MEMÓRIA E GEOLINGÜÍSTICA
O QUESTIONÁRIO SEMÂNTICO-LEXICAL

Irenilde Pereira dos Santos (USP)

 

Preliminares

Os falantes/ouvintes, enquanto membros de determinadas comunidades lingüísticas e segmentos sociais, em suas relações intersubjetivas, servem-se da memória coletiva em suas interações. Por conseguinte, além da variação diatópica, a leitura atenta dos atlas regionais e estudos lingüísticos publicados no Brasil, na últimas décadas, revela a presença da presença da memória coletiva na fala dos sujeitos em vários momentos.

O presente trabalho busca mostrar aspectos do registro da memória coletiva em atlas regionais e estudos geolingüisticos brasileiros, publicados nas últimas décadas. Dada a amplitude do tema, concentra-se tão-somente no componente semântico-lexical, voltando-se, então, para o exame do questionário semântico-lexical, instrumento largamente utilizado na coleta de dados semântico-lexicais em Geolingüística. Enfoca as diversas possibilidades de designações, as quais correspondem às ocorrências atribuídas aos falantes/ouvintes de uma dada comunidade lingüística. Essas ocorrências, relacionadas a cada pergunta, item ou questão, encontram-se visualizadas em listas e cartas. Acrescentam-se informações relativas ao uso de uma determinada forma e/ou o contexto de fala, presentes em alguns trabalhos.

 

Memória e Geolingüística: intersecções

A memória constitui-se em elemento essencial para o conhecimento e a interpretação do mundo/espaço referencial ou imaginário.

Segundo Aristóteles, existe a mnemê – faculdade de conservar o passado – e a mamnesi – faculdade de evocar voluntariamente esse passado. Quer se trate de mnemê, quer se trate de mamnesi, na medida em que conserva ou evoca dados do passado, a memória se reporta a um conjunto de funções psíquicas que permitem ao homem atualizar impressões e informações passadas ou que ele representa como passadas. Entretanto, a memória não consiste em um processo mecânico que permite a atualização ou recuperação automática dos dados do passado; ela aponta efetivamente para a ordenação e releitura desses dados a partir do presente. Nessa perspectiva, destaca-se inicialmente o papel da atividade cerebral no processo. A esse respeito, Changeux (apud Le Goff, 2003: 420) salienta que “os processos de releitura podem fazer intervir centros nervosos complexos especializados na fixação do percurso mnésico”. Associado à intervenção dos centros nervosos complexos, encontra-se o papel desempenhado pela inteligência, com relação aos aspectos ativo e perceptivo das condutas perceptivo-cognitivas (Scandia, apud Le Goff, 2003: 420). A esses, acrescentam-se os aspectos ideológicos, responsáveis pela ordenação e releitura dos fatos de acordo com convenções de um determinado universo antropocultural. Desse modo, os aspectos biológicos, psicológicos e ideológicos, ao mesmo tempo em que expressam o dinamismo dos fenômenos mnésicos, tornam possível a aproximação da memória com o mundo/espaço referencial ou imaginário e se manifestam na interação humana. Le Goff, ao frisar que Pierre Janet considera ser o “comportamento narrativo” o ato mnemônico fundamental, assevera “que (o comportamento narrativo) se caracteriza antes de mais nada por sua função social, pois se trata de comunicação a outrem de uma informação, na ausência do acontecimento ou do objeto que constitui o seu motivo” (2003: 421). Os diferentes interlocutores, como membros de uma determinada comunidade lingüística, quer como falantes, quer como ouvintes, recorrem à memória de sua comunidade e dela fazem uso, na interação, para produzir atos de fala e interpretá-los a todo instante. Com efeito, enquanto fenômeno que se produz no interior de uma comunidade, configura-se como memória coletiva. Como elemento integrante de uma língua, o léxico se atualiza a partir da combinatória da seleção dos fatos da memória coletiva com os diferentes modos de apreensão do mundo/espaço referencial ou imaginário, variando de comunidade a comunidade.

