O JOGO METAFÓRICO DE EXPRESSÕES IDIOMÁTICAS
NO
FUNCIONAMENTO DA LINGUAGEM

Aline Moraes Oliveira (UFES)
Alzira da Penha Costa Davel (UFES)

 

INTRODUÇÃO

Este artigo tem como objetivo apresentar um estudo descritivo de expressões metafóricas com a estrutura Verbo + Sintagma Nominal (= nome de animal: dar zebra, pagar o pato, enfeitar o pavão, etc.) que desenvolvemos como trabalho final de no curso de Letras Português da Universidade Federal do Espírito Santo.

Ao transmitirmos as nossas experiências, muitas vezes, lançamos mão de certas expressões. O uso de expressões, de um modo geral, é altamente produtivo. Essa produtividade se deve ao fato de que, em muitas situações sócio-interativas, o falante se vale de uma ou de outra expressão ora para ser rapidamente entendido ora para se inserir em determinados grupos. Nessa perspectiva, partimos da hipótese de que o falante ao utilizar as expressões idiomáticas metaforizadas obtém eficiência comunicativa.

O corpus se constitui de expressões utilizadas em textos escritos e orais. Para tanto recorremos também aos dicionários de Aurélio (1986), Houaiss (2001) e Borba (2002).

O léxico pode ser concebido, segundo Basílio (1987) como o local de interface sociocultural porque permite a formação de palavras novas para atender às necessidades de comunicação.

Vale, em sua tese de Doutorado, para caracterizar seu objeto de estudo parte de estudo parte da definição de EC (expressão cristalizada) que é representada pela clássica definição de expressão idiomática, da qual define:

Uma expressão formada por mais de um segmento (um segmento compreendido em língua escrita como uma seqüência de letras delimitada por dois separadores, qual seja: um espaço em branco, um sinal de pontuação) cujo significado total não pode ser deduzido pelo significado das partes que a compõem. (2001: 18)

Smarsaro (2004) considera oportuno refletir sobre aquelas expressões cuja função é nomear metaforicamente. Visto que a interpretação se dá se conhecemos o sentido da metáfora, não sendo possível inferir o significado através da simples observação das formas. É impossível, por exemplo, inferir que as expressões botar bezerro e cercar frango, signifiquem: “expelir pela boca o que estava no estômago” e “caminhar sem firmeza”, respectivamente.

Sandman não deixou de observar que o sentido de “João comeu cobra no meio daquela discussão” se desfaz em relação ao “João comeu a cobra que capturou no sítio de seu amigo”, justamente pela presença de certos elementos. Isso é de natureza sintático-semântica e é o que contribui na interpretação da seqüência.

Baseando-se nisso, apresentamos alguns exemplos, em que fatores metafóricos são responsáveis pela formação da estrutura, ou seja, a transferência ou ampliação do significado se dá por associação baseada na semelhança, como por exemplo, metido a besta (pretensioso), armar aos cucos (esnobar), vender gato por lebre (enganar o comprador, fazendo-o levar mercadoria inferior àquela por que realmente pagou). Em outros casos, a transferência ou ampliação do significado de uma unidade lingüística se dá por contigüidade ou associação espacial.

O objetivo deste estudo foi desenvolver um estudo descritivo de expressões idiomáticas metafóricas estruturadas em:

·    V + SN (= nome de animal, inseto);

·    VL + SN (= nome de animal, inseto);

·    AUX + V + SN (= nome de animal, insetos);

·    V+ PREP + SN (= nome de animal, insetos);

·    V – se + SN (= nome de animal, insetos);

·    V+COMO(elemento de comparação)+SN(= nome de animal, inseto);

·    (NÃO)V+SN( = nome de animal, insetos) + PREP + (complemento);

·    V + PREP + SN (= nome de animal, insetos) + (complemento);

·    e V - PREP - SN (= nome de animal, insetos) - (complemento).

Ressaltamos que trataremos apenas do primeiro caso elencado - V + SN (= nome de animal, inseto), visto que foi, inicialmente, foi o que motivou este estudo.

Espera-se com essa pesquisa, contribuir para os estudos lingüísticos, e ainda, associar o uso de expressões à leitura de termos relacionados ao contexto, visto que a linguagem cotidiana rege nosso pensamento e nossa ação. Encontrar suas origens de usos, tentando correlacionar o emprego dessas expressões do português do Brasil à forma econômica em que sempre se baseou o nosso país, a agricultura; ou seja, uma nação agrária que apresenta um quadro de contato com elementos da natureza, sobretudo, a partir do fenômeno da ruralização, como, por exemplo, os animais, objeto de nossa averiguação. Conceber metáfora como expressão do pensamento talvez, relacioná-la à economia de fala, de explicitações, de detalhamentos, ou ainda, à ênfase ao que o falante pretende comunicar.

