REFERENCIAÇÃO E NOMINALIZAÇÃO
A CRIAÇÃO DE OBJETOS-DE-DISCURSOS
Arlene de Araujo Saib (UFES)
INTRODUÇÃO
Em todas as esferas das relações humanas a linguagem se impõe como mecanismo de aprimoramento da sociedade; nela e por ela o homem se constitui como articulador da comunicação, em que tudo ao redor pode ser lido e decodificável não só pela estrutura do código da língua, mas também pela capacidade associativa e inferencial dos interlocutores em situações reais de uso.
Desse modo, tudo se converte em enunciados, de tal maneira que a dimensão lingüística foge à concepção de língua como sistema de “etiquetas” e incorpora uma discursivização que põe em foco a criação do objeto-de-discurso como atividade discursiva mediada pela intersubjetividade dos interactantes.
Por esse perfil interativo, os objetos de mundo deixam de ser a representação palavra-coisa e incorporam – na criação dos objetos-de-discurso – um componente dialógico que circundam os enunciados, já que na concepção do teórico Mikhail Bakhtin, “ [...] a palavra revela-se, no momento da sua expressão, como produto da interação viva das forças sociais [...]” (Bakhtin, 1986: 66).
A partir dessas considerações preliminares, cumpre salientar que, neste trabalho, a atividade processual de recategorização dar-se-á pelo viés da nominalização no quadro teórico da referenciação como atividade discursiva mediada pela intersubjetividade dos interactantes, cujas escolhas lexicais orientam-se pela dinâmica pragmático-cognitiva, com incursões pelas condições de produção e recepção.
Por este ângulo, o exame da materialidade lingüística na superfície textual pretende explicitar os mecanismos que envolvem a tríade linguagem-mundo-pensamento sob a égide da referenciação como elemento dinamizador da organização textual e progressão referencial, num contexto de praticas discursivo-argumentativas de dimensão interativa.
Nesse sentido, cumpre ressaltar que as escolhas lexicais e as construções nominais encontram eco na experiência dos interlocutores, os quais produzem uma “resposta” discursiva elaborada numa instância sócio-histórica, cujos desdobramentos aliam-se ao conhecimento de mundo.
Assim, como ferramenta argumental, a nominalização – entendida como desdobramento discursivo – traz consigo um aparato funcional que coloca a fluidez discursiva nos trilhos de uma ação intermediada pelos sujeitos discursivos.
Nesse sentido, esta abordagem pretende situar a nominalização / referenciação como índice de construção do “objeto-de-discurso”, defendendo uma lingüística textual de cunho sociointeracional, a partir de uma postura do sujeito no contexto.
Para fundamentar esta pesquisa o corpus em que se assenta este estudo é constituído por noticias/artigos veiculados no jornal A Gazeta (Vitória-ES), colhidos no período de maio de 2003; portanto, toma a nominalização em usos reais como atividade discursiva, cuja presença nos gêneros redacionais implica um processo de interação entre “[...] sujeitos sócio-historicamente situados, e não mais a língua, isolada do contexto em que é produzida, concebida como um sistema de regras estáveis” (Cunha, 2003), sobre as quais atuam a concepção bakhtiniana de gêneros como tipos relativamente estáveis de enunciados.
REFERENCIAL TEÓRICO
Muito se tem discutido a respeito da noção equivocada de referência como correspondência lexical precisa. Essa concepção de literalidade parece inconsistente quando se toma por principio que não há, a priori, uma relação espelhada entre as palavras e as coisas, posto que a atividade discursiva se (re)constrói pela interação, num jogo de intersubjetividade que desloca o eixo da referência para a referenciação como ativadora da criação de objetos-de-discurso, tal como propõe Mondada (2001):
Ela (a referenciação) não privilegia a relação entre as palavras e as coisas, mas a relação intersubjetiva e social no seio da qual as versões do mundo (grifo nosso) são publicamente elaboradas, avaliadas em termos de adequação às finalidades práticas e às ações em curso dos enunciadores. (Mondada, 2001, apud Kock, 2004: 61)
Assim, na perspectiva dos enunciadores, infere-se que há uma dimensão social que permite a emergência de sentidos por meio da “experiência perceptiva” e do conhecimento de mundo, já que a referenciação não diz respeito a “[...] uma relação de representação das coisas ou estados de coisas, mas a uma relação entre o texto e a parte não-lingüística da pratica em que ele é produzido e interpretado” (MONDADA & DUBOIS, 2003: 20)
Assim, considerando que, na visão de Apothéloz & Reichler-Béguelin (1995) ,
[...] os chamados “objetos-de-discurso” não preexistem “naturalmente” à atividade cognitiva e interativa dos sujeitos falantes, mas devem ser concebidos como produtos – fundamentalmente – desta atividade.(Apothéloz & Reichler-Béguelin, apud Koch, 2004: 60)
não há, portanto, como excluir da discursivização ou da textualização a manipulação sociocognitiva da referência, pois na esteira da trilogia linguagem-pensamento-mundo importa examinar os processos argumentativos pela instância interativa, cujo desempenho se articula pelo viés da percepção ante a construção lingüística, criando os objetos–de-discursos como “versões do mundo”, em que a referenciação - enquanto atividade discursiva - “[...] opera como uma memória compartilhada”, publicamente alimentada pelo próprio discurso [...]” (Apothéloz & Reichler-Béguelin,1999, apud Kock, 2004: 61), cuja relevância na dinâmica referencial eleva o status do texto ao expoente de um realidade em processo.
