As Manifestações dos Neologismos
nas Diferentes Linguagens
Lírian Daniela Martini (UFMG)
O presente trabalho baseia-se, inicialmente, na natureza do neologismo, que se origina no cenário lingüístico como uma necessidade de renovação da língua (cf. Bernardo, 1998: 302) baseada na criatividade léxica dos membros de uma comunidade lingüística. Bernardo (1998) afirma que os neologismos podem ser definidos como urgência constante e periódica de ingresso de novas palavras formadas a partir de processos usuais da língua.
A neologia é um processo dinâmico, que se inicia na sua criação e termina na desneologicidade, recomeçando o processo. Podem-se precisar três aspectos no estudo do nascimento do signo: o primeiro que focaliza o signo como determinante e, ao mesmo tempo, o reflexo da organização social; o segundo refere-se ao momento de sua criação, o lugar concreto em que se dá a seleção que se faz, para se escolher o novo signo, bem como sua aceitabilidade; e o terceiro que mostra o processo de sua desneologização. (Barbosa, 1996: 117).
Conclui-se, de acordo com as palavras de Barbosa, que a origem e a função do signo ligam-se às necessidades sociais do grupo. Uma situação nova cria uma necessidade de uma nova palavra ou atribuição de um significado novo a um signo já existente. Para Barbosa (1996:118), é comum os neologismos tornarem-se signo-símbolo de certas facetas culturais de determinados grupos. Pode-se depreender como exemplo o neologismo “galoucura” formado pela junção de duas palavras morfológicas, “galo” e “loucura”, que vem a ser a principal designação da torcida do Clube Atlético Mineiro que, de acordo com o seu signo-símbolo, apresenta-se como time de fibra capaz de desempenhar todos os esforços para conseguir vencer.
Segundo Lima (2005: 10), as altas freqüências de emprego de termos novos os tornam conhecidos e faz, pouco a pouco, desaparecer o impacto da novidade lexical. A idéia de neologismo vai paulatinamente se esvaziando, até que os vocábulos passam a integrar o conjunto das unidades lexicais de alta freqüência e acontece uma distribuição regular entre os falantes da língua. Para Alves, no que diz respeito à implementação do neologismo em uma comunidade lingüística,
não basta a criação do neologismo para que ele se torne membro integrante do acervo lexical de uma língua. É, na verdade, a comunidade lingüística, pelo uso do elemento neológico ou pela sua não difusão, que decide sobre a integração dessa nova formação do idioma. (Alves, apud Lima, 2005: 11)
Os casos de neologismos criados pelo articulista José Simão, da Folha de São Paulo, constituem evidências para os dizeres de Alves, pois o articulista emprega palavras novas, altamente irreverentes e irônicas, que tornam seus textos críticos e inteligentes, obedecendo aos padrões fonotáticos da língua, mas não se implementam no léxico porque aparecem em contexto bastante específico, fazendo referência a nomes de pessoas que atuam, geralmente, no cenário político do país.
É através dos meios de comunicação de massa e obras literárias, conforme atesta Valente (2002), “que os neologismos recém encontrados encontram lugar para serem difundidos”.
Ao contrário de autores como Alves (2004) e Carvalho (1984), que deram às formas neológicas um tratamento classificatório, mostrarei, no presente trabalho, a utilidade funcional dos neologismos em relação ao tipo de texto em que se encontram veiculados. Explorar-se-á o sentido produzido pelos autores ao criarem novas palavras em diferentes linguagens.
O poema “Caso Pluvioso” de Carlos Drummond de Andrade consiste no entrançamento da função poética da linguagem com os variados tipos de mecanismos formadores de palavras. Os neologismos criados por Drummond iconizam na forma a temática do poema.
O poema se faz com a metáfora de uma figura feminina que vai tomando proporções de chuva na vida do eu-poético. Inicialmente, a chuva-maria era fininha, mas persistente. Comportava-se como chuvisco.
