o
discurso da alteridade
através da
técnica do
discurso
indireto livre
em
Vidas
secas
Evanete Barboza de
Lima (UERJ)
O
outro
A
relação
com o
Outro é a
base de uma co-presença ética.
Cada
um é
constantemente confrontado
com
um
próximo.
Não sou
Eu
frente ao
Próximo (Outro),
mas
sim os
Outros continuamente
frente a
Mim. (Christiam Descamps)
Legitimação da escolha do espaço discursivo
Este trabalho é resultado da proposta apresentada na disciplina Literatura Brasileira IV, oferecida como obrigatória da grade curricular do curso Port/Esp e respectivas literaturas da Universidade Estadual do Rio de janeiro (UERJ – 2005/2), cuja perspectiva didático-pedagógica se inseriu no âmbito do desenvolvimento de duas competências do aluno: leitora e escrita. Para tanto, selecionou-se como corpus obras de Machado de Assis, Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Graciliano Ramos, constituindo-se este último como nosso campo discursivo de análise.
Durante o curso, fizeram-se leituras e produções textuais e conforme as dificuldades apresentadas em relação a essa produção – coesão, coerência, interpretação, etc – foram feitas re-escritas, trabalhando-se o que fora sinalizado pelo professor.
A questão do foco narrativo, e a ênfase dada a uma forma híbrida de discurso (Discurso Indireto Livre), foi um dos temas abordados. Para tratar com os diferentes focos, que apontam para os modos distintos de ler o mundo, fez-se necessário um recorte, ou seja, extrair do campo discursivo da escritura de Ramos, um espaço discursivo (subconjunto) que desse conta dessa tipologia discursiva, o DIL.
Esperamos que o exposto legitime nossa escolha por Vidas secas, romance do qual extraímos um recorte, que consideramos adequado e suficiente para a consecução dos objetivos da proposta acima citada.
Concepções
sobre alteridade
O
sujeito
Moderno construiu
para
si o
império da
razão
em
detrimento dos
valores do
Romantismo. A humanidade, guardadora de uma complexidade
milenar, se
vê
diante de
um
sistema neocapitalista,
cujos mecanismos re-inauguram o sofrimento das
grandes
maiorias de excluídos.
Para
este
sistema, o
outro (alter) é
totalmente destituído de
vida e reduzido a
um
número, a uma
estatística, a
um
elemento de
consumo, é coisificado (ou reificado -
ser uma "coisa" se
torna uma
característica
típica da
realidade
objetiva no
processo de
alienação).
Não tem
configuração
humana, uma
vez
que é objetivado
para
fins de lucratividade, produtividade,
uso, etc. Vidas
secas
retrata
muito
bem essa
reificação: O
livro relata
fielmente a
realidade brasileira, destacando a
idéia de opressão-submissão
pela
qual se
torna
evidente o
massacre do
caráter
humano,
onde a
injustiça
social, a
miséria, a
fome, a desigualdade e a
seca “animalizaram” o
ser
humano tornando-o
um
herói
em
condições sub-humanas de
sobrevivência. Na
verdade, o
que se pretende é
mostrar
que o
meio
social
em
que os
personagens estão inseridos é
tão
absurdo
que os faz perder a
quase
totalidade do
caráter
humano – “Os
meninos eram uns
brutos,
como o
pai.
Quando crescessem, guardariam as reses de
um
patrão
invisível, seriam pisados, maltratados,
machucados
por
um
soldado
amarelo” (1986: .38).
Há,
todavia, uma
palavra na
qual (e
talvez) se tenha colocado a
esperança de uma conscientização dessa
humanidade
alienada: “alteridade”,
que
nos faz
adotar a
perspectiva do
olhar dos excluídos. Seria,
portanto, a
alteridade a
capacidade de
conviver
com o
diferente, de se
proporcionar
um
olhar
interior a
partir das
diferenças. Significa
que
eu reconheço o
outro
em
mim
mesmo. Vem somar-se a essa uma
outra
palavra
não
menos
importante,
pois se completam: “identidade”,
que numa
perspectiva
contemporânea é formada a
partir das
diferenças. Na
relação de
alteridade, percebe-se uma
presença dos
fenômenos da complementaridade e da
interdependência, no
modo de
pensar, de
sentir e de
agir. A
partir da
obra
literária
selecionada como campo discursivo, buscamos
mostrar
aquilo
que vem ou não confrontar-se
com o
exposto, seja
para
negar
ou
legitimar o
discurso da
identidade/alteridade.