Por essa perspectiva processual, não faz sentido desvendar “os segredos do texto” pelo monitoramento do referente estático – entidade lingüística dual, significado-significante, destituída da parcela sócio-cognitiva -, mas sim pela investigação da dinâmica discursiva balizada pela instabilidade das relações entre as palavras e as coisas, pois a existência de uma realidade mutável impede que a relação linguagem-mundo-pensamento transforme a língua em um “conjunto de etiquetas” prontas, acabadas e disponíveis, ou seja, longe de ser uma atividade mecânica produzida por um léxico sistematizado, ela se afirma como um canal de interação.
A partir dessas considerações preliminares, cumpre dessacralizar a visão de referência como uma representação espelhada precisa do signo lingüístico saussuriano como representação mental estável e investir na perspectiva da construção textual respaldada na idéia de articulação dialógica, sócio e historicamente marcada.
Em consonância com essa postura, a referenciação emerge como uma prática discursiva pactuada que desloca o ente lingüístico do foco léxico-referencial para o pragmático-cognitivo, ou seja, o ato de referir se (re) constrói discursivamente na interlocução, em que a língua não se comporta como uma atividade padronizada pelos “objetos-do-mundo”, mas sim como uma “(re)construção do próprio real” numa estratégia de ativação de referentes, no qual as nominalizações se configuram como rotulações (Francis, 2003: 191)
Para Koch (2004), a nominalização – definida por Apothéloz & Reichler-Béguelin (1995) como
[...] uma operação discursiva que consiste em referir, por meio de um sintagma nominal, um processo ou estado significado por uma proposição que, anteriormente, não tinha estatuto de entidade (Apothéloz & Reichler-Béguelin, 1995, apud Kock, 2004: 66)
deve ser tratada como uma introdução ancorada, segundo modelo definido por Prince (1981).
Isso posto, tais expedientes encontram ressonância nesta pesquisa, pois de acordo com Francis os rótulos configuram um tipo de coesão presente em discursos argumentativos, podendo ser de dois tipos: rótulos prospectivos e rótulos retrospectivos, imprimindo uma dinâmica discursiva ancorada que extrapola o signo lingüístico, e sendo mais que uma etiqueta, constitui-se uma ferramenta argumentativa e interativa.
A REFERENCIAÇÃO
NOMINALIZAÇÃO NOS GÊNEROS REDACIONAIS
UMA ESTRATÉGIA ARGUMENTATIVA
A noção de “nome” perpassa a história da humanidade e precede as representações escritas; de forma que para os antigos hebreus “o poder de nomear significava (...) dar às coisas a sua verdadeira dimensão ou reconhecê-la” (Bosi, 1983, apud Ferreira, 2003: 131) e no modelo estruturalista saussuriano a dualidade palavra-coisa parece encerrar um conceito de verdade absoluto.
Contudo, com o desenvolvimento da Lingüística Textual a relação nome-coisa deixou de ser um paradigma estático, ou seja, mais que uma simples “etiqueta”, converteu o texto em “[...] uma seqüência hierarquicamente organizada de atividades realizadas pelos interlocutores” (Motsch & Pasch, 1987, apud Koch, 2004: 17), cuja organização interna acrescenta às expressões nominais uma autonomia discursivo-subjetiva para criar o “objeto-de-discurso”, extrapolando, desse modo, os limites da “etiquetagem”.
Logo, é do ponto de vista subjetivo que a nominalização atua sobre a informação nos gêneros redacionais das práticas jornalísticas, criando o “objeto-de-discurso” numa dinâmica de atualização discursiva, “no curso de uma interação” intermediada pelo aparato sóciocognitivo, cujas condições de processamento abarcam uma dimensão dialógica.
