DA HETEROGENEIDADE NO DISCURSO CRONÍSTICO
Vanise Gomes de Medeiros (UERJ)
Introdução
Terra habitada por índios, terra sem escrita, terra descoberta, terra povoada, terra colonizada. Terra sobre a qual se contaram histórias, construíram-se histórias, vincularam-se histórias. Ilha de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz, Brasil[1]. Viajantes, exploradores, naturalistas, navegadores, comerciantes, cientistas, artistas, vários foram os que escreveram sobre o que aqui julgaram ver e perceber, vários foram os que julgaram definir e explicar o que aqui julgaram acontecer, ser.
Durante muito tempo o Brasil foi falado de fora, ou melhor, foi falado apenas de fora[2]. Relatos de viajantes, descrições de naturalistas, análises de estudiosos configuram a nossa história e apresentam-nos identidade. Faz parte da história do Brasil ser falado pelo estrangeiro, ser explicado pelo estrangeiro, ser definido pelo estrangeiro. Estrangeiro, no caso, europeu. Faz parte da nossa memória ouvir o outro nos dizer. Faz parte do nosso imaginário termos nossa identidade instituída, configurada pelo outro.
Neste trabalho, busquei o estrangeiro que habita o imaginário do brasileiro, e que, como objeto construído, como alteridade constituída, fala do Brasil e dos brasileiros. Mais exatamente, me debrucei não sobre o que o estrangeiro fala sobre o Brasil ou sobre os brasileiros, mas sobre o que, na voz do brasileiro é atribuído ao estrangeiro, ao outro, para falar do Brasil e do brasileiro.
Vários são os lugares e as épocas de onde emergem vozes de brasileiros atravessadas pelo estrangeiro. Optei pelo espaço jornalístico, centrando-me nas crônicas de um certo período da nossa história: governo JK. Em breves palavras, tal escolha se deve ao papel do intelectual na mídia, que me interessa investigar, e, quanto ao período, este foi privilegiado em função de construir um espaço outro para a representatividade brasileira – Brasília –, espaço que retomou projetos anteriores de Brasil, ressignificando assim um passado e fazendo projeções para o futuro. Ademais, como pude observar, o estrangeiro era convocado a falar de sua construção. Dizia-se o que aquele teria dito; falava-se de Brasil e de brasileiros em nome do outro e através do outro. É preciso dizer que o trabalho a ser exposto consiste em uma segunda etapa da análise desse jogo discursivo entre vozes brasileiras e vozes estrangeiras. A título de orientação, em uma primeira etapa investiguei, entre outras coisas, quem era o estrangeiro a quem se atribuía um falar sobre Brasil e brasileiros. Nessa etapa, observei que o estrangeiro se apresentava em dois grandes eixos – do estrangeiro com nome próprio e do estrangeiro sem nome próprio. Estes eixos constituíam três formações discursivas – da descoberta, do desconhecimento e do estranhamento – atravessadas por várias posições discursivas do estrangeiro e do brasileiro que diluíam a fronteira entre elas, isto é, observei que havia posições discursivas que invadiam outras formações discursivas. Uma outra etapa do trabalho consistiu em analisar as formas de mediação do dizer. É o que vai se expor em linhas gerais neste artigo.
Mediações do dizer
Toda fala é heterogênea, i. é, é atravessada por discursos outros, pelo já-dito. Um já-dito que escapa ao sujeito que se supõe ser ele a fonte daquele dizer. Isto já se sabe com Pêcheux (1988). E isto também é investigado por Authier-Revuz quando a autora se debruça sobre as formas de heterogeneidade do dizer.
Todo texto trabalha a sua incompletude constitutiva através de uma organicidade que lhe confere princípio, meio e fim, e que o faz funcionar como objeto acabado e, daí, completo. Isto já se sabe com Orlandi (1987). Com esta autora também se sabe que a incompletude decorre não apenas das condições de produção mas também da heterogeneidade fundante de todo discurso, ou ainda dos discursos outros que o perpassam. Isto posto para dizer que o texto é construído na ilusão de um domínio do dizer (na medida em que se supõe ser a fonte do dizer) sobre dizeres outros. Domínio que passa pela demarcação, jogando com as palavras de Authier-Revuz, do que se supõe que vá ou não de si. Em outras palavras, pode-se dizer que a ilusão de completude, que resulta no efeito de homogeneidade do texto, advém de um suposto esforço de domínio do heterogêneo que o atravessa, como sabem os analistas de discurso.
