AS CONSTRUÇÕES DE TÓPICO
NAS FALAS CULTA E POPULAR
Mônica Tavares Orsini (UFRJ)
Sérgio Leitão Vasco (UFRJ)
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O termo tópico tem sido utilizado com diferentes significados na literatura lingüística. Numa perspectiva discursiva, refere-se àquilo sobre o que se está falando no discurso (trata-se, portanto, do tópico discursivo).
Na abordagem gramatical tradicional, as construções de tópico são tratadas como figuras de sintaxe, sob os rótulos de pleonasmo ou de anacoluto. Segundo Cunha e Cintra (1985), por exemplo, tanto os anacolutos quanto os pleonasmos se caracterizam por serem um desvio da norma culta, licenciado pela gramática.
Afastando-se tanto da perspectiva discursiva quanto da normativa, o presente artigo focaliza o tópico sentencial (ou tópico marcado, na terminologia de Mateus et alii, 2003), definido como o sintagma nominal ou preposicional, externo à sentença, normalmente já ativado no contexto discursivo, sobre o qual se faz uma proposição por meio de um comentário elaborado através de uma sentença com sujeito e predicado.
Desta forma, objetiva-se: a) descrever as correlações pertinentes às diferentes estratégias de construção de tópico marcado nas falas culta e popular do Português do Brasil (PB); b) discutir o status do PB como língua com proeminência de tópico e de sujeito (cf. Li e Thompson, 1976), tendo em vista o conjunto de mudanças sintáticas por que passa o sistema, a saber: preenchimento de sujeito e apagamento de objeto.
AS ESTRATÉGIAS DE CONSTRUÇÃO DE TÓPICO
A tipologia apresentada por Pontes (1987) e outros trabalhos sobre o tema contribuíram para identificação de quatro diferentes estratégias de construção de tópico nas falas culta e popular do PB. Assim, reúnem-se, neste trabalho, ocorrências de:
(A) Tópico-anacoluto - o tópico não estabelece nenhuma relação argumental com o verbo. Tem-se, ao contrário, uma relação semântica: o locutor anuncia o tópico sobre o qual vai falar para depois fazer um comentário por meio de uma sentença completa. Vejam-se os exemplos (1) e (2), da fala culta e popular respectivamente:
(1) Doce
(2) A seleção brasileira, quando começou a Copa do Mundo, um campeonato que é pra valer mesmo a coisa muda de figura.
(B) Topicalização (TOP) – caracteriza-se pela existência de uma categoria vazia, no interior da sentença-comentário, que poderia ser preenchida pelo tópico externo à sentença, como se verifica nos exemplos (3) e (4), da fala culta e popular respectivamente:
(3) Lagoi também acho __i bonito.
(4) A carnei eu já deixo __i de um dia pro outro.
(C)
(5) As praias do Nordestei elasi são todas muito lindas.
(6) Olha, eu acho que a violênciai elai nasce com cada um.
(D) Tópico-sujeito - o tópico é reanalisado como sujeito, instaurando-se inclusive a concordância verbal, como mostram os exemplos (7) e (8), da fala culta e popular respectivamente:
(7) Aquilo venta, chove.
(8) As pessoas têm o hábito de evitar o Jardim Botânico achando que vai ser pior, a Lagoa sobrecarrega muito.
PRESSUPOSTOS METODOLÓGICOS
Os corpora
Os dados de fala culta foram coletados do acervo sonoro do Projeto de Estudo da Norma Urbana Culta do Rio de Janeiro (NURC-RJ), que reúne informantes com nível superior completo. No total, foram ouvidos, 33 informantes, gravados no decorrer de um intervalo de tempo de cerca de 20 anos (da década de 70 a 90), distribuídos por gênero e faixa etária (25 a 35 anos, 36 a 55 anos, mais de 55 anos).