Essa concepção de linguagem como fator de ativação discursiva se presentifica no texto jornalístico como (re)categorização do referente via recursos lingüísticos da referenciação como fruto de uma complexidade cognitiva em ação que se processa no reconhecimento de que cada interlocutor se afirma como sujeito histórico e social, numa reflexão intersubjetiva das operações lingüísticas.
Assim, os modos de inscrição dos discursos “carregam” fragmentos de outros discursos, cujo dinamismo ativará no sujeito-leitor a construção do sentido através do “trabalho incessante com o já-dito”. Portanto, admitindo-se que há um percurso interativo de construção argumentativa socialmente organizada, uma vez que “a língua não existe fora dos sujeitos sociais” é que os recortes jornalísticos serão examinados.
ANÁLISE DO CORPUS
Durante o evento discursivo a referenciação instala-se como uma operação de manutenção do foco temático, cuja função coesiva permite que haja a progressão referencial, que se reformula com autonomia discursiva cada vez que é introduzido um novo referente.
Desse modo, o exemplo abaixo é ilustrativo dessa concepção de construção do objeto-de-discurso na perspectiva de uma gradação avaliativa que se processa reformulando conceitos e/ou sintetizandos-os com novos substantivos predicadores.
(1) “[...], o Brasil (e o Estado do Espírito Santo não ficou de fora) viu surgir de uma hora para outra , graças à má política, um monte de faculdades.
Essa tragédia brasileira dá a exata demonstração dessa fábrica de incompetências em que vivemos...
Esse amontoado de escolas chamadas de superiores, que proliferou pelo Brasil dá a exata demonstração do poder de influência da má política.
Se não bastasse essa trapalhada toda, as faculdades que caminham mais ou menos, buscam cumprir com suas finalidades, estão endividadas pela inadimplência dos alunos [...]”. (A Gazeta, 24-05-03, p.5)
Nos fragmentos destacados dos parágrafos acima, há uma correlação semântico-metafórica que impulsiona a argumentação, rompendo com uma suposta etiquetagem sinonímica; na verdade, os sintagmas nominais atuam como coadjuvantes de um processo de significação sistemática, na criação do objeto-de-discurso.
Um outro aspecto que merece destaque nas construções nominais – enquanto entidades articuladoras da criação de objetos-de-discurso – são as anáforas, cujos estudos apontam que
[...] embora não retomem diretamente o mesmo objeto-de-discurso, e aparentemente introduzam uma entidade nova, remetem a uma ou outra marca co-textual da qual elas se tornam não exatamente novas, mas inferíveis no dicurso (Cavalcante, 2005:128).
Insere-se nessa abordagem, as anáforas associativas, em que o referente é recategorizado pelas relações de ingrediência ou pela relação da parte pelo todo, num “[...] processo de contextualização do significado [...]” (Marcuschi, 2005: 88), cujos procedimentos argumentativos – em termos lingüísticos – operam no nível da coesão lexical.
Como se vê em (2), mais precisamente nos pares bandas de congo / manifestação folclórica - nossos manguezais / ecossistema; trata-se de uma estratégia argumentativa relacional na qual, segundo Clark (1992), “[...] o uso da linguagem, portanto, não acontece no vácuo, mas em arenas de ações altamente estruturadas [...]” (Clark, 1992, apud Cavalcante, 2005: 137) por mecanismos inferenciais ativados pelo aparato cultural.
(2) Alucinados com a overdose de informações (...), professores e alunos muitas vezes se deixam seduzir pelas temáticas globais, negligenciando toda a riqueza conceitual de nosso Estado.
Patrimônios culturais como bandas de congo, não perfazem nem um parágrafo das atuais publicações. O que é um grande equívoco, uma vez que esta manifestação folclórica materializa uma das mais importantes heranças culturais do povo capixaba.
Nossos manguezais também merecem uma especial atenção. Deixemos de lado a fria descrição conceitual deste ecossistema e avancemos sobre os aspectos sócio-econômicos e culturais que co-habitam esse espaço. Apresentemos as paneleiras com sua particular forma de expressão cultural. (A Gazeta, 25-05-03, p.5)
Percebe-se que a criação de objetos-de-discurso pela via inferencial anafórica convoca certo conhecimento de mundo e estratégias cognitivas de produção de sentido; portanto, as anáforas configuram-se uma atividade discursiva interacional que servem “[...] tanto à continuidade e manutenção referenciais quanto à construção dos sentidos no texto, sendo fundamentais para o possesso de referenciação” (Lima, 2003: 137).