É sobre as formas de demarcação dos outros dizeres que incide este trabalho. Busca-se o que as formas de representação do discurso outro no universo cronístico aqui privilegiado permitem observar no que tange ao identitário. Importa, contudo, destacar que este jogo de demarcação do dizer implica a demarcação de fronteiras discursivas, isto é, de fronteiras entre formações discursivas. É aí que reside o interesse ao me deter sobre as formas de trabalho do heterogêneo, isto é, pretendo analisar o trabalho das formas de mediação do outro nas formações discursivas que dizem o brasileiro.
É preciso fazer referência ao trabalho de Authier-Revuz. De acordo com esta autora (1997), no campo complexo das formas de representação do discurso outro, ao menos três oposições se fazem.
A primeira oposição diz respeito à fronteira que separa a palavra do um da palavra do outro no interior do discurso do um, isto é, marca-se ou não a fronteira que delimita o que seria do um do que seria do outro. Aí se encontra a oposição entre heterogeneidade marcada e não marcada. Como heterogeneidade marcada, tem-se, por exemplo, o discurso relatado (seja direto ou indireto) bem como a modalização autonímica (“X, como ele diz”) ou ainda a palavra entre aspas, a ilha textual; como heterogeneidade não marcada, o discurso indireto livre, a alusão, a ironia, entre outras. Esta oposição trabalha a ilusão da delimitação do que é seu através da demarcação do que seria do outro.
A segunda oposição diz respeito à representação do outro discurso, ou melhor, à imagem com que se trabalha a palavra outra: se por uma operação de menção ou de tradução. No primeiro caso, “mostra-se” a palavra como sendo outra; no segundo, reformula-se o dizer outro. Exemplificando: no primeiro caso, tem-se a palavra entre aspas, o discurso direto; no segundo caso, o discurso indireto, a modalização sobre o conteúdo do dizer (“segundo X, Y”). Aqui a ilusão em jogo é a da manutenção da palavra outra, e com ela, a ilusão da manutenção do sentido outro.
A terceira oposição diz respeito ao estatuto da palavra outra no dizer: se fala-se das palavras do outro ou com as palavras outras. Esta é uma distinção que serve para separar o campo do discurso relatado das demais representações do discurso outro, isto é, uma distinção que visa diferenciar o discurso relatado das demais formas de inscrição do outro. Com o discurso direto e indireto (e vale lembrar que aí não se encontram nem o discurso indireto livre nem o discurso direto livre) tem-se o falar das palavras do outro, fala-se de uma enunciação outra; nos demais casos, tem-se o falar com as palavras outras, sem remissão à enunciação. Aqui a ilusão é de dizer “voilá ce que les autres ont dit” (Authier-Revuz, 1978), isto é, a ilusão da demarcação de um dizer já realizado enquanto ato de enunciação outro.
São oposições que não se sobrepõem umas às outras; antes entrelaçam-se ou conjugam-se na tentativa de dar conta de um ou outro fenômeno da heterogeneidade no discurso. São, pois, oposições que distinguem diferentemente o extenso campo de representações do discurso outro na tentativa de capturar, no fio do discurso, as diversas formas de inscrição da alteridade.
Cabe dizer que estas distinções constituíram a base a partir da qual se debruçou sobre as formas de inscrição do heterogêneo que trabalha o identitário, base da qual se lançará mão sempre que servirem para iluminar uma ou outra questão pertinente à análise que se engendra; entretanto, no que se refere ao objetivo deste trabalho, elas foram retrabalhadas em função da análise discursiva que se realizou sobre a fala do estrangeiro e em função do funcionamento do corpus desta pesquisa.
Dado o recorte que se promoveu nas crônicas visando o identitário na atribuição dos dizeres, recorte na e da superfície lingüística, mas recorte que engendrou o corpus, uma etapa outra consistiu em remetê-lo às formações discursivas. Em observar como se materializava aí o funcionamento das formações discursivas. E mais uma vez se pôde depreender três grandes eixos discursivos: agora articulados a partir da visibilidade e materialidade da palavra.