Na Geolingüística, busca-se examinar o leque de designações que os falantes/ouvintes atribuem ao mundo/espaço referencial ou imaginário. Para investigar quais são essas designações, utiliza-se o questionário semântico-lexical ([1]), doravante denominado QSL, que se constitui em um conjunto de questões de cunho descritivo que visam a indagar a designação atribuída pelo entrevistado, sujeito da pesquisa, a um determinado objeto do mundo/espaço referencial ou imaginário. Dito em outras palavras, existe uma pergunta padrão, por exemplo: “Como chamam aqui... (descrição do objeto do mundo/espaço referencial ou imaginário)” para se chegar à designação utilizada pelos falantes/ouvintes num determinado ponto ([2]). Segmentado em domínios ([3]), é aplicado numa entrevista em que, comumente, o entrevistador, muitas vezes o pesquisador, e o entrevistado, o sujeito da pesquisa, não tiveram um contato anterior, isto é, pouco se conhecem. Há, portanto, pouca familiaridade entre ambos, podendo-se perceber um grau de interação que varia em função da espontaneidade dos interlocutores. Como há um roteiro básico (o questionário), assegura-se uma certa uniformidade ao conjunto, entretanto, elementos vários, relativos aos fatores contextuais e interacionais, acabam modificando o padrão inicial. Tal fato, que poderia configurar-se como um problema em outro tipo de situação, aqui possibilita o exame da riqueza da variação diatópica, de alguns elementos da manifestação presentes na relação intersubjetiva e de diversos fatos da memória coletiva que afloram nas entrevistas.

As respostas emitidas pelos entrevistados constituem, em geral, lexemas ou frases breves. Ocasionalmente, há diálogos mais consistentes, em que o entrevistador indaga outra forma de falar, um dado complementar ou uma determinada explicação. Embora possa haver essa variedade, na maioria dos trabalhos de Geolingüística, as designações que constituem as respostas a uma dada questão são o alvo da pesquisa. Conseqüentemente, são destacadas e dispostas em listas de palavras e, mais recentemente, em tabelas. Por fim, servem como base para a elaboração das cartas lexicais, que constituem a base dos atlas lingüísticos. Como a finalidade dos atlas regionais e estudos geolingüísticos se constitui em mostrar a variação diatópica, no caso em pauta a lexical, ou seja, a distribuição geográfica do léxico num determinado espaço físico, os estudos geolingüísticos enfocam basicamente as designações. O contexto ou a reprodução de diálogos ou mesmo observações do pesquisador, quando presentes, aparecem sob a forma de notas às cartas. Embora essas notas não estejam incorporadas aos atlas, têm merecido alguns estudos posteriores por parte de alguns pesquisadores, entretanto, são as respostas, sob a forma de designações, que têm motivado a maior parte dos estudos geolingüísticos nas últimas décadas, sobretudo atlas lingüísticos, monografias dialetais, artigos e teses.

 

Método e procedimentos

No presente trabalho, dado o interesse de se abordar o componente semântico-lexical em atlas regionais e estudos geolingüísticos brasileiros, examinar-se-á uma única questão no questionário semântico-lexical de quatro atlas lingüísticos brasileiros: o Atlas Prévio dos Falares Baianos – APFB, publicado em 1963; o Esboço do Atlas Lingüístico de Minas Gerais – EALMG, publicado em 1977; o Atlas Lingüístico da Paraíba – ALPB, publicado em 1985; e o Atlas Lingüístico do Paraná – ALPR, publicado em 1994.

Como os atlas regionais brasileiros publicados não usaram um questionário semântico-lexical padrão, a seguir fornecem-se informações sobre o questionário semântico-lexical utilizado em cada um dos quatro atlas citados acima.

Para o Atlas Prévio dos Falares Baianos – APFB, foi inicialmente elaborado um questionário constituído de 3000 perguntas, dividido em quatro áreas semânticas: Terra, Vegetais, Homem e Animais. A partir da análise das respostas fornecidas pelos sujeitos em quatro localidades, estudo que proporcionou o estudo detalhado de várias lexias, segundo a equipe do APFB, elaborou-se o Extrato de Questionário (EQ), composto de 182 perguntas. Nele, as questões, distribuídas segundo sua proximidade semântica e formal, foram aplicadas mediante o método de formulação indireta (Cardoso, 1996: 7-8).