O método de descrição do léxico das expressões idiomáticas metafóricas se apóia em textos do português do Brasil processados em suporte eletrônico ou em jornais e revistas. Esses textos são representativos da língua falada e escrita, de conteúdo irrestrito. Utilizamos também o dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Para o presente estudo, procedeu-se à recolha e posterior descrição lingüística de uma amostra de cerca de 50 expressões idiomáticas com caráter metafórico. Esta relação, embora longe de estar completa é uma amostragem representativa de alguns fenômenos léxico-sintático-semânticos da funcionalidade do Português do Brasil, evidenciando a alta produtividade da estrutura.

Para a seleção dos dados utilizamos Houiass (2001), embora as informações desse dicionário tivessem sido, por vezes, também confrontadas com as de outros. A listagem assim constituída foi ainda completada com informações retiradas de jornais, revistas, noticiários de rádio e de televisão, bem como da nossa competência lingüística.

As formas extraídas dos textos constituem listas e resultados de combinações. O estudo lingüístico dessas formas se baseia nos critérios de aceitabilidade dos enunciados do locutor nativo e na consulta a dicionários.

 

A METÁFORA

A retórica clássica considera a metáfora como figura de linguagem e a define como substituição de uma palavra por outra, quando há uma relação de similaridade entre o termo de partida e o de chegada. Mas essa definição torna-se insuficiente, pois metáfora passa a ser considerada constituição de sentido, assim não representa a substituição de uma palavra por outra, mas uma outra possibilidade criada pelo contexto, de leitura de um termo (Fiorin, 2002: 86). Esse é, então, um processo cognitivo, dentro de uma visão funcionalista, e estabelece semelhanças entre o novo e as experiências, ou seja, segundo Abreu (2000: 4), esse processo denomina-se transferência metafórica.

A metáfora exerce esse papel de propiciar a extensão da capacidade de conceituar e, por conseguinte, de facilitar a comunicação, porque institui o jogo entre o concreto e o abstrato que permeia o exercício mental na comunicação lingüística. A partir dessa noção e fundamentando-se principalmente em Lakoff e Johnson (2002), que consideram a importância da metáfora na estruturação do pensamento, este trabalho filia-se à Teoria Funcionalista da linguagem.

 

AS EXPRESSÕES IDIOMÁTICAS

A habilidade na construção e no uso de expressões idiomáticas depende do domínio da língua e do conhecimento dos aspectos culturais.

Borba assegura que as expressões adquirem valores semânticos dentro do discurso. Isso reforça a nossa hipótese de que as expressões aqui trabalhadas possam ter, a partir de uma análise do sentido metafórico chegando ao sentido genérico, sua origem em um certo tipo de vivência que caracteriza aspectos da vida no campo, e ainda, na observação da natureza, o que deixa em evidência um traço de variação lingüística relacionado à expressividade. Borba ainda reitera que “os modelos lingüísticos relacionam-se estreitamente com os modelos socioculturais, que a língua reflete a realidade em todos os seus aspectos” (2003: 37).

Podemos dizer que as expressões idiomáticas preenchem uma função comunicativa, uma vez que se ambientalizam em situações específicas de uso. E que por estarem vinculadas a representações culturais, o falante nativo as reconhece com mais facilidade, agilidade e eficiência. E, ainda, que são de maior aplicabilidade no discurso direto, podendo se enquadrar numa subdivisão lingüística em coloquialidade, ou simplesmente, linguagem popular. Mesmo sendo de maior prestígio, a manifestação escrita da língua também lança mão do uso de expressões cristalizadas, para sintetizar ou definir toda uma situação de fala, enriquecendo o acervo cultural do falante. O que também gera uma interação social entre usuários desses recursos proporcionado por idiomas, no nosso caso, o português do Brasil.

 

A PRODUTIVIDADE DAS EXPRESSÕES IDIOMÁTICAS

Borba diz que o nosso cotidiano é marcado pela característica campestre, o que é facilmente demonstrado pela escolha lexical nos provérbios, elementos de uma de suas análises. “Numa amostra dos vinte mais comuns, onze têm como núcleo léxico um nome de animal predominantemente doméstico: burro, cachorro, cabrito, cavalo, gato, papagaio, cobra, andorinha, macaco, galinha” (2003: 37-38). Assim, também acontecem nas expressões idiomáticas, frutos da nossa observação.

