página após página, a personalidade móvel e atraente de La Bruyère.
Reflete, por assim dizer, simultaneamente a individualidade do autor e o Grand Siècle. O estudo textual fortalece o saber histórico constituído independentemente.
A Filologia pode trabalhar entre uma definição metodológica - através de um conjunto de técnicas auxiliares da História, permitindo estudar / analisar documentos - e uma espécie de Ciência da Cultura (relação entre as produções culturais e o que as tornou possíveis).
A priori, o texto apresenta um conjunto de vestígios materiais aos quais podem faltar uma data, o local em que surgiu, nele buscando-se uma pertinência genérica (Que texto é esse? Trata-se de um relato histórico? A forma na qual foi encontrado é a primitiva? Quem é o respectivo autor?). Múltiplos detalhes relativos ao texto são ou podem ser, no caso, estudados / analisados.
Considerando-se que a obra de um escritor / autor é concebida como uma totalidade, da qual todos os aspectos exprimem as idéias dele, a tarefa da crítica deve ser a busca do foco oculto que permita explicar (esclarecer) as múltiplas facetas de um texto (personagens, intriga, composição, enredo, usos lingüísticos...). Tem-se, então, uma coesão, permitindo integrar a obra uma totalidade abrangente - através de uma obra, o autor expressa uma época. É importante ressaltar que a Língua tem sempre uma dimensão psicossocial.
CONCLUSÃO
Para que perguntas sejam feitas e respostas relativamente a elas sejam propostas, é necessário que se tenha uma concepção da obra literária de base.
Essa obra é suporte de um ato de discurso socialmente reconhecido, estando sempre em debate com o aparelho enunciativo que a carrega.
Uma produção literária não é condicionada por uma Língua completa e autárquica, que lhe seja externa, mas que entra no jogo das tensões que a integram.
Logo, uma questão deve servir de ponto de partida para uma análise: de que maneira uma obra pode resumir ou refletir uma época?
A Literatura contribui para a constituição da Língua, para o reforço da mesma ou até para o próprio enfraquecimento dela.
No século XIX, no que concerne à literatura francesa, alguns escritores, tomando por base a produção literária de Frédéric MISTRAL (1830-1914) muito trabalharam a favor do renascimento do Provençal: fizeram um movimento literário (o Félibrige) para a produzir obras e até redigiram um dicionário. Não existe Língua verdadeiramente, sem instituição.
Segundo Goldmann (1964: 218-219):
O caráter coletivo da criação literária provém do fato de que as estruturas do universo da obra são homólogas às estruturas mentais de certos grupos sociais ou estão em relação inteligível com elas, enquanto no plano dos conteúdos, ou seja, da criação de universos imaginários regidos por essas estruturas, o escritor tem uma liberdade total.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bruyère (la). Rhétorique Générale. Paris: Larousse, 1970.
Foucault, Michel. Archéologie du savoir. Paris: Gallimard, 1969.
Goldmann. Pour une sociologie du roman. Paris: Gallimard, 1964.