O segundo atlas, o Esboço do Atlas Lingüístico de Minas Gerais – EALMG, constituiu-se em pesquisa direta, in loco, e contou com um questionário piloto e vários alternativos, segundo Zagari (Cardoso, 1996: 14).

O terceiro, o Atlas Lingüístico da Paraíba – ALPB, contou com um questionário publicado pela Editora da Universidade Federal da Paraíba em 1980. Segundo Aragão, esse resulta do aperfeiçoamento de três versões anteriores testadas e reformuladas. O questionário foi dividido em duas partes: uma geral, com 289 questões; e uma específica, com 588 questões. Enquanto a geral compreende os seguintes campos semânticos: a terra, o homem, a família, habitação e utensílios domésticos, aves e animais, plantação e atividades sociais; a parte específica remete aos cinco principais produtos agrícolas da Paraíba: mandioca, cana de açúcar, agave, algodão e abacaxi (Cardoso, 1996: 22).

O quarto, o Atlas Lingüístico do Paraná – ALPR, utilizou um questionário de 318 questões do tipo descritivo, diretas ou indiretas, seis questões narrativas sobre as principais crendices populares paranaenses: boitatá, caipora, lobisomem, saci, mula-sem-cabeça e curupira, e a última, de acordo com a proposta laboviana, uma narrativa de experiência pessoal (situação de perigo ou fato triste). Segundo a autora, as narrativas permitiram a composição de um corpus significativo, atualmente um banco de dados, para estudos folclóricos, morfossintáticos, do discurso e da estrutura da narrativa, entre outros. As questões descritivas abrangeram os campos semânticos do Homem e da Terra, compreendendo os subcampos: a) natureza, fenômenos atmosféricos, astros, tempo, b) flora: árvore, frutos; c) plantas medicinais; d) fauna: ave, insetos, outros animais, e) partes do corpo, funções, doenças, f) vestuário e calçados, g) agricultura, instrumentos agrícolas, h) brinquedos e jogos infantis. A autora utilizou o seguinte procedimento na entrevista: após a primeira resposta a determinados itens lexicais, indagava por um outro nome, ou nome antigo para o mesmo referente, buscando a recuperação de itens lexicais do vocabulário passivo do sujeito, uma vez que, nas primeiras entrevistas, observara que as formas não padrão, populares, regionais, ou arcaicas eram preteridas ou tratadas como erro pelos próprios sujeitos (Cardoso, 1996: 45).

Para o presente trabalho, selecionou-se a questão que focaliza as designações de “estrela cadente”, uma das poucas que aparecem nos quatro atlas. Como as formulações das questões nos diversos atlas são diferentes, recorreu-se à formulação apresentada no Questionário semântico-lexical proposto pelo Comitê Nacional do Projeto AliB. Corresponde à questão de n. 31 – “De noite, muitas vezes pode-se observar uma estrela que se desloca no céu, assim (mímica) e faz um risco de luz. Como chamam isso?” (ALiB, 2001, p. 23). Além de estrela cadente, o ALiB indica estrela filante, meteoro e zelação como respostas prováveis. Complementou-se com a questão n. 32, após verificar que, ao retomar estrela cadente em sua formulação, de certa forma abordava o tema – “E quando se vê uma _____ (cf. item 31), como é que se diz? Identificar os verbos usados para expressar o movimento da estrela cadente. (ALiB, 2001: 23).

 

Análise dos dados

Como já se observou, examinaram-se todas as respostas/ocorrências, denominadas designações, quer fossem lexemas, quer fossem frases, acrescentando-se as notas e observações do pesquisador quando as havia. Elaborou-se, com base nas designações que serviram de base para a elaboração das cartas desses atlas, uma tabela resumitiva da distribuição das várias respostas.