Um poeta já disse que as palavras têm cor, peso, gosto. No jornal, as palavras têm imagem, forma, cor. Têm corpo. Elas se destacam uma das outras. Caixa alta, negrito, itálico, tipo de letra trabalham sua inscrição no jornal. Trabalham a diferença que as faz significar. Aí as formações discursivas materializam-se não apenas na palavra como signo lingüístico, mas na forma da palavra, na sua semiotização. Aí o corpo configura o sentido.
Para desenvolver essa questão da visibilidade como materialização de formações discursivas no corpo da palavra, é preciso trazer para cá uma reflexão de Orlandi (2001) sobre a pontuação como resultado da inscrição do político em uma prática da linguagem. Para a autora, a pontuação, “atesta um duplo trabalho do simbólico: se, de um lado, ela é marca – traços empíricos, signos diacríticos – de outro, ela indica a textualização do discurso, sendo assim índice de sua materialidade, ligando o real ao imaginário.” (2001)
A pontuação, pensada discursivamente, longe de se restringir aos limites da sintaxe ou da frase canônica (idem), é um elemento de linguagem que trabalha no texto, através das pausas, cortes e relações que estabelece, as formações discursivas, as posições discursivas que o atravessam. Cito Orlandi, “A pontuação serve assim para marcar divisões, serve para separar sentidos, para separar formações discursivas, para distribuir diferentes posições dos sujeitos na superfície textual. Elas indicam modos de subjetivação.” (idem, p. 116). A pontuação é gesto de interpretação, diz a autora. É este o caminho que interessa aqui para pensar o corpo da palavra no jornal. Como gesto de interpretação. Suas diferentes formas, isto é, se itálico ou não, por exemplo, denunciam o trabalho das formações discursivas, o trabalho do discurso sobre os mecanismos lingüísticos, agora no caso, mecanismos que trabalham a forma da palavra, seu corpo no texto. O sentido que se faz no corpo físico da palavra que se textualiza.
No corpus de análise aqui em questão, as palavras têm corpo e este se destaca por vezes dos outros. É isto que estou chamando de visibilidade da palavra: o trabalho sobre o corpo da palavra que a releva das outras palavras. No caso, dado que o interesse é a voz estrangeira que diz o nacional, a visibilidade com a qual me ocupo diz respeito ao trabalho sobre as diferentes formas de atribuição do dizer.
Por dar visibilidade ao heterogêneo, estou entendendo o uso de recursos como aspas, travessão do discurso direto, corpo que se separa do texto no caso da citação, itálico que inclina a palavra para diferenciá-la. Mecanismos tipográficos que funcionam como dispositivo de semiotização do dizer do outro. Que retiram a palavra do outro da ordem da padronização do texto, isto é, da sua integração total ao texto, para colocá-las em evidência: visual. Visibilidade que releva a palavra do outro como objeto visível, objeto que captura o olhar o leitor. Enfim, visibilidade que se opõe à assimilação corpórea da palavra do outro. E com isto, encontram-se lado a lado, como tecnologias que trabalham a visibilidade da palavra outra, o discurso direto e as aspas da ilha textual e também as aspas que podem ou não ocorrer na modalização autonímica. Fenômenos que, na abordagem de Authier-Revuz, são pensados em lugares distintos. De outro lado, isto é, do lado da assimilação da palavra do outro, encontram-se as formas tais como o discurso indireto livre, o discurso indireto, a alusão, as glosas, entre outras formas, que não se separam do corpo do texto como membro enxertado ou corpo outro ali exposto. Aí as palavras que se julga de si e aquelas que trabalham a alteridade são igualadas corporeamente.
Dos eixos de visibilidade
São três os eixos de visibilidade – do elogio, da falha e do equívoco – e neles são várias as posições discursivas que comparecem, recortando agora diferentemente as três formações discursivas capturadas. Explico: observei em uma primeira etapa do trabalho que uma importante distinção entre vozes anônimas e não-anônimas resultou em três formações discursivas: da descoberta, do desconhecimento e do estranhamento. Observei que cada uma delas apresentava determinadas posições discursivas específicas bem como ocorria de uma mesma posição comparecer em mais de uma formação discursiva. Ou seja, apresentei um determinado contorno das formações discursivas em função da presença ou não de posições discursivas. Este contorno, no entanto, pôde ser redesenhado em função das formas de visibilidade da palavra do outro.