A
natureza
heterogênea de
Vidas
secas
Conforme a
pesquisa de Elizabeth Saldivar, a
partir das primeiras
décadas do
século XX, os
estudos dos
fenômenos
literários passou a
dar
ênfase à
organização do
texto
literário na
sua imanência, levando
em
conta
sua
coerência
interna e
não
mais os
referentes
fora do
texto. No entanto, essa autora
nos remete à
questão da heterogeneidade discursiva,
conforme os
conceitos de dialogismo de Bakhtin.
Considerando
que a
Análise do
Discurso
não
trabalha
em
termos
quantitativos e
sim realizando recortes,
depois dos
resultados de
seu
trabalho, a autora
pensa
que essa AD pode constituir-se numa
outra
forma de
aproximação do
literário, num
outro
olhar
sobre a
literatura,
pois
investigar e
tornar
explícitos os
outros
discursos
presentes no
texto
literário, e
não
apenas
aqueles relacionados
com a
literatura, é
um
desafio
cujos
resultados permitirão uma
maior
exposição do
leitor à
opacidade do
texto.
Segundo a
opinião da autora,
com a
noção de heterogeneidade discursiva, a AD
não
só
abandona a
idéia de
um
discurso
homogêneo
como
também desestabiliza os
conceitos de
unidade do
sujeito e
unidade do
texto dos
estudos tradicionais da
linguagem.
Como o
sujeito e o
discurso
já
são
heterogêneos na
sua
constituição, a
ilusão de
unidade
tanto no
sujeito [considerado
como
sujeito cindido]
quanto no
texto
não passam de
efeitos ideológicos.
Aplicando os
conceitos dessa autora à
análise do
texto
literário, compreendemos
que há
um outro
discurso
presente no
discurso
literário de Graciliano
Ramos e
que condiciona a
configuração de
seu
romance
Vidas secas – a
denúncia
social.
Em
sua
atividade discursiva, Graciliano une o
dito e o
não
dito.
Essa
denúncia é
feita mostrando Fabiano e
família, rechaçados
pelo
clima e explorados
pelos
donos de
terra, condenados a
vagar
eternamente à
margem de
um
sistema
socioeconômico
que
não
lhes garante
direito
algum. O
extremo da
privação dos
direitos se evidencia na
ausência de
nomes
para os
filhos do
casal
que
são chamados
simplesmente de “menino
mais
velho” e “menino
mais
novo”.
Isso
viola o
Princípio 3º da
Declaração
Universal dos
Direitos da
Criança: ‘A
criança tem
direito a
um
nome e a uma
nacionalidade.’ O
autor põe
em
questão a
identidade daquelas
crianças e o
leitor pode
associar a
questão da
miséria ao anonimato.
Aliás,
tudo no
romance está condicionado à
questão da
miséria,
até a
realização do
mais
simples desejo: ter uma cama (1986: 40).
Foco narrativo e
tipo de
discurso
A
obra de Graciliano
Ramos –
Vidas
Secas –
trabalha
com o
foco narrativo
em 3ª
pessoa.
Assim, pode-se
observar
inicialmente certa
aproximação dos
fatos narrados
com a
experiência
própria de
um narrador
que descreve a ação
como fato ocorrido num
certo passado. Graciliano traça
mais
que
um
retrato simplista do
Nordeste,
mais
que uma
óbvia
denúncia
social. O
romancista desenvolve
um
quadro do
estado
psicológico de
seres
que vivenciam
experiências
por
demais assoladoras. O narrador atua
como se fosse uma
espécie de “observador” que,
após
ter sido “testemunha” dos
fatos ocorridos, descreve-os de
maneira a
contar a história desejada. É
um narrador
típico da modernidade,
que se
quer
fazer
impessoal e
objetivo
diante do fato narrado,
para
que possa se
ocultar no
meio da
narrativa,
sem perder a
onisciência dos
fatos, deixando
sobressair
somente as
vivências descritas de suas
personagens.