 

ATLAS LINGÜÍSTICOS BRASILEIROS

 

APFB

ALPB

EALMG

ALPR

 

DESIGNAÇÕES

BAHIA

PARAÍBA

MINAS

GERAIS

PARANÁ

TOTAL

Planeta

 

X

X

X

3

Zelação

X

X

X

 

3

Estrela cadente

 

X

X

 

2

Satélite

 

 

X

X

2

Papa-ceia

 

X

X

 

2

Estrela-de-rabo

 

 

X

X

2

Diamante

 

 

X

X

2

Cometa

 

 

X

X

2

Viração

 

X

 

 

1

Rabo-de-fogo

 

 

 

X

1

Rabisca

 

X

 

 

1

Mercúrio

 

X

 

 

1

Mão-do-ouro

 

 

X

 

1

Mão-de-ouro

 

 

 

X

1

Estrela-da-guia

 

 

 

X

1

Estrela se mudando

 

X

 

 

1

Estrela mariana

 

X

 

 

1

Estrela d’alva

 

X

 

 

1

Elevação

 

X

 

 

1

Velação

X

 

 

 

1

Deus te abrande

 

X

 

 

1

Barca

 

X

 

 

1

Aparelho

 

 

 

X

1

Na tabela acima, as várias possibilidades de designações de um atlas correspondem às ocorrências atribuídas aos falantes/ouvintes de uma dada comunidade lingüística num certo momento, no caso em questão de um estado brasileiro numa determinada época ou etapa sincrônica. Dito em outras palavras, o conjunto das designações de cada atlas constitui-se no registro de uma comunidade lingüística num determinado momento. Trata-se de um fragmento da memória coletiva de um estado e do País.

Um estudo mais aprofundado permite apontar dois aspectos da memória coletiva que emergem nos atlas.

O primeiro aspecto se reporta à atualização do léxico na interação lingüística. Na medida em que se efetiva o intercâmbio lingüístico, processa-se a atualização dos sememas das designações, ocorrendo não apenas mudanças no estatuto de seus semas, como também o uso de determinadas designações. A esse respeito, convém atentar para alguns fatos.

Nota-se que as designações encontradas em três dos quatro atlas são planeta e zelação. Enquanto a primeira remete à relação que os falantes/ouvintes estabelecem entre estrela cadente e outro corpo celeste – planeta –, zelação é a designação de freqüência mais elevada em algumas regiões do País, sobretudo no Nordeste. Esse fato é atestado em Houaiss (2003), Aurélio (1999) e Mourão (1987) que o registram como regionalismo referente ao nordeste do Brasil.

Já estrela cadente aparece nos quatro atlas como título da carta; entretanto, às vezes, não figura na carta. Esse é o caso do APFB e do ALPR. Neste último, a autora observa no verso da carta 13, denominada “Estrela cadente (designações para)” – “Dada a diversidade de designações para este fenômeno natural (...), apresentando-se nesta carta 13 os nomes mais usados pelos informantes ao designarem tal estrela”.

A seguir, observa-se que, na tabela, não se encontra meteoro que, nos dicionários gerais de língua portuguesa e nos de especialidade, constitui-se em remissiva do fenômeno natural estrela cadente. Em Borba (2002: 647), lê-se – “(...) à noite, deixa, por alguns instantes, um rastro luminoso, dando a impressão de uma estrela que cai”. Trata-se de “um fenômeno luminoso que ocorre na atmosfera terrestre, proveniente do atrito de um meteoróide, com os gases da atmosfera terrestre” (Mourão, 1987: 529). Segundo Monkhouse (1978: 301), “a luminosidade se produz a uma altura de 110 a 150 km, desaparecendo por volta dos 90 km. Se não desaparecer por completo, chega à superfície sob a forma de um meteorito”.