Um exemplo: no eixo que estou denominando de eixo da visibilidade do elogio, dá-se visibilidade tanto ao elogio pelo estrangeiro quanto à refutação à crítica do estrangeiro pelo brasileiro. Neste eixo, ainda, busca-se diluir, na superfície lingüística, a crítica, a falha ou o problema trazido pela voz estrangeira. Ou melhor, neste eixo, a visibilidade do elogio pelo estrangeiro e da resposta do brasileiro à crítica estrangeira tem como contrapartida a diluição da crítica na voz estrangeira integrando-a à cadeia discursiva através do discurso indireto, do indireto livre, entre outras formas de heterogeneidade do dizer.
Neste artigo, pretendo me centrar no terceiro eixo: o da visibilidade do equívoco. Para a reflexão sobre este eixo vai-se partir de um importante conceito para o analista de discurso: trata-se do conceito de interincompreensão, formulado por Maingueneau (1989). A interincompreensão consiste na penetração em uma formação discursiva de uma outra formação discursiva que é, então, ressignificada, isto é, que é interpretada a partir das categorias da formação discursiva em que se insere. Cada formação discursiva tem seus próprios pré-construídos e seus próprios silenciamentos e é com eles que a entrada de enunciados de outras formações funcionam. Daí se poder dizer o mesmo, se interincompreendendo: significa-se diferentemente, significa-se em função das regras da formação discursiva em que se insere. Trouxe esta reflexão para cá, para tratar do equívoco, produto da interincompreensão, no caso, entre estrangeiro e brasileiro.
No eixo da visibilidade do equívoco, o estrangeiro é posto como alguém que supõe saber, entender, conhecer Brasil e brasileiros. Alguém que fala de uma posição do saber e que se aproximaria, portanto, da posição do sábio. Mas é aí que reside a diferença tanto em relação à posição do sábio quanto em relação à do crítico, posições discursivas de outras formações discursivas. Por um lado, o estrangeiro não pergunta, mas afirma; por outro lado, seu saber resulta em engano, equívoco. Sua marca é soar estranhamente. É significar diferentemente. É esta dissonância que é exposta nas crônicas do dizer do estrangeiro. Mais do que isso, sob as palavras do outro expõe-se seu equívoco: a posição do brasileiro que desconstrói o dizer inscreve-se sob as palavras do estrangeiro. Se ambas se fundem, a ambas é dada visibilidade. Ou melhor, a visibilidade da posição do brasileiro desfaz a posição, visível, do estrangeiro. Observe no recorte a seguir o parágrafo em que recupera a citação de um jornal estrangeiro[3].
Recorte 4
Os habitantes de Ouro Preto - capital de um dos mais ricos Estados do México - não podendo suportar a falta de conforto de seus arrabaldes, deliberaram, há algum tempo, abandonar essa cidade por uma localidade mais conveniente. Todos os habitantes - um exército de 20.000 homens - dirigiram-se em massa para a nova cidade que, há dois anos, está em construção, ocupada apenas por operários e artistas que dão os últimos retoques nas ruas, nos espaçosos edifícios públicos e particulares. A velha Cidade de Ouro Preto, que vai ser abandonada às feras que abundam nas florestas que a rodeiam é notável, entre outras razões, por possuir uma única rua, de algumas milhas de extensão. Está edificada ao longo de um desfiladeiro, uma montanha. Apesar de estar situada a cerca de 5.000 pés sobre o nível do mar, é sempre tão úmido o ar, que todos os objetos, não guardados em caixas hermeticamente fechadas, mofam em pouco tempo. Nessa cidade montanhosa nada há que se pareça com uma carruagem e até a própria locomoção em costas de burro é perigosa na única rua que serpenteia por espaço de milhas, e é a mais movimentada do lobo. Outra particularidade notável nessa cidade é que a metade de seus habitantes tem vivido, nesses últimos anos, as galerias abandonadas que, à procura do ouro, os mineiros rasgaram nas rochas ao longo das montanhas.
