A EXPRESSIVIDADE NAS PALAVRAS
DE ALGUMAS POESIAS DE MANUEL BANDEIRA

Luci Mary Melo Leon (UERJ)

 

O BICHO (pág. 283)

VI ONTEM um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Sentimos ao ler essa poesia uma compreensão fraternal do mundo, não isenta de melancolia e crítica. Ela deve contribuir como um grito de alerta, já que, na sociedade há pessoas que vivem do lixo e no lixo. Bandeira observava as pessoas da janela de sua casa na Lapa, porque a doença às vezes o impedia de sair. O dia-a-dia desperta uma completa revolução literária. Há uma forte tendência de valorizar a discussão dos problemas sociais. Aníbal Machado tem razão ao dizer que: “Não sabemos o que queremos, mas sabemos discernir o que não queremos”. O que vale é a intuição do poeta. Isso Bandeira tinha no seu jeito de enxergar o mundo. As imagens citadas na poesia são tiradas da vida diária. Existe um interesse pelo social. Nesse instante observamos o quanto à poesia de Manuel Bandeira pode colaborar com os estudantes ao escrever um texto, seja qual for a tipologia escolhida. Isso pode ser comprovado com o argumento de autoridade segundo Platão & Fiorin em seu livro Lições de texto: leitura e redação. Othon Garcia também indica o que ele chama de métodos de autoridade. É a citação de autores renomados. Talvez seja por isso que alguns escritores afirmam que todo texto tem intertextualidade. Só precisamos ter cuidado para não citarmos frases falsas, que não fazem parte da realidade.


 

VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA (pág. 222)

 

VOU-ME EMBORA pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água.
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver triste mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
- Lá sou amigo do rei
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Nesse  poema Bandeira levou em conta a intuição e a necessidade do extravasamento poético. Imagens tiradas de uma vida que ele sonhou. A intertextualidade se faz presente no texto abaixo ratificando que a idéia é feita no instante da poesia, sem limitações:

 

BIOGRAFIA DE PASÁRGADA

Quando eu tinha os meus quinze anos e traduzia na classe de grego do Pedro II a Ciropedia fiquei encantado com esse nome de uma cidadezinha fundada por Ciro, o Antigo, nas montanhas do sul da Pérsia, para lá passar os verões. A minha imaginação de adolescente começou a trabalhar, eu vi Pasárgada e vivi durante alguns anos em Pasárgada.

Mais de vinte anos depois, num momento de profundo “cafard” e desânimo, saltou-me do subconsciente este grito de evasão: “Vou-me embora pra Pasárgada! Imediatamente senti que era a célula de um poema. Peguei do lápis e do papel, mas o poema não veio. Não pensei mais nisso. Uns cinco anos mais tarde, o mesmo grito de evasão nas mesmas circunstâncias. Desta vez o poema saiu quase ao correr da pena. Se há belezas em “Vou-me embora pra Pasárgada”, elas não passam de acidentes. Não construí o poema; ele construiu-se em mim nos recessos do subconsciente, utilizando as reminiscências da infância – as histórias de Rosa, a minha ama-seca mulata, me contava, o sonho jamais realizado de uma bicicleta, etc. O quase inválido que eu era ainda por volta de 1926 imaginava em Pasárgada o exercício de todas as atividades que a doença me impedia:

“E como farei ginástica... tomarei banhos de mar!” A esse aspecto Pasárgada é “toda a vida que podia ter sido e que não foi” (Bandeira, 1993).

O poema surge como a esperança para cada brasileiro. Há crianças que não andam de bicicleta porque trabalham. As prostitutas que são discriminadas perante a sociedade. A busca pela felicidade em algum lugar no imaginário, mas que acaba sendo real devido à força do pensamento. A valorização da leitura na infância como estímulo. Um lugar que tem tudo para todos. Até no fim do poema mesmo com vontade de se matar ele termina com a idéia-núcleo: “Vou-me embora pra Pasárgada”. Ao ler essa poesia em sala de aula o professor poderá despertar no aluno o interesse pela narração, já que, Bandeira “abusa” de criatividade e originalidade nesse poema. Até no texto dissertativo-argumentativo a poesia pode ser citada como o lugar ideal para se viver diante das atrocidades que vivenciamos. “O último a sair que apague a luz”.