A partir dessas acepções, é possível incluir estrela cadente no domínio dos fenômenos que ocorrem na atmosfera terrestre entre os taxemas de natureza óptica ou acústica. Ao mesmo tempo, essas acepções indicam semas inerentes ([4]) do semema de estrela cadente, dentre os quais se destacam:

i)       fenômeno luminoso que ocorre na atmosfera terrestre;

ii)      origina-se do atrito de um meteoróide com os gases da atmosfera terrestre;

iii)    passa a ser incandescente e visível ao aquecer-se por fricção com a atmosfera terrestre;

iv)    luminosidade produzida a uma altura de 110 a 150 km, desaparecendo por volta dos 80 km.

Nos quatro atlas, no semema de estrela cadente, bem como nos das demais designações, ao lado dos semas inerentes, encontram-se outros semas subjacentes que se atualizam na dinâmica do discurso. Esses semas advêm da restrição, desvio ou ampliação do semema do percurso até a fala. Alguns desses empregos são oriundos de crenças, valores, mitos, lendas e superstições de um segmento social que passam a ser usados na relação intersubjetiva num determinado espaço físico. Em suma, aos semas inerentes, próprios do domínio fenômenos atmosféricos, acrescentam-se outros semas relacionados, possíveis e passíveis de atualização, por causa das virtualidades presentes no semema de estrela cadente. São os semas aferentes. Muitos resultam de interpretações feitas pelos seres humanos ao longo dos tempos. Esses fatos, perfeitamente normais na interação, conduzem a novas interpretações das respostas à questão analisada e à compreensão do semema de estrela cadente e dos lexemas relacionados.

Desde os primórdios da humanidade, há inúmeras crenças relativas ao poder de alguns fenômenos da natureza, presentes no imaginário popular, que mereceram não poucos estudos por parte de pesquisadores de várias áreas do conhecimento. Com respeito à estrela cadente, há diversas crenças, superstições e lendas relatadas por Mozzani (1996: 682-684) e Cascudo (1972: 359-360).

Na análise dos quatro atlas, a interpretação mais marcante é o poder maligno ou benigno exercido pelo fenômeno. A face maligna pode ser vista na associação de estrela cadente com morte e mau agouro. Segundo Mozzani (idem), para os antigos, a estrela cadente era sinal de mau agouro, pois anunciaria a morte, desgraças ou graves acontecimentos. No século III na França, dizia-se que o aparecimento de uma estrela seria o anúncio da morte de um amigo, pois se acreditava que cada um teria uma estrela no céu que cairia tão logo a pessoa viesse a falecer. A direção do astro indicaria o lugar do falecimento. A fala de um dos sujeitos do ALPR exemplifica essa crença exposta por Mozzani:

...quando a gente vê a faísca da estrela que vai assim por rumo forte (...) Naquele lugar, daquele lugar a pessoa vai morê. Esse não sabe o que que é, mais tenho notado por cando (=quando) a minha mãe, ela faleceu, um irmão meu depois. Ela vai pro lado do cimitério. A gente sabe onde a pessoa ta doente, onde a gente, cando, onde, (a) quela estrela vai direto pro cimitério. (ALPR, ponto 61, sujeito A).

A estrela cadente pode estar associada à morte de pessoas que morreram em pecado ou de morte violenta. Nesses casos, precisam de oração, daí o hábito de benzer-se três vezes antes do seu desaparecimento da estrela cadente.

Ainda em relação à morte, a estrela cadente pode anunciar a salvação de uma alma, isto é, sua passagem do purgatório ao paraíso. Cascudo fala dessa crença – “Toda vez que corre uma estrela, uma alma entra no céu.”

Também é possível apontar um segundo aspecto da memória coletiva, presente na fala de sujeitos do ALPR, na medida em que evocam elementos da fala de pessoas e/ou fatos do passado:

(...) ‘do tempo antigo, diz que é uma alma que salva do purgatório, então a gente não deve comenta com ninguém, quando a gente vê’. Perguntada pelo motivo: ‘porque ali é um mistério, né’. (ALPR, ponto 8, sujeito A) (grifos nossos)

(...) minha mãe sempre dizia que num presta a gente olhá esa estrela é uma alma que se salva, minha mãe sem(pre) dizia, agora não sei (...) minha mãe dizia que não era pa conta pra ninguém “(...) uma alma que se salvava.. (ALPR, ponto 48, sujeito A) (grifos nossos)

