CONSIDERAÇÕES SOBRE A Semiótica das culturas,
UMA ciência da interpretação:
IDENTIDADE, inserção cultural,
TRANSCODIFICAÇÕES TRANSCULTURAIS

Cidmar Teodoro Pais (USP e UBC)

 

Introdução

Esta pesquisa estudou, numa abordagem multisciplinar, aspectos dos processos de cognição e das relações de significação, enquanto fenômenos conceptuais e metalingüísticos, conjunto de procedimentos determinantes de intertextualidade, interdiscusividade, transcodificação, face às articulações postuláveis entre semântica cognitiva, semântica de língua e de discurso, sociossemiótica, semiótica das culturas, semiótica da interpretação. São as linguagens que atribuem ao ser humano sua condição humana. A riqueza do homem é a sua diversidade lingüística, cultural, social e histórica. A língua e os seus discursos, juntamente com as semióticas não-verbais, conferem a uma comunidade humana: a sua memória social; a sua consciência histórica; a consciência de sua identidade cultural; a consciência de sua permanência no tempo. Assim, configura-se a semiótica das culturas como uma ciência da interpretação. Examinam-se, então, os processos de inserção cultural segundo os modelos dessa ciência. Considera-se, enfim, a necessidade e/ou conveniência de levar em conta diferentes aspectos da semiótica das culturas, na medida em que se tornam relevantes nas transcodificações transculturais.

 

Cognição e semiose

O processo de produção do conhecimento, articulado ao da produção da significação, como função semiótica, ou, noutras palavras, as relações entre episteme, como projeção do homem sobre os 'objetos do mundo', na concepção aristotélica, como construção do ‘saber sobre o mundo’, e semiose, enquanto produção da significação, ou seja, das designationes que manifestam os designata, recortes culturais, nas diferentes semióticas-objeto, verbais, não-verbais e sincréticas, podem ser mais satisfatoriamente explicados, quando examinados no quadro do percurso gerativo da enunciação. Nosso modelo de percurso gerativo da enunciação de codificação e de decodificação, compreende os patamares da percepção, da conceptualização, da semiologização, da lexemização, da atualização, da semiose, quanto ao fazer persuasivo, do sujeito enunciador; os do reconhecimento da semiótica-objeto, da ressemiotização, da ressemiologização e da reconceptualização, quanto ao fazer interpretativo, do sujeito enunciatário; e as transformações que entre eles se realizam (Pais, 1993, 1997, 1998).

 

Da semiótica das culturas
a uma semiótica da interpretação

O homem distingue-se dos outros animais do planeta justamente por sua diversidade lingüística, cultural, social e histórica; essas características conferem ao homem sua condição humana. Com efeito, uma abordagem puramente biológica mostrar-se-ia claramente insuficiente. Nesse sentido, a história da humanidade corresponde ao processo histórico da cultura, ou antes, das culturas.

Estabelecem-se, pois, o interesse e a necessidade de uma semiótica das culturas, que permita estudar esses processos e essa diversidade. Poder-se-ia dizer, em caráter preliminar, que a semiótica das culturas tem por objeto as culturas humanas e sua diversidade.

Nesses condições, determinada cultura só pode ser caracterizada por oposição às demais, seja as que lhe são contemporâneas, seja as que se situam no passado. Uma comunidade lingüística e sociocultural pode, assim, ser definida por um complexo que compreende uma língua, práticas semióticas não-verbais e sincréticas (ou complexas), que constituem sua macrossemiótica (PAIS, 1982), práticas técnicas, por um ‘saber compartilhado sobre o mundo’, próprio a seus membros, inseridos no fazer social e no eixo da história. Assim, determinada cultura pode ser caracterizada por suas especificidades, perante a imensa diversidade das culturas humanas.