Assim noticiava em 1896 o Journal de Nova Iorque, a propósito da mudança de capital de Minas Gerais. (Notícias, Fernando Sabino, JB,14/6/58) (negrito meu)
São estes os dois primeiros parágrafos de uma crônica cujo título “Notícia” remete para uma prática do jornal – noticiar – e que faz uso de uma prática do discurso jornalístico: citar e, cabe destacar, citar outros jornais[4]. Importa observar que o verbo usado também foi “noticiar”. Joga-se, pois, com uma prática comum no discurso jornalístico, prática cujo efeito é o da neutralidade do trabalho com a fala do outro, prática cujo efeito é o da manutenção da fala, e por conseguinte, do sentido, do outro.
A crônica se inicia com uma extensa citação em um único parágrafo (é o mais longo da crônica). E, já na primeira linha, sem que ainda se saiba a proveniência da citação, reconhece-se de imediato a fala estrangeira, a fala estranha: Ouro Preto, cidade brasileira, como capital de um estado do México. Deslize de um enunciado em que se tinha Buenos Aires como capital do Brasil. Equívoco característico de uma fala atribuída ao estrangeiro. Mas não é o único equívoco; a seleção lexical é outra marca da condição estrangeira: “feras” que abundam nas “florestas”; cidade edificada ao longo de um “desfiladeiro”, habitantes que vivem em “galerias subterrâneas”. Marcas de um discurso do outro, de um discurso outro. Marcas de uma fala estrangeira que julga conhecer o país. E esta equivocada suposição é reforçada quando, ironicamente, se afirma que agora somos um pouco mais conhecidos:
Hoje, sem dúvida, os Estados Unidos nos conhecem um pouco mais. Se ainda é comum perguntarem ao brasileiro que lá se encontra se o Rio de Janeiro é a capital de Buenos Aires, por outro lado as nossas qualidades são exaltadas pelos jornais, e enaltecidas nossas virtudes de ferro, as nossas aptidões minerais. Montanhas enferrujadas de Itabira, areias monazíticas, lençóis de petróleo na Bahia e no Amazonas. E principalmente essa grande aventura que vem a ser a construção de Brasília.(...) (negrito meu)
Cabe notar que neste parágrafo diz-se que o outro conhece: “nossas virtudes de ferro, as nossas aptidões minerais. Montanhas enferrujadas de Itabira, areias monazíticas, lençóis de petróleo na Bahia e no Amazonas”. Observa-se aí um interessante jogo em que ecoam vozes de um discurso da descoberta – das riquezas do solo – atravessadas por um discurso moral a que se pospõe o econômico. Nossas “virtudes são de ferro”: fortes, bem enraizadas ou nossa virtude é o ferro, material mineral, leitura que ecoa em “aptidões minerais”? O jogo continua agora através de uma reminiscência à terra e ao célebre poema do poeta brasileiro, também célebre, Carlos Drummond de Andrade: montanhas enferrujadas de Itabira. Enferrujadas porque são velhas ou porque são feitas de ferro, riqueza mineral? Mas o trecho que se segue não deixa dúvidas de que o que é conhecido (ou a ser conhecido/explorado) é o solo brasileiro: lençóis de petróleo, areias monazíticas. O discurso econômico, posto em posição adjetiva, ressignifica o discurso moral. Através dele é denunciado o tipo de “conhecimento” que se tem: das terras. A ironia, que aqui se nota pela adição do discurso econômico ao discurso moral, aliada a outras formas aí atuantes, desconstrói a fala estrangeira.
Considero oportuno uma breve análise da heterogeneidade não marcada neste parágrafo: a ironia, o discurso indireto livre e a alusão. A ironia, o discurso indireto livre e a alusão constituem, conforme Authier-Revuz (1998:143), formas de heterogeneidade não marcada[5]; são formas em que a representação de um discurso outro não se faz de maneira explícita. Diferentemente, por exemplo, do discurso direto ou da modalização autonímica, são formas “puramente interpretativas”[6], isto é, que dependem da compreensão do leitor. E, de todas as três, talvez seja a alusão o fenômeno mais fortemente relacional.