A partir da quinta estrofe, ela vai “chuveirando atroz em seu caminho”. O item léxico “chuveirando”, constituído formalmente por derivação sufixal, não consta no dicionário, mas é uma construção gerundiva e serve para mostrar que antes maria chovia e ela continua desempenhando a mesma função.
Na sexta estrofe, percebe-se que a chuva-maria toma proporções tamanhas que chega a ter conseqüências arrasadoras, já que o eu-poético nela se afunda. Os dois primeiros versos da sexta estrofe, “Chuvadeira maria, chuvadonha/ chuvinhenta, chuvil, pluvimedonha”, são compostos de itens neológicos cujos sufixos descrevem o paulatino aumento do nível da água, que se intensifica até tornar-se uma maria pluvimedonha, responsável por um “sinistro atro chuvido” capaz de submergir continentes. Só mesmo o poder divino consegue fazer com que a chuva-maria cesse.
Outro autor que também cria em seus textos várias possibilidades léxicas é Caetano Veloso. Na canção seguinte, ele procura desautomatizar o conceito que temos de determinadas palavras, oferecendo a elas novas possibilidades de significação através de neologismos de forma e neologismos de sentido (cf. Dubois, 1978). Entende-se por neologismos de forma aqueles que são criados a partir de processos de formação de palavras já conhecidos na língua, tais como: sufixação, prefixação, composição, reduplicação. Os neologismos de sentido são aqueles cujos significantes já existem na língua, mas com sentido diferente do usualmente empregado.
A canção “Outras Palavras” é uma proposta de abandono da linguagem coloquial, puramente referencial, em favor de uma linguagem criativa e altamente poética. Na mensagem trazida pela canção, a matéria que compõe o significante não é inócua em relação ao significado.
Caetano constrói um jogo de linguagem no qual as palavras são sobrepostas umas nas outras através de uma coincidência fonética (neologismo por cruzamento vocabular). Esse mecanismo de formação vocabular implica em uma linguagem que rompe com os padrões usuais de formação de palavras, porque é a partir da junção de palavras morfológicas já conhecidas que se constroem novos sentidos. A maneira pela qual as palavras são empregadas sustenta a temática da canção, que é a proposta de uma nova linguagem.
Um dos efeitos mais inusitados é decorrente da confluência de aspectos opostos numa mesma palavra, caracterizando um neologismo por composição, tal como “guerrapaz” e “homenina”. Esse recurso mostra que na linguagem poética as coisas, objetos e situações podem oscilar entre duas alternativas aparentemente díspares.
O jogo com as palavras de Caetano “rasteia o sentido das coisas, apresentando-as como se tudo fosse novo, porque nova é a forma de combinar as palavras” (Chalhub, 2001: 9).
No verso “quase João Gil Bem muito bem mais barroco como eu”, a forma neológica “João Gil Bem” codifica os signos de maneira o mais singular possível, provocando um efeito de estranhamento no receptor, levando-o a desautomatizar os seus sentidos. Há em uma mesma palavra a alegria de Jorge Bem, a irreverência de Caetano Veloso e o balanço da bossa-nova de João Gilberto.
O verso “Como na palavra palavra a palavra estou em mim” evidencia toda a temática da canção, mostrando que são os efeitos construídos com a palavra que sustentam toda a canção. Há um predomínio da função metalingüística porque, na mensagem da canção, e principalmente no verso citado, é o fator código que se faz referente. A canção é um jogo lúdico com o próprio material de trabalho, a palavra.
Assim como as canções e os poemas, a linguagem publicitária também faz uso dos neologismos para despertar o interesse do consumidor.
Em um texto publicitário que diz respeito a divulgação do novo CD do cantor negro Itamar Assunção, há o emprego da palavra “pretobrás” como uma espécie de “slogan” do CD de Itamar. Percebe-se que o neologismo “pretobrás” constitui um caso de neologismo de forma construído pelo cruzamento do vocábulo “preto” com o nome da indústria patrocinadora do CD, a Petrobrás. O emprego de tal cruzamento é proposital para mostrar que tal indústria apóia o talento de Itamar Assunção. Essa foi a forma encontrada pela Petrobrás para apoiar a negritude no Brasil com o fim do preconceito racial.