No esforço de caracterização de uma cultura, é necessário compará-la com outras culturas, de modo a detectar as suas especificidades, diante das características de outras culturas. Estabelece-se, por conseguinte, uma tensão dialética entre duas tendências contrárias, a especificidade e a diversidade. Tem-se, pois:

 

Tudo conduz a pensar que integra o ‘saber compartilhado sobre o mundo’ dos membros de uma comunidade humana, o conhecimento, ainda que intuitivo, dessa oposição entre especificidade e diversidade, entre identidade e alteridade (a ‘consciência’ ou o ‘sentimento’ da distinção entre “nós” e “os outros”).

É preciso concordar com Rastier, quando diz:

La mesure de la diversité des cultures a suivi le même chemin de la perception des langues. De fait, avec la découverte de ces des dernières decénnies, de ‘culture animale’, notamment chez les primates, on en vient à penser que l’innovation et sa transmission ne sufisent pas a définir la spécificité des cultures humaines; c’est la diversification et l’autoréflexion des pratiques techniques et sémiotiques qui les distingue... (Rastier e Bouquet, 2002: 5)

De fato, é necessário considerar como características de uma cultura, definidora de identidade x diversidade, em relações às demais, e como parte integrante do ‘saber compartilhado sobre o mundo’ de seus membros a ‘visão do mundo’, o mundo semioticamente construído, o sistema de valores, o sistema de crenças. Desse modo, também, uma comunidade lingüística e sociocultural se carateriza como um complexo conjunto de saberes e valores compartilhados, construídos, reiterados, modificados ao longo do processo histórico. Além disso, uma cultura não é um sistema fechado; ela se forma, se desenvolve, evolui, por vezes desaparece, em função de seus contactos, dos confrontos ou conflitos com outras culturas, e resulta, sempre, a cada momento, de uma história compartilhada (Rastier e Bouquet, 2002: 6).

De outro ângulo, parece lícito considerar uma cultura, também, como um complexo sistema de arquitextos e arquidiscursos das semióticas verbais, não verbais e sincréticas (ou complexas) da comunidade em questão (Rastier, 2000; Pais, 2002a e 2002b).

Nessa perspectiva, a semiótica das culturas torna-se mais eficaz, na medida em que busca fazer, em seus estudos, comparações entre culturas, numa abordagem intercultural ou multicultural, como, por exemplo, o estudo de microssistemas de valores, comparadas as culturas francesa e brasileira (Pais, 1999), ou o mesmo estudo, comparadas as culturas cubana e brasileira (Pais, 2000). Assim, a semiótica das culturas assume o caráter de uma semiótica interpretativa (Rastier e Bouquet, 2002: 4).

Enfim, cada cultura se caracteriza, ainda, por um processo de cognição específico, ou por cognições definidas como específicas, como se viu acima. Daí a concordância com Bouquet:

Dans ce contexte, le paradigme d’une sémiotique de l’interprétation se revèle fédérateur des sciences de la culture qui peuvent être regardées comme les sciences d’une cognition située, au sens où cette cognition est située dans un cadre culturel (...) Comme le paradigme cognitiviste, le paradigme interprétatif doit être tenu pour un point de vue, créant un objet particulier (...) l’objet pluridisciplinaire en sciences humaines (...) l’établissement des possibles rapports réglés entre ces dernières et les sciences cognitives... (Rastier e Bouquet, 2002: 35).

Nesses termos, cabe propor a formalização da figura 2, abaixo.

 

Identidade e alteridade

Um conjunto de conhecimentos ou de sentimentos ou, ainda, certo grau de consciência define o que se costuma chamar de identidade. Trata-se de um conceito que se aplica, ao mesmo tempo, a uma pessoa individualmente considerada, como também a um grupo humano, ou seja, uma comunidade lingüística e sociocultural determinada. Trata-se de um conjunto de características que uma pessoa atribui a si mesma, ou, então, de qualidades que um grupo humano confere a si mesmo.

 

De fato, a identidade é um construto, nos termos do qual uma pessoa se reconhece a si mesma, não obstante o passar dos anos, ou certo grupo se reconhece em sua permanência no eixo da história.