Graças a essa
onisciência, ele pode
revelar a
raiva, o
medo, os
sonhos e recalques de Fabiano e
família. Essas
palavras trazem as
idéias
que foram tratadas
por Carlos C. Minchillo,
em
entrevista à
Folha de
São Paulo (02/Jan/97). Ao
falar
sobre “O
lado
mais
trágico do
nordeste
em
dois
livros” –
Vidas
secas e
Morte e
vida Severina, de João Cabral de Melo
Neto (1956) – o
professor entrevistado afirmou
que ao
narrar o
universo
sensível de
suas
personagens, o
autor faz
aquilo
que a
realidade
não faz:
trata os
retirantes
como
seres
que pensam e sentem.
Ainda
em “Ramos
conta o
outro
lado da
seca”, Minchillo diz
que a
genialidade de Graciliano está
em
revelar o
quanto há
ainda de
vibração
humana e complexidade
psicológica
em
seres
que parecem
estar reduzidos à
luta
pela
sobrevivência.
Até
mesmo a
cachorra
Baleia,
que vai minguando
pela
fome e é sacrificada, tem os
seus
sentimentos. O narrador
em
terceira
pessoa desvenda os
pensamentos do
animal, fazendo
um
alegre
contraponto ao
grupo
sombrio
que
ela acompanhava (02/out/97).
Os fragmentos seguintes
que destacamos, confirmam as
palavras de Minchillo:
Baleia (...) aprovou
com
um
sentimento de
cauda
aquele
fenômeno e desejou
expressar a
sua
admiração à
dona. Chegou-se a
ela
em
saltos
curtos, ofegando, ergueu-se nas
pernas
traseiras, imitando
gente.
Mas sinha
Vitória
não queria
saber de
elogios.
— Arreda!
Deu
um
pontapé na
cachorra,
que se afastou humilhada e
com
sentimentos
revolucionários (1986: 39)
"O
romancista se instala
com o
ponto de
vista narrativo
ora do
lado de
fora de
suas
figuras,
ora na
cabeça de uma
ou de
outra" (Bueno,02/07/97).
Mas,
em
seu
romance, o
sentido
que
ele dá a essa variação é
diferente e tem
um
ritmo
também
diferente. A
voz do narrador oscila
muito rapidamente, várias
vezes num
mesmo
parágrafo, falando de
fora e de
dentro das
personagens:
— Fabiano,
você é
um
homem, exclamou
em
voz
alta.
Conteve-se, notou
que os
meninos estavam
perto,
com
certeza iam admirar-se ouvindo-o
falar
só. E, pensando
bem,
ele
não
era
homem:
era
apenas
um
cabra
ocupado
em
guardar
coisas dos
outros. (...) encolhia-se na
presença dos
brancos e julgava-se
cabra.
Olhou
em
torno,
com
receio de
que,
fora os
meninos,
alguém tivesse percebido a
frase
imprudente. Corrigiu-a, murmurando.
—
Você é
um
bicho Fabiano.
Isso
para
ele
era
motivo de
orgulho.
Sim
senhor,
um
bicho,
capaz de
vencer
dificuldades.
(...)
—
Um
bicho, Fabiano.
Era. Apossara-se da
casa
porque
não
tinha
onde
cair
morto... (1986: 18).