Um exemplo do texto: areias monazíticas. No período JK houve várias incursões de cientistas americanos recolhendo areias monazíticas do Espírito Santo para experiências nuclerares[7]. Estas experiências foram esquecidas uma vez que o material – a areia, no caso – não se mostrou mais interessante. Na crônica é possível se ler a alusão a tais experiências (em outras crônicas de Sabino bem como nas de Gullar, para dar dois exemplos, encontra-se material farto sobre a atuação dos americanos em solo brasileiro), mas a possibilidade de compreensão dependeu de algo que não se expressava no fio do discurso. Sem aspas, sem itálico, a palavra estava lá, correndo, como tantas outras, o risco, conforme Authier-Revuz (2000: 10), do fracasso da não-compreensão. O que interessa destacar é que, enquanto as formas marcadas operam na ilusão da demarcação entre o que é do um e o que é do outro, na alusão, as fronteiras aparentemente se apagam. Conforme Auhtier-Revuz (2000:13), nela “se acham colocados em jogo a distinção e a confusão entre um interior de palavras próprias e o exterior de palavras dos outros” ecoando desse exterior o interdiscurso. É preciso, no entanto, observar que neste caso a palavra se achava inserida num trecho de discurso indireto livre, outra forma que em que se fala com as palavras do outro acirrando a dissolução do um e do outro. E, por fim, temos a ironia atravessando e tensionando todo o dizer.
No que se refere à ironia, importa destacar que esta permite, entre outras coisas, se escape das normas de coerência que qualquer argumentação impõe. Nas crônicas há um amplo uso desse recurso; afinal, como já se mostrou, as crônicas constituem o espaço no discurso jornalístico em que sentidos são tensionados. No que concerne aqui assinalar, a ironia consiste em um recurso deveras usado como forma de desconstrução da fala estrangeira. Neste trecho, então, o que se observa é que o discurso da potencialidade do solo é seguido por um discurso que a ele se contrapõe, qual seja, da ação do homem sobre solo. Trata-se de um discurso também presente na história brasileira e do qual a construção de Brasília seria um dos marcos principais, e um marco de visibilidade. Melhor explicando, Brasília era um evento em se fazendo e em se significando. Em um dos sentidos, trabalhado na formação discursiva desenvolvimentista, a construção de Brasília funciona como a construção pelo brasileiro de sua própria história. Sentido que trabalha a ação do homem sobre o solo. Na crônica, esta construção, resulta em uma “grande aventura”; o que nos devolve ao período colonial: da descoberta e das aventuras pelo interior do Brasil. Ou seja, através da ironia, deslocam-se seus sentidos.
Apontou-se anteriormente para a desconstrução da fala do outro, os parágrafos que se seguem constituem um belo exemplo em que se joga com as palavras do outro, descontruindo-as:
Nada impede, contudo, que amanhã um jornal de Nova Iorque venha a noticiar, como a propósito de Ouro Preto em 1896: Nesse país montanhoso, nada há que se pareça com uma carruagem e até a própria locomoção em costas de burro é perigosa na única estrada que serpenteia por espaço de milhas e é a mais movimentada do globo.
Outra particularidade deste notável país é que a metade dos habitantes de sua capital continua vivendo nas rochas, ao longo das montanhas.