Constatamos que a produtividade de expressões idiomáticas que apresentam verbos e nomes de animais também é relativamente alta, visto que tais termos, em uma dimensão pragmática, preenchem uma função comunicativa. Embora se manifestem com mais freqüência no uso oral da língua, por não portarem uma estrutura própria para memorização e transmissão, elas aparecem regularmente também na língua escrita em quase todas as suas modalidades: jornalística, literatura e, inclusive, textos técnicos, bíblicos, didáticos.

 

AS EXPRESSÕES IDIOMÁTICAS E AS METÁFORAS

A visão tradicional, que caracteriza a metáfora como desvio da linguagem e como fenômeno de linguagens especiais teve sua perspectiva ampliada, a partir da proposição de Lakoff e Johnson (2002) de que há um sistema conceptual subjacente à linguagem, que influencia nosso pensamento e nossa ação. Dessa forma, a nossa linguagem cotidiana adquire importância porque revela um enorme sistema conceptual metafórico e a figura deixa de ser considerada periférica, e passa a ser vista como fenômeno central na linguagem e no pensamento.

A metáfora permeia nosso sistema conceptual normal, tanto que “tentamos, por meio de exemplos, dar algumas indicações do papel considerável da metáfora na maneira como agimos, falamos, vivemos.” (Lakoff; Johnson, 2002: 205).

A categorização é uma forma natural de identificar um tipo de objeto ou de experiência iluminando certas propriedades, atenuando outras e até escondendo outras. Cada dimensão indica as propriedades que são iluminadas. Para iluminar determinadas propriedades, é necessário atenuar ou esconder outras, que é o que ocorre cada vez que se categoriza alguma coisa. Ao focarmos um conjunto de propriedades, desviamos nossa atenção das outras. (Lakoff; Johnson, 2002: 266)

Sob essa luz, podemos acrescentar que a freqüência com que o falante utiliza as expressões metafóricas construídas com VERBO + SN (nome de animal, inseto) para realização de sentido está relacionada ao processo de categorização e de experiência. Assim, em um país como o Brasil, de origem agrária e rural, com bastante contato com elementos da natureza, o fato de as pessoas empregarem expressões com essa característica nada mais é do que um simples reflexo do meio em que vivem, viveram, e ainda, do contato que obtiveram com outras pessoas em sua vivência.

 

A DESCRIÇÃO DAS EXPRESSÕES IDIOMÁTICAS
Estruturadas
em V + SN (= nome de animal, inseto)

As expressões estruturadas em V+ SN (= nome de animal, inseto) apresentam alta produtividade em comparação com as demais estruturas metafóricas que abrangem o nosso estudo.

Percebemos que o termo adquire valores semânticos opostos entre si de acordo com a ambiência em que é empregado. Esses valores se alternam em denotativo e metafórico. Houaiss (2001) consigna em uma de suas acepções denotar como remeter (um signo lingüístico) ao conjunto de seres e coisas que, numa determinada língua, estão convencionalmente ligados a esse significante.

Desse modo, a expressão soltar os cachorro* aparece em seu sentido literal quando o emissor refere-se ao ato de “tornar livre, pôr em liberdade” um “animal mamífero carnívoro da família dos canídeos (Canis familiaris), provavelmente, originado a partir de populações selvagens do lobo eurasiático (Canis lupus), encontrado no mundo todo como animal doméstico”, como na ilustração que segue:

João soltou os cachorro no quintal.

Joana soltou os cachorro para que pudessem se alimentar melhor.

Mas a expressão soltar os cachorro nem sempre é utilizada por falantes nativos da língua portuguesa em seu valor literal. Muitas vezes, esse termo é utilizado em uma ambiência que proporciona um sentido metafórico. É, justamente, sobre esse fenômeno que abarcam as nossas averiguações. O verbo soltar deixa de significar “pôr em liberdade” e o vocábulo cachorro perde o significado de “um animal mamífero”. Essa perda de sentido literal do termo é uma marca que evidencia a existência de um termo ou expressão que constrói o seu valor a partir de um todo, ou seja, a estrutura somente apresenta-se semanticamente como metáfora quando aparece em um mesmo bloco e em um contexto que proporcione tal manifestação, como no exemplo abaixo:

João soltou os cachorro em seu patrão, que o estressava há bastante tempo.

Joana soltou os cachorro em seu namorado por causa de uma traição.

Apresentamos uma relação de expressões idiomáticas que apresentam o mesmo comportamento dos termos exemplificados anteriormente.