O tradutor Luis Bueno, falando
sobre o
autor Rui
Mourão –
que fizera
análise de
Vidas
secas –
também
em
entrevista à
Folha de
São Paulo, declarou as
palavras do
próprio
Mourão: “com
esse
contraste
sutil,
mas
constante, a
banalidade da
visão de
mundo dessas
figuras acaba saltando à
vista do
leitor, e a
visão
crítica do narrador se coloca
sem a
necessidade de
julgar explicitamente
suas
criaturas. A
escolha desse
registro
ajuda a
instaurar a
superposição –
quase
confusão – dos
planos do narrador e das
personagens” (Bueno, 1997).
Ainda apropriando-se da
fala de
Mourão, Bueno declara
em
sua
entrevista
que uma
outra
decorrência dessa
superposição de
planos é o
tipo
peculiar de
introspecção
psicológica
que o
romance apresenta. As
camadas
interiores das
personagens
são formadas
por uma
espécie de
introjeção dos
valores
sociais. A
explicação de
seus
anseios e
suas
frustrações –
não importando se as
explicações vêm delas mesmas
ou do narrador –
deriva
sempre dos papéis
sociais
que
elas representam
ou querem
representar.
Embora possa
parecer
paradoxal, trata-se de uma
introspecção de
superfície, no
sentido de uma
identificação
entre o
íntimo e o
comportamento
externo (Bueno, 1997).
A
grande
questão é:
até
que
ponto
vidas
secas destoa da estruturação do narrador -
um “eu”
que
fala? A
obra
além de
apresentar
foco narrativo
em
terceira
pessoa é
tecida a
partir do
discurso
indireto livre (DIL), no
qual se tem a
fusão do "eu" da
personagem e do narrador. Graciliano dá
voz a Fabiano
para
criar o "eu",
pois o narrador
em 3ª
pessoa é
um narrador
onisciente,
que
mostra
todos os
pontos de
vista, é a 1ª
pessoa disfarçada
que entra na
cabeça das
pessoas.
Sim
senhor, arrumara-se. Chegara naquele
estado,
com a
família morrendo de
fome, comendo raízes. Caíra no
fim do
pátio,
debaixo de
um
juazeiro,
depois
tomara
conta da
casa
deserta.
Ele, a
mulher e os
filhos tinham-se habituado à
camarinha
escura, pareciam
ratos - e a
lembrança dos sofrimentos
passados esmorecera (1986:17).
Segundo os
comentários de Fábio Freixeiro
em “O
estilo
indireto
livre
em Graciliano
Ramos”,
tudo se
passa no
pensamento de Fabiano que, inicialmente, é
um
pensamento
vivo,
quase
dialogal,
pois "sim
senhor" é
forma de
tratamento, supondo uma
pessoa
que
fala e
outra a
quem se
fala.
Isso, diz o
crítico, explica-se psicologicamente: na
humildade da
personagem, na
sua inferioridade
social, na
sua
vida
seca e
árida
como a
natureza circundante, há
um velado
anseio,
tímido e
cabisbaixo, de
mostrar a
outrem o
quanto pôde, o
quanto
vale, o
quanto lutou e
como venceu. É o
pensamento
que está falando
palavras
que a
boca
não ousa
dizer a
um
hostil,
onde
não encontraria o
eco desejado. É o
drama da
incompreensão e do
desajuste.
Ainda tomando
como
exemplo Freixeiro,
este,
para
mostrar o
dinamismo na
construção da
narrativa
em
Vidas Secas, traz
para o
seu
texto uma
passagem
gradual do
estilo
indireto ao
estilo
indireto
livre:
(‘Conteve-se, notou
que os
meninos estavam
perto,’)
com
certeza iam admirar-se ouvindo-o
falar
só. E, pensando
bem,
ele
não
era
homem:
era
apenas
um
cabra
ocupado
em
guardar
coisas dos
outros.
Vermelho, queimado,
tinha os
olhos azuis, a
barba e os
cabelos
ruivos,
mas
como vivia
em
terra
alheia, cuidava dos
animais
alheios, descobria-se, encolhia-se na
presença dos
brancos e julgava-se
cabra.’(1986: 18)
Freixeiro
reforça
seu
argumento, dizendo
que o ‘com
certeza iam admirar-se’
não se prende a “notou”, tratando-se de uma
passagem
brusca
para o
estilo
indireto
livre, a
servir,
aqui
como
em muitas outras
passagens, à
expressão do
pensamento
difuso e subitâneo de Fabiano.