A construção da identidade só é possível na medida em que esta se opõe ao diferente, ou seja, sua construção se faz por oposição à alteridade. Esta se dá no imaginário da pessoa ou do grupo em causa.

Assim, a um conjunto de atributos definidores da identidade, oõe-se necessariamente outro conjunto dos atributos, conferidos pela mesma pessoa ou pelo mesmo grupo, ao que consideram a alteridade.

Nessas condições, identidade e alteridade são dois termos contrários e complementares, que se sustentam em oposição. Estabelece-se, pois, uma tensão dialética entre o eu, individual ou coletivo, e o outro, igualmente individual ou coletivo.

O eu define-se por um conjunto de características tidas como exclusivas, não compartilhadas com o outro; o outro, por sua vez, caracteriza-se por um conjunto de atributos que, de modo nenhum, são compartilhados com o eu. Dessa maneira, o eu afirma-se por oposição ao outro, na medida em que recusa, para si mesmo, os atributos do outro. Resultam dois termos contraditórios aos termos contrários, o não-eu e o não-outro.

É possível, pois, estabelecer um quadrado semiótico. Entretanto, é preciso considerar algumas relações mais complexas. Com efeito, o eu sustenta-se por oposição ao outro, que toma por espelho e por tomar-se, ao mesmo tempo, como o não-outro. Uma relação do mesmo tipo é atribuída ao outro, ao qual se atribuem qualificações do não-eu. Desse modo, tem-se um termo complexo, constituído pela combinação eu x não-outro, que se considerará a dêixis positiva. Tem-se, também, outro termo complexo, formado pela combinação outro x não-eu, tomada como dêixis negativa. À dêixis positiva, chamar-se-á identidade, à dêixis positiva, alteridade. Donde o cotógono semiótico:

 

É lícito indagar sobre quais elementos se fundamenta essa construção da identidade x alteridade. No âmbito de cada pessoa, a resposta é muito complexa e ainda não foi satisfatoriamente alcançada. Exige avanços da psicologia e da psicanálise que talvez se conquistem no futuro.

Contudo, no campo da semiótica das culturas, já é possível vislumbrar algumas respostas. Com efeito, reconhecem-se, no estágio atual das ciências humanas, alguns elementos importantes, em que se baseiam as construções da dentidade x alteridade, nos grupos humanos, ou, mais exatamente, nas comunidades lingüísticas e socioculturais que se reconhecem como idênticas a si mesmas e distintas de outras comunidades.

Reafirmam-se, assim, os importantes conceitos de identidade cultural e de diversidade cultural. A diversidade lingüística, cultural, social e histórica constitui, como sabemos, a grande e multifacetada riqueza que confere aos seres envolvidos a sua condição humana.

Identidade cultural e diversidade cultural são dois temos contrários, que se sustentam em tensão dialética, que se definem um por oposição ao outro.

No que concerne os grupos humanos, o conhecimento ou o sentimento ou certa consciência de uma identidade cultural é, também, uma construção que integra o imaginário dessa coletividade.

Desse modo, constituem essa construção um conjunto importante de complexas relações. Configura-se, pois, um permanente processo de elaboração e reelaboração de uma visão do mundo, ou, mais precisamente, a produção e contínua transformação de um mundo semioticamente construído.

Compreende este uma axiologia, ou, se preferirmos, um sistema de valores compartilhado, um sistema de saberes sobre o ‘mundo’, um sistema de saber-fazer, ou seja, de competências sociais e culturais, um sistema de crenças igualmente compartilhados pelos membros do grupo. Importa acrescentar outro aspecto altamente relevante, as cognições e reconceptualizações específicas do grupo, isto é, a episteme que lhe é própria.

Esse vasto e complexo conjunto, inscrito no imaginário coletivo, é o que permite aos membros do grupo reconhecer-se como integrantes do mesmo e reconhecer, ainda que intuitivamente, a sua identidade cultural. Do mesmo modo, e esse conjunto que permite aos membros do grupo reconhecer que são diferentes dos outros grupos.