Outro tipo de neologia bastante empregada na mídia é aquela em que não ocorre nenhuma alteração formal nos vocábulos já existentes. A esse tipo de neologismo dá-se o nome de neologismo semântico. Em uma tirinha do famoso recruta Zero, temos dois quadrinhos. No primeiro deles, o sargento, deitado em um divã, confidencia a um analista. O analista diz a ele que boa parte dos conflitos que o sargento tem são decorrentes de armazenar os problemas. Em seguida, aparece o segundo quadrinho com a figura do recruta Zero, dizendo que, além do sargento ter amazenado os problemas, ele também armazenou uma caixa inteira de balas de chocolate no dia anterior.
O vocábulo “armazenar” empregado pelo sargento no primeiro quadrinho não constitui forma neológica, já que está no sentido convencional de “guardar”. No entanto, o vocábulo “armazenado”, proferido pelo recruta Zero, constitui forma neológica, já que foi empregado em sentido bem diferente do habitual. “Armazenado” está com sentido de “ter consumido”.
Em nota publicada pela revista Veja, o então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, também construiu neologismos para “explicar” as alterações econômicas no país.
Hipocondria Econômica O ministro Fernando Henrique Cardoso é um médico frustrado. Vive fazendo diagnósticos da situação “inconvivível” da economia: “A inflação deu um soluço” __ 30 de julho “Se a inflação espirra, a gente dá aspirina, para evitar que vire pneumonia” 6 de agosto Veja. São Paulo, Abril, 15.09.93, p. 25 |
Fernando Henrique, ao empregar os vocábulos “soluço” e “espirra”, quer dizer que a inflação aumentou e que este não é um problema grave, já que ele dá “aspirina” à ela, ou seja, toma as medidas econômicas adequadas.
O vocábulo “inconvivível”, empregado pelo jornalista, também não consta no dicionário. Ao contrário de “soluço” e “espirra”, “inconvivível” é um neologismo de forma construído por derivação parassintética. O morfema “-in” atribui ao vocábulo “convivível” uma idéia contrária, ou seja, de não-convívio.
Nos textos poéticos, os neologismos são empregados para iconizarem na forma a temática do poema. Já nas tirinhas, o emprego do neologismo constitui a materialidade lingüística que gera o efeito de humor. O meio publicitário emprega a forma neológica com a finalidade de promover a valorização do produto que veicula.
Percebe-se, ao longo dos exemplos mostrados, que os neologismos manifestam-se na língua como fatores construtores de irreverência dentro do âmbito lingüístico. Apesar de atribuírem novos significados, eles são formalmente construídos por mecanismos já conhecidos no sistema da língua, tais como: prefixação, sufixação, composição, cruzamento vocabular ou até mesmo empréstimos lingüístico.
De modo geral, o emissor de um neologismo tem consciência de que está inovando.
Referências Bibliográficas
Alves, I. M. Neologismo: criação vocabular. São Paulo: Ática, 2004.
Bernardo, K.M. Da Natureza do Neologismo. In: Soares, M.A et Aragão, M.S.S. (Orgs). XVI Jornada de Estudos Lingüísticos. Anais. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará; GELNE, 1999.
Barbosa, M.P. Léxico, produção e criatividade. 3ª ed., São Paulo: Plêiade, 1996.
––––––. Da Neologia à Neologia na Literatura. In: Pires de Oliveira, A. M.P. et Isquerdo, A. N (Orgs.). As Ciências do Léxico: lexicologia, lexicografia, terminologia. 2ª ed., Campo Grande: UFMS, 2001, p. 25-51.
Carvalho, N. O que é neologismo. São Paulo: Braziliense, 1984.
Lima, E. F. Neologismos em Guimarães Rosa. Trabalho Monográfico. Faculdade de Letras da Universidade Vale do Rio Doce/ Governador Valadares – MG, 2005.