Manuel Bandeira é um exemplo de argumento de autoridade pela simplicidade do seu vocabulário. Não é preciso escrever difícil para ser considerado um grande poeta. Dentre as suas contribuições, algumas se destacam: a língua coloquial, a irreverência, a liberdade criadora e o verso livre. Mas o que mais fascinava quem lia seus poemas é a capacidade de extrair algo banal do cotidiano e transformar em uma reflexão social e filosófica.

POEMA TIRADO DE UMA NOTÍCIA DE JORNAL (pág. 214)

JOÃO GOSTOSO era carregador de feira livre e morava no morro
                                          [da Babilônia num barracão sem número.
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

A poesia retrata a vida de um cidadão comum que de tanto sofrer nesse sistema, que separa as pessoas pela desigualdade, um dia se entrega por ter perdido a fé. O aluno tem um exemplo real do que pode acontecer a qualquer pessoa que desacredita em si mesmo e no mundo que o cerca. Nesse aspecto a tragédia se faz presente sobre a condição humana. A coloquialidade e as oposições formais se juntam ao gosto pelo “humilde cotidiano” dos tempos que bandeira morava no morro do Curvelo. Lá o relacionamento com gente pobre. Era a experiência de rua que hoje está por trás das grades.

IRENE NO CÉU (pág. 220)

IRENE PRETA
Irene boa
Irene sempre de bom humor

Imagino Irene entrando no céu:
– Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
– Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.

Esse poema retrata o preconceito racial presente no mundo. Bandeira utiliza a antítese preta e branco porque conhece essa discriminação. Mulher pobre da favela é tão boa que não precisa pedir licença. Nacionalismo também se faz presente. O negro é o verdadeiro brasileiro. A literatura é realizada de experiências interiores. Não importa a cor da pessoa. O que importa é a bondade. Cabe ao educador em sala de aula acordar os alunos para essa realidade. Valorizar cada pessoa pelo o que ela é. Escrever um texto sobre preconceito em que precisamos de mais “Irenes” para ir para o céu. A poesia é um recurso que acorda aqueles estão adormecidos. Estamos vivendo uma indigência espiritual. Com a poesia podemos enxergar melhor todos esses crimes que os excluídos sentem.

POÉTICA (pág. 207)

ESTOU FARTO do lirismo comedido
do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
                  [ protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
                                    [o cunho vernáculo de um vocabulário

Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que
seja fora de si [mesmo.

De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos
secretário do amante exemplar
                                       [ com cem modelos de cartas e as diferentes
                                       [maneiras de agradar ás mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

–  Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

A poesia apresenta uma revolução literária. Novas idéias e novas temáticas. Fugir das fórmulas e dos pré-conceitos estabelecidos. Ruptura do tradicional. Destruição do espírito conservador. Atualização de uma consciência criadora. Interesse pelo inconsciente. “O lirismo dos bêbedos”. Bandeira desperta o cidadão que às vezes se deixa levar por uma anestesia que adormece o senso de crítica e luta. O papel do professor é incentivar o aluno a escrever sem deixar de mencionar o argumento de autoridade. Comparações e antíteses enriquecem o texto argumentativo. As metáforas despertam o interesse pelo jogo das palavras. Isso Bandeira faz e muito bem. Ele usa a poesia como um instrumento de busca pelo o que seja verdadeiro. Não podemos ser cópias. Temos que seguir com os nossos próprios pés, provando que a atitude modernista veio para ficar.Precisamos provar aos nossos alunos que Pasárgada existe e que no mundo ainda há “Irenes boas”.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BANDEIRA, Manuel. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.

FIORIN, J. L. & PLATÃO, F. S. Para entender o texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 1990.

GARCIA, Othon M. Comunicação em prosa moderna. 13ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1986.

VAL, Maria da Graça Costa. Redação e textualidade. São Paulo: Martins Fontes, 1991.