Conseqüentemente, uma semiótica das culturas só pode ser mais rigorosa e eficaz, se estudadas várias culturas distintas, opondo-se uma à outra.

 

Dos processos de inserção cultural

Os humanos nascem como seres biológicos, como seres naturais. Inseridos numa comunidade sociocultural, adquirem progressivamente as características de seres sociais, culturais e históricos. Passam assim, a identificar-se com saberes e valores compartilhados pelo grupo, por uma visão de mundo, por um imaginário coletivo. Esses valores e saberes habilitam ao convívio social e conferem aos membros do grupo a sua identidade cultural, a sua memória social, a consciência da sua pertinência ao grupo e de sua continuidade no tempo.

A inserção cultural não se verifica, entretanto, de maneira homogênea e uniforme nas diferentes comunidades e em seus sub-grupos. Ao contrário, verificam-se processos de inserção cultural diferenciados, que revelam, muitas vezes, preconceitos, injustiças e discriminação. Observam-se, então, incoerências quanto aos critérios adotados pelo grupo em questão. Critérios esses que variam segundo as diferentes épocas da história, diferentes regiões, diferentes épocas das camadas sociais.

Por maior que seja a diversidade cultural dos grupos humanos, há certas características que se mostram constantes De fato, em todos os grupos socioculturais a inserção dos membros no conjunto de valores de saberes compartilhados se realiza por meio da educação, formal ou informal. A educação constitui o caminho de acesso aos bens culturais. Define, também, o grau de integração dos indivíduos ao grupo.

No processo histórico, muitas comunidades humanas atingiram, em sua evolução, o estágio que se chama de civilização, caracterizado pelo equilíbrio dinâmico e pela tensão dialética autoridade x liberdade. Noutros termos, dir-se-á que homens livres livremente aceitam certa redução em seu grau de liberdade, para assegurar a todos o mesmo grau de liberdade (Pais, 1993, p. 605-611).

Ocorreu, também, muitas vezes, que, alcançado esse estágio, uma civilização se rompeu em barbárie, caracterizada pela combinação perversa liberdade x força (Pais, 1993, p. 605-611).

Constitui a educação o único processo pelo qual é possível preservar, restaurar ou restabelecer uma civilização, na medida em que pode realizar a reinserção das pessoas no processo histórico de uma cultura. Para tanto, é necessário que a comunidade humana em questão se organize e se sustente permanentemente, segundo os princípios básicos do humanismo, da racionalidade e da civilização: liberdade, igualdade, fraternidade.

 

Das transcodificações tranculturais

Muitas vezes, efetuam-se transcodificações intrassemióticas, como nos processos típicos de metalinguagem e, sobretudo, na conversão de um texto, de um universo de discurso para outro universo de discurso, como, por exemplo, na transformação de um texto técnico-científico em um texto pedagógico. Nesses casos, tem-se transcodificações que se dão dentro dos limites de um sistema sociocultural e de uma ‘mesma’ língua natural. Dir-se-á, então, que se trata de transcodificações intraculturais.

Outras vezes, no entanto, os processos de transcodificação se realizam de uma língua natural, dita ‘de partida’ para outra língua natural, dita “de chegada’, que envolvem duas culturas distintas, com suas ‘visões do mundo’ específicas, caracterizadas por sistemas de valores e saberes, sistemas de crenças, imaginário coletivo diferentes e, mesmo, muito diferentes. Trata-se, pois, de transcodificações intersemióticas e transculturais.

Terminólogos, pesquisadores e especialistas freqüentemente se deparam com a dificuldade de articular dialeticamente duas tendências contrárias, a busca de uma comunicação mais eficaz, em função dos interlocutores, e a necessidade de assegurar, simultaneamente, o respeito à diversidade cultural das diferentes comunidades envolvidas. Em abordagem multisciplinar, importa estudar aspectos dos processos de cognição e de significação, enquanto fenômenos conceptuais e metalingüísticos, procedimentos determinantes de intertextualidade, interdiscusividade, transcodificação, face às articulações entre semântica cognitiva, semântica de língua e de discurso, semiótica das culturas, esta enquanto ciência da interpretação. São as linguagens que atribuem à humanidade sua condição humana.