A velha capital já está sendo abandonada às feras que abundam nas florestas que a rodeiam ... (negrito meu)
Três parágrafos construídos a partir da citação do outro. Observem-se no quadro abaixo as marcas das alterações promovidas. A fim de facilitar a leitura, encontra-se em negrito o que se repete e sem negrito os lugares em que se promove a mudança:
Citação do Jornal de Nova Iorque |
Nova notícia: atribuída a um Jornal de Nova Iorque |
“Nessa cidade montanhosa nada há que se pareça com uma carruagem e até a própria locomoção em costas de burro é perigosa na única rua que serpenteia por espaço de milhas, e é a mais movimentada do globo.” |
“Nesse país montanhoso, nada há que se pareça com uma carruagem e até a própria locomoção em costas de burro é perigosa na única estrada que serpenteia por espaço de milhas e é a mais movimentada do globo.” |
“Outra particularidade notável nessa cidade é que a metade de seus habitantes tem vivido, nesses últimos anos, nas galerias abandonadas que, à procura do ouro, os mineiros rasgaram nas rochas ao longo das montanhas.” |
“Outra particularidade deste notável país é que a metade dos habitantes de sua capital continua vivendo nas rochas, ao longo das montanhas.” |
“A velha Cidade de Ouro Prêto, que vai ser abandonada às feras que abundam nas florestas que a rodeiam é notável (...)” |
“A velha capital já está sendo abandonada às feras que abundam nas florestas que a rodeiam...” |
A citação primeira se apresentava em um imenso parágrafo, na segunda, têm-se algumas de suas frases transformadas em três parágrafos de uma nova citação: destaca-se, pois, ainda mais o que se atribui ao outro. No primeiro parágrafo, altera-se uma palavra: de “cidade” para “país’. Alteração que, aliada a outra – da frase em parágrafo –, tem como efeito, por um lado, expor a fala estrangeira como absurda, como estranha: país com uma única estrada?, por exemplo. Em seguida, tem-se como segundo parágrafo o que aparecia como continuação da frase anterior. Aqui outros deslizes promovidos no enunciado anterior continuam a produzir o efeito do estranhamento. Muda-se a posição do adjetivo “notável” – não mais a particularidade é que é “notável”, mas o país (notável porque “digno de nota” ou porque “extraordinário”, por conseguinte, “fora do comum”?)–, altera-se o tempo verbal, de uma forma do pretérito (pretérito perfeito composto) para uma forma do presente (trazendo, pois, a notícia para um tempo atual) e, por fim, exclui-se alguns sintagmas destacando assim o local onde se “continua vivendo”: “nas rochas”. Todo um país vivendo nas rochas? Por fim, como último parágrafo, uma frase que, na primeira citação, antecedia às outras. Ordem modificada, tempo verbal alterado – de futuro para tempo presente – vale destacar que este termina em reticências. Reticências que abrem para outras possibilidades de acréscimo, para outros sentidos? Ou reticências que fecham sentidos outros na medida em que funcionam como forma de evidenciar o absurdo do discurso do outro: um discurso que não precisa ter sua continuidade exposta e finda já que é presumível tudo o que poderá ser dito. Constrói-se assim um “todos sabem o que ele vai continuar dizendo”.
Se, por um lado, a fala estrangeira é trabalhada como absurda, é “estranhada”, cabe notar que, por outro lado, através dela se expõe a posição que o outro colocaria o país: do atraso. Atraso que significa subdesenvolvimento do país. E com isso se desconstrói uma certa formação discursiva sobre o país ao ser colocada como fala estrangeira. Em outras palavras, o estrangeiro aí funciona como estratégia para a desconstrução de um certo discurso sobre o país, qual seja, o da formação discursiva desenvolvimentista em que desenvolvimento é sinônimo de construção e subdesenvolvimento é entendido como inferioridade em relação ao estrangeiro. Em suma, o discurso do outro aparece sob a forma de citação, como corpo isolado. Atribui-se, pois, ao outro um dizer tendo como modelo a citação entre aspas e com isso joga-se com uma forma de heterogeneidade comum em jornal – citar outros jornais –, forma essa que opera na ilusão da literalidade, na ilusão de que citar é dizer o que o outro disse sem contudo alterar o sentido de suas palavras, esquecendo-se de que o sentido das palavras “se constitui em cada formação discursiva” (Pêcheux, 1988).
Nesta crônica, com a citação de outros jornais, mantém-se a distância não para proteger o discurso do outro, por exemplo, mas para evidenciá-lo como estranho. Seu sentido é não ter sentido, é o nonsense. Diz-se o que o outro disse, ao se recuperar a citação do jornal e demonstra-o como fala estranha, e aqui, nesta crônica em destaque, diz-se, em seguida, o que ele poderia vir a dizer, desconstruindo-se com tal gesto seu dizer. Retoma-se suas seqüências discursivas e ressignifica-as através de diversas estratégias e, entre elas, como vimos, a ironia. Com a citação, fala-se, pois, das palavras do outro fazendo dessas palavras um discurso outro e recuperando através delas um certo discurso sobre Brasil. Esse é jogo da desconstrução.