Valente, A. A Produtividade Lexical em Diferentes Linguagens. In: Azeredo, J. C. (org). Língua portuguesa em debate: conhecimento e ensino. Petrópolis: Vozes, 2002.
Anexos
CASO PLUVIOSO
A chuva me irritava. Até que um dia
descobri que maria é que chovia.
A chuva era maria. E cada pingo
de maria ensopava o meu domingo.
E meus ossos molhando, me deixava
como terra que a chuva lavra e lava.
Eu era todo barro, sem verdura...
maria, chuvosíssima criatura!
Ela chovia em mim, em cada gesto,
pensamento, desejo, sono, e o resto.
Era chuva fininha e chuva grossa,
matinal e noturna, ativa...Nossa!
Não me chovas, maria, mais que o justo
chuvisco de um momento, apenas susto.
Não me inundes de teu líquido plasma,
não sejas tão aquático fantasma!
Eu lhe dizia em vão – pois que maria
quanto mais eu rogava, mais chovia.
E chuveirando atroz em meu caminho,
o deixava banhado em triste vinho,
que não aquece, pois água de chuva
mosto é de cinza, não de boa uva.
Chuvadeira maria, chuvadonha,
chuvinhenta, chuvil, pluvimedonha!
Eu lhe gritava: Pára! e ela chovendo,
poças dágua gelada ia tecendo
Choveu tanto maria em minha casa
que a correnteza forte criou asa
e um rio se formou, ou mar, não sei,
sei apenas que nele me afundei.
E quanto mais as ondas me levavam,
as fontes de maria mais chuvavam,
de sorte que com pouco, e sem recurso,
as coisas se lançaram no seu curso,
e eis o mundo molhado e sovertido
sob aquele sinistro e atro chuvido.
Os seres mais estranhos se juntando
na mesma aquosa pasta iam clamando
contra essa chuva estúpida e mortal
catarata (jamais houve outra igual).
Anti-petendam cânticos se ouviram.
Que nada! As cordas d’água mais deliram,
e maria, torneira desatada,
mais se dilata em sua chuvarada.
Os navios soçobram. Continentes
já submergem com todos os viventes,
e maria chovendo. Eis que a essa altura,
delida e fluida a humana enfibratura,
e a terra não sofrendo tal chuvência,
comoveu-se a Divina Providência,
e Deus, piedoso e enérgico, bradou:
Não chove mais, maria! – e ela parou.
(Carlos Drummond de Andrade)
OUTRAS PALAVRAS
Nada dessa cica de palavra triste em mim na boca
Travo, trava mãe e papai, alma buena, dicha louca
Neca desse sono de nunca jamais nem never more
Sim, dizer que sim pra Cilu, pra Dedé, pra Dadi e Dó
Crista do desejo o destino deslinda-se em beleza:
Outras palavras
Tudo seu azul, tudo céu, tudo azul e furta-cor
Tudo meu amor, tudo mel, tudo amor e ouro e sol
Na televisão, na palavra, no átimo, no chão
Quero essa mulher solamente pra mim, mais, muito mais
Rima, pra que faz tanto, mas tudo dor, amor e gozo:
Outras palavras
Nem vem que não tem, vem que tem coração, tamanho trem
Como na palavra, palavra, a palavra estou em mim
E fora de mim
Quando você parece que não dá
Você diz que diz em silêncio o que eu não desejo ouvir
Tem me feito muito infeliz mas agora minha filha:
Outras palavras
Quase João, Gil, Ben, muito bem mas barroco como eu
Cérebro, máquina, palavras, sentidos, corações
Hiperestesia, Buarque, voilá, tu sais de cor
Tinjo-me romântico mas sou vadio computador
Só que sofri tanto que grita porém daqui pra a frente:
Outras palavras
Parafins, gatins, alphaluz, sexonhei da guerrapaz
Ouraxé, palávoras, driz, okê, cris, espacial
Projeitinho, imanso, ciumortevida, vivavid
Lambetelho, frúturo, orgasmaravalha-me Logun
Homenina nel paraís de felicidadania:
Outras palavras
(Caetano Veloso)