Os dados de fala popular foram coletados do acervo sonoro do Programa de Estudos sobre o Uso da Língua (PEUL), que reúne informantes com nível fundamental ou médio. Foram ouvidos 30 informantes, gravados nos anos de 1999 e 2000, distribuídos por gênero, faixa etária (15 a 25 anos, 26 a 49 anos, 50 anos em diante) e nível de escolaridade (1º segmento do ensino fundamental, 2º segmento do ensino fundamental, ensino médio).
A Sociolingüística Paramétrica
O aporte teórico que fundamenta este trabalho pressupõe a associação dos pressupostos da Sociolingüística Variacionista ao modelo da Teoria de Princípios e Parâmetros, do programa gerativista. A Sociolingüística Variacionista prevê que a língua é um objeto heterogêneo, sistematicamente ordenado, em constante mudança, que decorre da correlação de fatores lingüísticos e sociais. Segundo tal perspectiva, as mudanças não ocorrem ao acaso, sendo tarefa do lingüista determinar a forma como estão associadas no sistema.
A Teoria de Princípios e Parâmetros, por seu turno, defende que a linguagem é composta por princípios que são válidos para todas as línguas naturais e por parâmetros que uma língua pode ou não exibir, sendo responsáveis pela diferenciação das línguas entre si.
Neste sentido, pretende-se observar como as construções de tópico se comportam no PB, relacionando-se às mudanças por que esse sistema vem passando, o que parece afastá-lo progressivamente do PE.
PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
Uma tipologia das línguas
Li & Thompson (1976) propõem uma tipologia das línguas, com base no fato de essas se diferenciarem no que se refere às estratégias de elaboração das sentenças, que podem manifestar, com maior freqüência, uma relação de tópico-comentário ou sujeito-predicado. Desta forma, detectam a existência de quatro tipos básicos distintos:
(a) línguas com proeminência de sujeito - neste tipo, a estrutura das sentenças favorece uma descrição pautada na relação gramatical sujeito-predicado;
(b) línguas com proeminência de tópico – ao contrário do modelo anterior, a relação tópico-comentário determina a estrutura das sentenças;
(c) línguas com proeminência de tópico e de sujeito – nestas línguas, há duas construções sentenciais distintas e igualmente importantes: sujeito-predicado e tópico-comentário;
(d) línguas sem proeminência de tópico e de sujeito – neste tipo, sujeito e tópico se fundem, deixando de ser categorias distintas.
Fenômenos de mudança no PB:
preenchimento de sujeito e apagamento de objeto
Duarte (1996), com base em peças teatrais, mostra que a crescente simplificação do paradigma flexional “alterou as características de língua pro-drop que o português do Brasil apresentava antes de 1937” (op. cit.:123). Deste modo, o PB evoluiu de um sistema de seis formas distintas para outro com quatro, em função da perda das 2ª pessoa do singular e do plural (Tu e Vós), e, mais recentemente, para um sistema com três formas, determinado pela substituição do Nós pelo A gente.
Paralelamente ao preenchimento de sujeito, verifica-se uma tendência ao desaparecimento dos clíticos acusativo e dativo de terceira pessoa, preferindo-se o objeto nulo, como mostra o trabalho de Duarte, Cyrino e Kato (2000).
Os fenômenos aqui descritos afastam o PB do PE que se caracteriza por ser marcado positivamente para o parâmetro de sujeito nulo e por manter, de forma bastante funcional no sistema, os clíticos acusativo e dativo de terceira pessoa.
RESULTADOS
A tabela 1 apresenta a distribuição das construções de tópico nas falas culta e popular, considerando-se a função sintática a que o tópico está indexado no interior da sentença-comentário.