Algumas considerações
A análise discursiva das crônicas permitiu observar que a identificação do estrangeiro (se com nome próprio ou não), as formas como se predica (se trabalhadas no que tange à visibilidade ao que se atribui ao outro) e o que se predica estão inter-relacionadas configurando três formações discursivas: da descoberta, do desconhecimento e do estranhamento. Estas se marcam por relações entre posições discursivas do estrangeiro e do brasileiro. Há posições discursivas dominantes em cada uma delas, há posições que incidem em mais de uma formação e também há posições específicas, isto é, que não comparecem em outras formações discursivas. Observou-se também que as formações discursivas analisadas são redesenhadas em função da visibilidade ou não das suas posições discursivas.
O estrangeiro habita, pois, o imaginário do brasileiro de diferentes posições discursivas e se relaciona com diferentes posições discursivas do brasileiro. Aquele comparece elogiando e ensinando, criticando e dizendo equivocamente. Este, ouvindo, se envergonhando, confrontando e desconstruindo a fala posta no lugar do outro.
Quanto à visibilidade, esta também permitiu observações importantes. Se há visibilidade para a posição discursiva estrangeira, há também para a posição discursiva do brasileiro, seja para responder ao estrangeiro, instaurando um conflito, seja para expô-lo como uma pretenciosa e equivocada suposição de nos conhecer, saber. Traz-se a crítica pondo-a em evidência e põe-se em evidência o confronto. Exibe-se também o estrangeiro-estranho.
É esse o embate nas crônicas jornalísticas cariocas entre vozes estrangeiras e brasileiras para dizer do identitário brasileiro, ou melhor, entre as vozes brasileiras e as estrangeiras capturadas, atravessadas no discurso do brasileiro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Authier_Revuz, J. “Quelques reactions suscite la question qui parle? Dans le cadre d’un contrôle, chez une linguiste travaillant dans le champ de l’énonciation?” Intervenção na mesa-redonda: Grammaire du contrôle: qui parle? ou Colloque Le psychanalyste et la pratique du contrôle, 1997.
––––––. “Hétérogénéité montrée et heterogeneite constitutive: elements pour une aprroche de l’autre dans le discours”. Paris: DRLAV, n° 26, 1982.
––––––. “Remarques sur la categorie de l’ilôt textuel”. Cahiers du français contemporain, Hétérogénéité en discours, n° 3, juin. Paris, 1996.
Maingueneau, D. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes e Unicamp, 1989.
Medeiros,V. Dizer a si através do outro: do heterogêneo no identitário brasileiro. Tese de doutorado, UFF, 2003.
Orlandi, E. A linguagem e seu funcionamento. São Paulo: Pontes, 1987.
––––––. Discurso e leitura. Campinas: Cortez, 1988.
––––––. Discurso e texto. São Paulo: Pontes, 2001.
Pêcheux, M. Semântica e discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: UNICAMP, 1988.
Vainfas, R. Dicionário do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
[1] Os marinheiros também usavam, no século XVI, os nomes de “Terra dos Papagaios”, “Terra do Brasil” e “Terre du Brésil”; este último caso ocorria entre marujos franceses (Vainfas, 2000:81).
[2] É preciso salientar que não estou tratando de uma memória indígena. Os nomes Vera Cruz, Terra de Santa Cruz e Brasil aqui citados já são indicadores da fala estrangeira.
[3] Em Medeiros (2003) há uma análise detalhada desta crônica. Aqui ela comparece apenas à guisa de ilustração da desconstrução da discurso outro.
[4] Uma observação: no JB, bem como em alguns outros jornais à época, havia uma coluna em que se publicava o que havia sido publicado em outros jornais do Brasil e do exterior.
[5]. Uma observação: a ironia pode vir marcada (pelas aspas) e ainda assim depender do leitor sua apreensão.
[6]. A noção de interpretação em Authier-Revuz deve ser entendida em relação ao trabalho de recepção do leitor. Coloca-se, portanto, em um campo lingüístico-pragmático.
[7]. Fruto de conversa com o professor e economista Paulo Nakatani, da UFES.