O
autor continua dizendo
que o
uso
sistemático da 3ª
pessoa, representa a
anulação do "eu"
diante do
meio
hostil.
Assim, o
que existe é
apenas uma
relativa
auto-afirmação
com o
uso do
nome
próprio,
em
lugar do
pronome.
Pela
primeira
vez, nesta
análise, o
estilo
indireto
livre serve
não
mais ao
pensamento, ao
estado
mental da
personagem,
linguagem de
seu
cérebro
rudimentar,
mas à
expressão
sensível da
sua
própria
linguagem.
Segundo Dominique Maingueneau, há no
discurso
indireto
livre uma
mistura
tão
perfeita de
vozes (narrador e
personagem)
que
não se pode
dizer
que
palavras pertencem a
quem:
O DIL é o
tipo
mais
clássico de hibridismo,
já repertoriado há
muito
tempo pelas
gramáticas. Cabe-lhe
combinar os
recursos do DD e do DI.
Diferentemente nas
ilhas enunciativas
ou do
discurso
direto
com ‘que’,
ele
não tem
marcas próprias e,
fora do
contexto,
não pode
ser identificado
como
tal. A
polifonia do DIL
não é a de duas
vozes
claramente distintas (DD),
nem a
absorção de uma
voz
pela
outra (DI),
mas uma
mistura
perfeita de duas
vozes:
em
um
fragmento no DIL,
não se pode
dizer
exatamente
que
palavras pertencem ao enunciador citado e
que
palavras pertencem ao enunciador citante (Maingueneau, 2004: 153)
É
exatamente
isso
que acontece
em
Vidas
secas: a
voz do narrador se
mescla
com a
voz das
personagens:
[Fabiano]
Agora queria entender-se
com sinhá
Vitória a
respeito da
educação dos
pequenos.
Certamente
ela
não
era culpada. (...) E
eles estavam perguntadores,
insuportáveis. Fabiano dava-se
bem
com a
ignorância.
Tinha o
direito de
saber?
Tinha?
Não
tinha.
— Está
aí.
Se aprendesse
qualquer
coisa, necessitaria
aprender
mais, e
nunca ficaria
satisfeito (1986: 21).
Vidas
secas está permeado do
discurso
indireto
livre,
presente
tanto no
diálogo
aberto
quanto no
monólogo
mental,
para
que o narrador faça
ouvir os
pensamentos das personagens. A partir daqui, vamos delimitar nosso tema ao capítulo IV do romance, intitulado “sinha Vitória”. O fragmento a seguir, extraído de dito capítulo, deixa pistas de que o narrador entrou na cabeça dessa personagem:
Pensou de
novo na
cama de
varas e
mentalmente xingou Fabiano, [...] Agora pensava no bebedouro, [...] Nesse
ponto as
idéias de sinha
Vitória seguiram
outro
caminho,
que
pouco
depois foi
desembocar no primeiro (1986: 40, 43, 45).
Ele
adivinha o
que sinha
Vitória
nem
chega a
falar: “Deteve-se. Ia
dizer
que
eles estavam
sujos
como
papagaios.” (1986: 44).
Na estruturação do romance, estão
presentes duas ordens:
1) A
ordem da
enunciação: heterogeneidade marcada,
visível na
materialidade lingüística do texto. São marcas de uma atividade que controla e regula as palavras do outro, mostradas de forma explícita, sem que se interrompa o fio discursivo,
como,
por exemplo, as aspas: — “Hum! Hum!” (1986:40).
2) A
ordem do
discurso: heterogeneidade não- marcada,
sem
visibilidade,
como o
discurso
indireto livre .