A riqueza do homem é a sua diversidade lingüística, cultural, social e histórica. Como se sabe, a língua e seus discursos, juntamente com as semióticas não-verbais e complexas, conferem a uma comunidade humana: a sua memória social; a sua consciência histórica; a consciência de sua identidade cultural e de sua permanência no tempo. O processo de produção do conhecimento, a episteme, como construção do ‘saber sobre o mundo’, e a semiose, enquanto produção da significação, das designationes que manifestam os designata, recortes culturais, nas diferentes semióticas-objeto, articulam-se no percurso gerativo da enunciação de codificação e de decodificação, fazer persuasivo e fazer interpretativo, com as transformações que entre eles se realizam. Aprender uma língua é aprender um modo de ‘pensar o mundo’; dá-se o mesmo com as metalinguagens técnico-científicas, seus recortes e axiologia.

Determinada cultura caracteriza-se por oposição às demais, contemporâneas, ou passadas. Define-se, por um complexo que compreende uma língua e práticas semióticas, práticas técnicas, um ‘saber compartilhado sobre o mundo’, próprio a seus membros, inseridos no fazer social e no eixo da história. Caracteriza-se uma cultura por suas especificidades, perante a diversidade das culturas humanas. É necessário considerar como características de uma cultura, definidoras de identidade e de diversidade, em relação às demais, como parte do ‘saber compartilhado sobre o mundo’ de seus membros, o mundo semioticamente construído, o sistema de valores, o sistema de crenças. Uma comunidade lingüística e sociocultural compreende complexo conjunto de saberes e valores compartilhados, construídos, reiterados, modificados no processo histórico. Não é um sistema fechado; forma-se, desenvolve-se, evolui, em contacto com outras culturas. Resulta, sempre, de uma história compartilhada. Complexo sistema de arquitextos e arquidiscursos, sustenta-se num processo de cognição específico. Impõe-se examinar cognições, significações, recortes, axiologias, de uma cultura como também de uma área do saber, imprescindíveis nas transcodificações. Não basta renomear, é preciso reconceptualizar.

Semelhante situação propõe problemas e dificuldades. Sabe-se, com efeito, que as linguagens técnico-científicas são polissêmicas e estão longe de ser puramente denotativas. Alguma ciências, em sua fase atual, se notabilizaram pela abundância e riqueza das metáforas, por exemplo. Estas têm sido usadas, com freqüência, para designar/explicar certos fenômenos ou processos estudados pelas ciências físicas e naturais, pela ecologia, pela astronomia, como, por exemplo, efeito-estufa, buraco negro e assim por diante.

Parece evidente que tais metáforas, comparações, analogias só são compreensíveis se consideradas com os valores que lhes são atribuídos em determinada cultura, se inseridas no ‘saber sobre o mundo’ próprio de uma comunidade sociocultural. Embora existam forças, no processo dito de ‘globalização’ que buscam o apagamento das diferenças, verificam-se ao mesmo tempo, felizmente, resistências que sustentam a diversidade cultural, que asseguram a identidade cultural e a memória social das comunidades.

Assim, não basta ser fluente numa língua ‘de partida’ e numa ‘língua de chegada’. Um tradutor, honesto e bem intencionado, pode ser conduzido a muitos equívocos, se desconhece certos aspectos dos sistemas de valores e saberes compartilhados de cada uma das comunidades socioculturais envolvidas no processo de transcodificação.

Considerem-se alguns exemplos, a título de ilustração.

Em português, o termo gato não se refere apenas ao animal felino doméstico mas serve para designar uma conexão clandestina feita na rede elétrica pública, para captar energias sem pagar a conta. É prática criminosa, comum em favelas e bairros da periferia das grandes metrópoles.