1.        engolir araras

2.        capar o gato

3.        bancar avestruz

4.        fazer gato e sapato de

5.        botar bezerro

6.        fazer um gato

7.        amarrar o bode

8.        vender gato por lebre

9.        amarrar um bode

10.     encangar grilos

11.     fazer bode

12.     pegar jacaré

13.     sangrar o bode

14.     ter macaco no sótão

15.     apadrinhar o boi

16.     abana-moscas

17.     pegar o boi

18.     comer mosca

19.     prender o burro

20.     papar mosca

21.     amarrar a cabra

22.     engolir mosca

23.     soltar os cachorro

24.     papa-moscas

25.     abrir o cavalo

26.     picar a mula

27.     comer cobra

28.     ficar uma onça

29.     engolir cobra

30.     safar a onça

31.     lavar a égua

32.     pagar o pato

33.     cercar frango

34.     enfeitar pavão

35.     engolir frango

36.     cercar peru

37.     cercar galinha

38.     fazer pinto

39.     deitar uma galinha

40.     tomar um porco

41.     cozinhar o galo

42.     engolir sapo

43.     salgar o galo

44.     espantar tico-tico

45.     comer gambá errado

46.     ir a vaca pro brejo

47.     fazer gambá

48.     bancar o veado

49.     amarrar o gato

50.     dar zebra

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A investigação que se instaurou neste trabalho teve como ponto de partida diversos olhares de gramáticos e lingüistas para o fenômeno da metáfora. Uns orientam-se pela visão tradicional, que caracteriza metáfora como um desvio; outros, por uma visão de que a metáfora está integrada ao processo de construção de sentidos.

Percebemos que muitos são os fatores que contribuem para a constituição do sentido na concepção de linguagem como atividade humana, histórica e social, dentre eles estão o lugar dos interlocutores na sociedade; os recursos expressivos por eles empregados; as relações que se estabelecem entre ambos; os conhecimentos que partilham; o contexto histórico-social-cultural.

Partimos da hipótese de que o falante ao utilizar as expressões idiomáticas metaforizadas obtém eficiência comunicativa, pois, como locutor, é capaz de construir sentidos, e o interlocutor capaz de construí-lo a partir do que outro diz ou escreve. Visto que os eventos lingüísticos são uma atividade que se faz com os outros, não são de vários atos individuais e independentes.

Afirmamos que a metáfora exerce esse papel de propiciar a extensão da capacidade de conceituar e, por conseguinte, de facilitar a comunicação, porque institui o jogo entre o concreto e o abstrato que permeia o exercício mental na comunicação lingüística.

Constatamos que a produtividade de expressões idiomáticas que apresentam verbos e nomes de animais é relativamente alta, pois tais termos, em uma dimensão pragmática, preenchem uma função comunicativa. Embora se manifestem com mais freqüência no uso oral da língua, elas aparecem regularmente também na língua escrita em quase todas as suas modalidades: jornalística, literatura e, inclusive, textos técnicos, bíblicos, didáticos.

Concluímos, ressaltando que é preciso considerar todas as relações entre contextos em que aparecem as estruturas, levando-se em conta as distribuições sintáticas de seus componentes, ou seja, é preciso descrever o conjunto de propriedades sintáticas que cada seqüência apresenta. O resultado da análise vem demonstrando que as seqüências têm propriedades diferentes e uma alta produtividade no uso cotidiano da língua.

Pretendemos aplicar o resultado da análise empreendida neste estudo, ao processamento da linguagem natural, com vistas à elaboração de um dicionário eletrônico.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, A. Metáfora: uma visão funcionalista. In: Letras. vol. 19, nº1. Campinas: PUCCAMP, 2000.

BASÍLIO, Margarida. Teoria Lexical. São Paulo: Ática, 1987.

BORBA, Francisco da Silva. Organização de dicionários: uma introdução à lexicografia. São Paulo: Unesp, 2003.

FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2002.

HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Versão 1.0. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. 1 CD-ROM.

LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metáforas da vida cotidiana. Campinas: Mercado de Letras, 2002.

SANDMAN, A.. Formação de palavras no português brasileiro contemporâneo. Curitiba: Ícone, 1989.

Smarsaro, Aucione das Dores. Descrição e formalização de palavras compostas do português de um dicionário eletrônico. 2004. 154 f. Tese (Doutorado em Letras) – Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2004.

VALE, Oto Araújo. Expressões cristalizadas do português do Brasil: uma proposta de tipologia. 2001. 213 f. Tese (Doutorado em Letras) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2001.


 

* A expressão está originalmente registrada no dicionário Houaiss (2001) como soltar os cachorro.