De modo análogo, o teor argumentativo nas expressões nominais metafóricas conduzem a uma reflexão semântica acerca do referente, pois “[...] em grande número de casos, a escolha da metáfora para a recategorização do referente é importante para realizar uma avaliação que permita estabelecer a orientação argumentativa do texto” (Koch, 2005)
Esse expediente constitui uma ferramenta argumentativa que depende muito mais do conhecimento do mundo e da memória discursiva do que propriamente do aparato lingüístico, já que as expressões metafóricas são recursos lingüísticos empregados por similitude em lugar de outros.
Nesses termos, em (3) a orientação argumentativa de “essa pouca vergonha” traz uma série de valores relacionados com a cultura do “jeitinho brasileiro”, confirmando, desse modo, a força argumentativa da nominalização como dinamizadora do objeto-de-discurso.
(3) É uma barbaridade o prejuízo causado no comércio do Estado do Espírito Santo pela emissão dos chamados cheques declarados com insuficiência de fundos (...) Essa pouca vergonha de cheque sem fundos no Brasil... (A Gazeta, 26-05-03, p.8)
Como um “jogo de linguagem”, a primeira abordagem tenta suavizar o caos temático, pois o emissor faz um “rodeio” da gravidade do fato utilizando termos técnicos do vocabulário econômico-bancário – o economês –, mas na seqüência argumentativa abandona-se a dicção “ponderada” e parte-se para o chavão popular - “essa pouca vergonha de cheques sem fundo..”
No âmbito da matriz “objeto-de-discurso”, essa leitura permite, por exemplo, induzir o leitor a compactuar com a idéia de que a “essa pouca vergonha” decorre também da fragilidade das leis que não garantem a devida punição nesses casos e da exaustão do modelo de cheque como ordem de pagamento, que precisa ser repensado por motivos de segurança.
Uma operação de “nomeação” que merece destaque são aquelas que se manifestam por “[...] um nome morfologicamente derivado de um verbo da proposição que forneceu as informações-suporte” (Cavalcante, 2001: 128), como os exemplos (4) e (5).
(4) Educar é um ato de cumplicidade, o caminho e o encontro da felicidade. (...) a educação é um ato de coragem e afeto (...) (A Gazeta, 26-05-03, p.4).
(5) (...) Nesse assunto, o Governo Lula tem agido com tibieza, fruto do grave equívoco cometido pelo presidente quando nomeou pessoas notoriamente ligadas ao MST para postos importantes no Ministério da Reforma Agrária e no Incra.
Com tais nomeações, Lula deixou de ter isenção indispensável a quem tem a responsabilidade de resolver conflitos (...) (A Gazeta, 24-05-03, p.5)
Nos exemplos acima, a operação discursivo-anafórica se consubstancia pelo substantivo predicador nuclear (educação e nomeação) que instaura um “[...] um estatuto de referente, ou de objetos-de-discurso, a um conjunto de informações (as informações-suporte) que antes não tinham esse estatuto discursivo [...]” (Apothéloz & Chanet, 2003: 134)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na exposição desta pesquisa buscou-se explicitar os mecanismos argumentativos que perpassam as expressões nominais e suas inserções na atividade discursiva como pressuposto de organização e desenvolvimento referencial-temático na construção dos objetos-de-discursos, cujas evidências sustentam que a dinâmica sócio-interativa se presentifica no plano pragmático-discursivo como elemento de (re)ativação de referentes e/ou introdução de novos referentes na cadeia discursiva.
Portanto, na pratica jornalística a língua(gem), do ponto de vista da interação, impede caracterizações redutoras das possibilidades comunicativas, uma vez que a informação trabalhada encontra-se na memória discursiva, na qual o horizonte de atualização remissiva permite definir as atividades verbais como “[...] ações conjuntas, já que usar a linguagem é sempre se engajar em alguma ação em que ela é o próprio lugar onde a ação acontece, necessariamente em coordenação com os outros [...]” (Koch, 2004: 31).
Embora neste trabalho não tenha sido amplamente explorada a face da enunciação, pode-se relacionar ao engajamento proposto por Koch uma dimensão da alteridade no processo enunciativo, sob a ótica do dialógico, ou seja, na elaboração da cadeia argumentativa um “outro” é evocado e se manifesta e interage discursivamente.
Com esse acréscimo, observa-se que, longe de esgotar as possibilidades de investigação, a referenciação/nominalização enquadra-se no espectro da língua(gem) como atividade pactuada pela alternância dos sujeitos inscritos, configurando-se, portanto, uma atividade discursivo-processual.
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