Construções de tópico (CTs) |
Fala culta |
Fala popular |
||
nº |
% |
nº |
% |
|
Anacoluto |
112 |
11% |
269 |
21% |
DE SUJEITO |
314 |
32% |
334 |
26% |
DE OD |
43 |
4% |
51 |
4% |
DE OBL |
41 |
5% |
58 |
5% |
TOP SUJEITO |
30 |
3% |
- |
- |
TOP OD |
181 |
19% |
264 |
20% |
TOP OBL |
198 |
20% |
220 |
17% |
Tópico-sujeito |
60 |
6% |
96 |
7% |
Total |
979 |
100% |
1292 |
100% |
Tabela 1: Distribuição das construções de tópico nas falas culta e popular
Os dados revelam que as construções de anacoluto são relativamente mais freqüentes na fala popular (diferença de 10 pontos percentuais). Uma hipótese para justificar essa diferença seria o fato de tais construções serem tratadas pela gramática tradicional como um desvio da norma padrão, o que contribuiria para que falantes cultos apresentassem maior resistência em relação a elas.
No que tange às construções de tópico-sujeito, verifica-se que essas são as menos freqüentes tanto na fala culta quanto na popular, evidenciando percentuais de ocorrência muito semelhantes. Trata-se de uma estratégia bastante recente no PB, própria das línguas orientadas para o discurso, e sua inserção no sistema está diretamente relacionada ao fato de o PB estar se tornando uma língua negativamente marcada para o parâmetro de sujeito nulo, diferentemente do PE.
Topicalização e
(9) Os
estruturas que não foram consideradas no levantamento dos dados de fala popular.
Pode-se afirmar que a alta freqüência de DE SUJEITO (exemplos 5 e 6), nas falas culta e popular, é decorrência de o PB preferir sujeitos plenos a vazios. Já a incidência de TOP OD (exemplos 3 e 4) decorre da perda do clítico acusativo de 3ª pessoa.
As ocorrências de deslocamento à esquerda de oblíquo (DE OBL) e topicalização de oblíquo (TOP OBL) reúnem estruturas em que o tópico está vinculado a uma função oblíqua nuclear ou não nuclear, segundo descrição de Mateus et alii (2003). Confrontando tal abordagem à descrição gramatical tradicional, tem-se para oblíquo nuclear os casos em que o tópico está indexado ao objeto indireto ou ao complemento do nome no interior da sentença-comentário; os oblíquos não nucleares referem-se à indexação do tópico a um adjunto adverbial. Em (10), exemplifica-se um TOP OBL nuclear (indexado a função de objeto indireto na sentença-comentário), em (11), um TOP OBL não nuclear (indexado a função de adjunto adverbial) e, em (12), um DE OBL nuclear (indexado à função de complemento do nome). Todos os exemplos são de fala culta.
(10) Sorvetei
(11) Noite de verãoi a
(12) eui nissoj eui sou frustrada nissoj.
As
Quanto à análise da estrutura do tópico, constata-se que no PB qualquer elemento pode ser tópico. Os dados mostram que, tanto na fala culta quanto na popular, o SN é a estrutura mais recorrente. Na fala popular, a diversidade é ainda maior, havendo, inclusive, um numeral na posição de tópico, como se verifica nos exemplos a seguir.
a) Sintagma nominal (SN)
(13) As bolsasi nós costumávamos dar__i. (fala culta)
(14) Na segunda-feira os donos dos caminhões era uma descompostura uma atrás da outra. (fala popular)
b) Pronome
(15) Elei ela ajuda elei também. (fala culta)
(16) Aí a gente, depois que tava montada a peça, era um trabalho cuidadosíssimo. (fala popular)
c) Sintagma oracional
(17) Jogar minha irmã jogava voleibol. (fala culta)
(18) Evitar filho eu respeito a igreja. (fala popular)
d) Sintagma preposicional (SP)
(19) Dos cinco filhos que eles tiverami três __i nasceram na Europa. (fala culta)
(20) Do Nordeste eu num conheço Natal como eu gostaria. (fala popular)
e) Numeral
(21) Trinta e alguma coisa já são velhos pro futebol. (fala popular)
Quanto ao grupo de fator definitude, ambas as variantes estudadas revelam preferência por tópicos definidos, independentemente da estratégia de construção de tópico utilizada pelo falante. Esses dados confirmam a afirmação de Li e Thompson (1976) de que o tópico marcado é predominantemente definido.