A heterogeneidade marcada
mostra o
distanciamento do narrador,
entretanto,
este
mais se aproxima do
que se afasta nessa
narrativa,
ou seja, ao mesmo tempo em que o narrador desaparece
ou se oculta
para
dar
lugar ao
discurso do
outro, ao
discurso da
alteridade (sinha
Vitória e Fabiano),
ele retoma a
fala
imediatamente.
Como
um dos
temas desse romance aponta
para a
questão da
dificuldade de
comunicação
entre os
membros dessa
família, que apresentam problemas
até
mesmo
para dizerem o
que pensam, o narrador parece
servir de auxiliador a
cada
personagem, colhendo-lhes a
fala
interior e o
pensamento
fragmentário
através da
técnica do
discurso
indireto
livre, no qual a
fala desse narrador se
mescla
com o
pensamento da
personagem.
A
ocorrência de
marcas heterogêneas é
muito
pouca nesse
capítulo,
enquanto a
diluição do narrador no
discurso é
em
maior
escala.
Assim, nesse
seu envolvimento
com a
narrativa, o narrador se auto-compromete, participando
ativamente do
processo de
enunciação. No fragmento “A referência aos sapatos abrira-lhe uma ferida — e a viagem reaparecera” (1986: 43) os travessões antecedem a
fala do
próprio narrador e
em
outros
momentos
não se pode
identificar se a
fala é deste
ou de sinha Vitória:
Fez várias tentativas, inutilmente [...] ergueu-se desapontada. Besteira, aquilo não valia. [...] bebeu um caneco de água. Água salobra. —Iche! [...] Em seguida provou o caldo. Insosso, nem parecia bóia de cristão [...] Cansada, meio morta de fome, carregava o filho mais novo, o baú e a gaiola do papagaio. Fabiano era ruim. — Mal agradecido (1986: 42, 43).
Essas
diferentes
vozes caracterizam a heterogeneidade enunciativa desse
grupo de
enunciados,
são
vozes
que atravessam o
discurso
literário, caracterizando essa heterogeneidade
como uma
forma de negociação do
sujeito
com o
seu
dizer.
A
posição
que o narrador assume representa a
solução,
em
si
mesma,
para a
composição dessa
obra regionalista. Em relação a sua magnitude, a grande dificuldade seria
conceber
um narrador
com
caracteres semi-analfabetos
para contar uma história sofisticada. Se mantivesse a
fidelidade ao
universo
sertanejo,
inclusive a
sua
estrutura de
pensamento, a
obra perderia a literariedade; se mantivesse a literariedade, perderia a
fidelidade.
Vidas
Secas soluciona
esse
problema ao
apresentar
um narrador
onisciente que garante a
estética da
obra
com uma
visão
crítica e
histórica dos
fatos apresentados, um narrador que se utiliza de
um
discurso
indireto livre, garantindo
fidelidade ao
universo narrado.
referências bibliográficas
Authier, Revuz J. Heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva:
elementos
para uma
abordagem do
outro no
discurso (1982). Apud Saldivar Gloria Elizabeth. A
natureza
heterogênea do
discurso. 10/05/2004.
Bueno, Luis. A
estrutura
imperfeita do tempo. A
Folha de
São Paulo, S. Paulo, 20/jul/97,
Seção:
Livros,
Editoria:
Mais!
Página: 5-11.
FREIXEIRO, Fábio. O
estilo
indireto
livre
em Graciliano Ramos. In: Brayner, Sonia (org.), s/d.
Goldim, José Roberto. Alteridade.
Disponível
em www.bioetica.ufrgs.br. Acesso
em 11/09/2005.
maingueneau, Dominique.
Análise de
textos de
comunicação. 3.ed.
Tradução de Cecília P. de Souza-e-Silva e Décio
Rocha.
São Paulo: Cortez, 2004: 153.
Minchillo, Carlos Cortez. O
lado
mais
trágico do
nordeste
em
dois livros. A
Folha de
São Paulo, S. Paulo, 02/Out/97,
Seção: Resumindo,
Editoria: Fovest
Especial, p.7.
ramos, Graciliano.
Vidas
secas. 58ª ed.
Rio de
Janeiro: Record, 1986.