Segundo um dos sujeitos do ALPR, há uma maneira de se anular o efeito nocivo da estrela cadente:

Sobre as crendices: ‘custume nosso em casa, quando caía, os pais falam pra pegá quarqué coisa que ta na frente e põe debaxo do travessero, então nós pega(va), outro dia o pauzinho [estava] lá e nada (a)contecia’. (ALPR, ponto 39, sujeito B) (grifos nossos)

Além de morte e mau agouro, a estrela cadente pode trazer desgraça e confusão. É o que se observa na fala de sujeitos do ALPR:

Sobre crendices registrou: ‘na hora a gente não conta, não presta contá, sabe? Meu pai dizia que não presta, diz que muitas veiz [dá] um fuxico, uma confusão, mas o povo de hoje, não sabe escondê, na mesma hora, ele conta’. (ALPR, 23, sujeito A) (grifos nossos)

A vertente benigna da estrela cadente revela-se no poder que ela tem de possibilitar a realização de desejos à sua passagem. Segundo Cascudo (idem) uma superstição bastante difundida na Europa diz que “A passagem do aerólito, luminoso pelo atrito, concederá o que se pede, desde que o desejo seja enunciado enquanto durar o clarão.” Mozzani (idem) reporta-se à mesma superstição.

Observa-se uma crença de que a estrela cadente, qualquer que seja a designação – diamante (EALMG e ALPR), mãe de ouro (ALPR)/mãe-do-ouro (EALMG), estrela-do-rabo – traz coisas boas, desde que sua passagem seja mantida em segredo. Alguns afirmam que ela traz sorte:

(...) ‘pois, eu sempre contava pas criança... dizia: ói lá caiu uma... dizia assim que era diamante, que [= porque] nos tempo de ant:igo, nó(s) dizia que era diamante, que não podia contá pros oto, mais [= mas] a gente, né, abusava, né, abusava’. (ALPR, ponto 37, sujeito A). (grifos nossos)

(...) ‘eles falaram já quando corre aquela estrela (vo) ce não conta pra ninguém que às veiz é um negócio que a gente ta pra faze, aquilo chamava sorte pra pessoa (...)’. (ALPR, ponto 50, sujeito B) (grifos nossos)

 

Considerações finais

Na Geolingüística, as várias designações de um atlas, na medida em que correspondem às ocorrências atribuídas aos falantes/ouvintes de uma dada comunidade lingüística numa determinada época ou etapa sincrônica, constituem o registro dessa comunidade num certo momento. Não se trata, portanto, de uma listagem pura e simples de itens lexicais, de acordo com os critérios de distribuição específica e freqüência elevada, mas de um conjunto ordenado das designações relativas a uma determinada localidade. Trata-se de um fragmento da memória coletiva que se manifesta sob dois aspectos. O primeiro aspecto se reporta à atualização do léxico na interação lingüística. Na medida em que se efetiva o intercâmbio lingüístico, no momento presente, processa-se a atualização dos sememas das designações, ocorrendo não apenas mudanças no estatuto de seus semas, inerentes versus aferentes, como também ao emprego e uso de certas designações. O segundo aspecto, também relativo à interação, revela-se na fala dos sujeitos que contém evocações à fala de outras pessoas e/ou a fatos do passado.

 

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[1] – Desde o surgimento da Geolingüística, o questionário tem sido o instrumento utilizado para a coleta de dados. Há vários tipos de questionário, selecionados de acordo com o nível lingüístico que se quer examinar – questionário fonético-fonológico, semântico-lexical e outros.

[2] – Em Geolingüística, ponto é a denominação de localidade.

[3] – Domínio é o grupo de taxemas que, por sua vez, são classes mínimas de sememas, no interior das quais se definem seus semantemas. Ex.: alimentação (Rastier, 1987: 274 e 276).

[4] Segundo Rastier (1987: 44), denominam-se semas inerentes aqueles que se caracterizam como denotativos, distintivos, definitórios e universais e provêm do sistema funcional da língua.