Trata-se de uma metáfora, compreensível dentro da visão cultural brasileira, por certas características de comportamento que se atribuem popularmente aos felinos. É evidente que não se encontrará, em outra língua, de outra cultura, a mesma metáfora ou outra que lhe seja ‘equivalente’. As mais das vezes, o tradutor deverá abandonar a metáfora e contentar-se com uma designação/explicação denotativa.

De fato, a busca de termos ‘equivalentes’ revela-se, com freqüência, insuficiente ou claramente insatisfatória.

Considere-se outro exemplo. Executivo, em português, designa um funcionário ou empregado de uma empresa, de certo nível, destinado a trabalhos de gestão/administração; além disso, o termo executivo aplica-se ao toilete reservado ao alto escalão dos funcionários dos escritórios de uma empresa; o termo designa, por outro lado, um tipo de transporte coletivo, caracterizado por itens de conforto, como poltronas reclináveis, luzes de leitura, ar condicionado, para os passageiros; enfim, executivo serve, ainda, para denominar uma refeição rápida (fast food) mas de bom nível, servido em lanchonetes próximas aos escritórios de empresas.

Tem-se, aqui, denominações de coisas muito diferentes mas que apresentam um traço semântico comum e constante, o <status>.

Esses poucos exemplos servem para ilustrar os problemas que se propõem nas transcodificações transculturais. De fato, a simples busca de termos ‘equivalentes’ aqui é inútil. Para a obtenção de transcodificações não só corretas e eficazes mas, também, suscetíveis de preservar o ‘espírito do texto’ e, até mesmo, sua ‘coloração’, cumpre levar em conta os sistemas de valores e os saberes compartilhados subjacentes ao texto dito ‘de partida’, da cultura de origem, e os sistemas de valores e sabere compartilhados pela comunidade da cultura ‘de chegada’, de maneira a obter ou correspondências ou substituições mais satisfatórias. Exigir-se-á do eventual tradutor um bom conhecimento (vivência) das duas culturas envolvidas, um saber e um saber-fazer cultural nas duas culturas em questão.

Verifica-se, pois, que a semiótica das culturas, enquanto uma ciência da interpretação, permite levantar questões importantes, sempre que seja necessário comparar culturas distintas. Ela pode oferecer subsídios relevantes, para as transcodificações transculturais. Ela favorece, além da qualidade das transcodificações, o respeito à diversidade cultural.


 

Considerações finais

Seria ilusório ou arriscado, no entanto, tentar fundamentar uma semiótica das culturas na superfície discursiva dos textos manifestados que nela se produzem. Uma metodologia mais precisa e rigorosa leva a examinar e a comparar, a partir dos textos manifestados, a estrutura semântica profunda, nível em que se sustentam a axiologia, os sistemas de valores, e a estrutura hiper-profunda, em que se situa a produção cognitiva, a conceptualização, nos discursos de (ao menos) duas culturas distintas.

A compatibilidade dos recortes culturais e a coerência dos ‘modelos mentais’, no nível conceptual, caracterizam uma cultura, na medida em que subjazem aos discursos das semióticas verbais, não-verbais e sincréticas (ou complexas), produzidos no seu interior (Pais, 1993: 333-340). Nesse sentido, parecem ser as ‘isotopias’ conceptuais instrumentos e critérios valiosos, para a constituição de uma semiótica das culturas (Pais, 2005b).

A semiótica das culturas só é possivel como uma semótica interpretativa dos sistemas de valores, em estrutura profunda, e dos ‘modelos mentais’, em estrutura hiper-profunda, subjacentes aos discursos de uma cultura, e sua comparação com os de outras culturas. Para dar conta dessa diversidade cultural e de objetos pluridisciplinares, uma semiótica da interpretação mostra-se mais adequada.

Dessa maneira, a semiótica das culturas, enquanto uma ciência da interpretação, permite levantar questões importantes, sempre que seja desejável comparar culturas distintas. Ela pode oferecer subsídios relevantes, para as transcodificações transculturais. Ela favorece, além da qualidade das transcodificações, o respeito à diversidade cultural.

 


 

Referências

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