Topicalização e deslocamento à esquerda de oblíquos
Considere-se a tabela 2 abaixo:
Função oblíqua |
|
|
||
nº |
% |
nº |
% |
|
DE OBL |
41 |
17% |
58 |
20% |
|
198 |
83% |
225 |
80% |
|
239 |
100% |
283 |
100% |
Os
Observou-se, na investigação,
Na tabela 3, reúnem-se as
presença x
|
|
|
||
nº |
% |
nº |
% |
|
|
31 |
15% |
80 |
36% |
|
167 |
85% |
145 |
64% |
|
198 |
100% |
225 |
100% |
Os
A
|
|
|
||
nº |
% |
nº |
% |
|
|
21 |
18% |
55 |
65,5% |
|
97 |
82% |
29 |
34,5% |
|
118 |
100% |
84 |
100% |
A
|
|
|
|
||
|
nº |
% |
nº |
% |
nº (%) |
|
27 |
87 |
4 |
13 |
31 (100%) |
De |
72 |
85 |
13 |
15 |
85 (100%) |
|
16 |
84 |
3 |
16 |
19 (100%) |
|
3 |
60 |
2 |
40 |
5 (100%) |
|
21 |
60 |
14 |
40 |
35 (100%) |
|
5 |
11 |
39 |
89 |
44 (100%) |
Tabela 5:
de
Assim
Os
(22) As freirasi a
(23)
Em ambos os exemplos, trata-se da supressão da preposição com.
A
(24) É,
O
(25)
Da
Os resultados apresentados revelam a
O alto percentual de apagamento de preposição em construções de
CTs |
|
|
|
|||
nº |
% |
nº |
% |
nº |
% |
|
|
339 |
35% |
509 |
39% |
11 |
25% |
DE |
398 |
40% |
443 |
35% |
22 |
50% |
|
242 |
25% |
340 |
26% |
11 |
25% |
|
979 |
100% |
1292 |
100% |
44 |
100% |
Tabela 6:
comparando-se os
A análise desenvolvida mostra que PB revela aspectos que, segundo Li e Thompson (op. cit.),
a) apresenta
b) codifica
c) não sofre
d) prefere
e) estabelece uma
Em
a) Línguas de
b) Construções de
c) Observa-se no PB, a
d)
As características de língua de tópico presentes no PB sugerem que essa variedade seja descrita como estando mais próxima das línguas orientadas
CALLOU, Dinah; MORAES, João; LEITE, Yonne; KATO, Mary; OLIVEIRA, Célia T. de; COSTA, Elenice; ORSINI, Mônica; RODRIGUES, Violeta. Topicalização e deslocamento à esquerda: sintaxe e prosódia. In: CASTILHO, A. (org.). Gramática do português falado. Vol. III: As abordagens. Campinas: UNICAMP / FAPESP, 1993.
CUNHA, Celso e CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
DUARTE, Inês. A topicalização
DUARTE, Maria Eugênia L. Do
––––––; CYRINO, Sonia M. L.; KATO, Mary. Visible subjects and invisible clitics in brazilian portuguese. In: KATO, M. A. e NEGRÃO, E. V. (orgs). Brazilain Portuguese and the Null Subject. Frankfurt am Main: Vervuert Verlag, 2000, p. 55-73.
GALVES, Charlotte. A
––––––. A
LI,
MATEUS et alii. Gramática da língua portuguesa. Lisboa: Caminho, 2003.
ORSINI, Mônica Tavares. As
PONTES, Eunice. O tópico no português do Brasil. Campinas: Pontes, 1987.
VASCO, Sérgio Leitão. Construções de tópico no Português: as falas brasileira e portuguesa. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ/FL, 1999.
––––––.