Questionando
a Dissolução do Conceito de Item Lexical

Zinda Vasconcellos (UERJ)

 

O que está na raiz do problema considerado é o fato de que existem, na literatura lingüística, diferentes conceitos de item lexical, baseados em critérios de decisão diferentes, e de que os “produtos” do uso de cada um desses critérios não necessariamente coincidem com os resultantes do uso dos outros critérios. Daí o dilema: quando se consideram todos os critérios simultaneamente, se chega a resultados contraditórios; mas, por outro lado, o uso exclusivo de qualquer um desses critérios leva a decisões que parecem absurdas à intuição (desenvolverei isso melhor daqui a pouco).

O tipo de “solução” que critico para o problema dos itens lexicais foi tomada por dois autores americanos, Di Suillo & Williams [1987] (que doravante serão aqui denominados de S&W), que propuseram a substituição do conceito de item lexical pelos conceitos de objeto morfológico, átomo sintático e listema: objetos morfológicos seriam os produtos das regras morfológicas da língua, flexionais ou de formação de palavras; átomos sintáticos seriam as unidades que ocupam uma única posição na estrutura sintática, o que significa que, mesmo que elas tenham estrutura interna, essa estrutura será invisível para a operação dos processos sintáticos[1]; listemas, finalmente, seriam unidades já “prontas”, listadas no léxico mental dos falantes, antes da combinação “on line” de itens lexicais que é feita normalmente no discurso pela operação dos processos sintáticos; eles poderiam ser formados de vários vocábulos já independentemente existentes na língua, que no entanto agissem “como um todo” sob algum aspecto, como acontece normalmente com as expressões idiomáticas, e com outros tipos de itens lexicais multivocabulares[2].

Para S&W os listemas não teriam nenhuma relevância gramatical, ao contrário do que pensam outros autores, como por ex. Jackendoff [1997], para quem o critério da listabilidade é suficiente para garantir que algo seja um item lexical, o que o leva a considerar que qualquer conjunto de vocábulos que seja conhecido pelos falantes  até mesmo textos inteiros, como poemas que se saiba de cor  seria um item lexical.

O que é um dos casos de decisões absurdas à intuição que mencionei antes, quando falei dos problemas que o uso de um critério de definição único pode criar. Há outros casos disso, decorrentes da escolha de outros critérios. O critério da atomicidade sintática, por exemplo, que na prática é o que realmente importa para S&W, não só impede que sejam considerados como itens lexicais a maioria dos candidatos a itens lexicais multivocabulares interessantes, como as expressões idiomáticas e os outros casos citados na nota 33, mas exclui até mesmo algumas formações morfológicas univocabulares banais, como, no Português, as formas verbais de Futuro do Presente e do Pretérito do Indicativo, e os compostos em –mente[3]. Nem o próprio critério semântico, a meu ver o principal para a determinação dos itens lexicais, pode ser usado isoladamente, não tanto pelo caráter vago e impreciso que lhe é normalmente imputado, mas por causa da virtual impossibilidade de traçar, apenas por meio dele, limites claros entre diferentes palavras homônimas e diversas acepções de uma mesma palavra polissêmica[4].

Voltando à questão da dissolução do conceito de itens lexicais, que é o tema principal deste artigo, entre nós uma proposta desse tipo foi oferecida em Perini [1999], que sugeriu a substituição do conceito de item lexical unificado por tantos tipos de unidades quantos sejam os tipos de propriedades  fonológicas, morfológicas, sintáticas, semânticas, etc.  a serem consideradas na descrição lingüística.

Ele só não parece considerar a “listabilidade” como uma dessas propriedades, porque, na sua visão, a gramática estaria sempre estabelecendo correspondências entre esses vários tipos de unidades postuladas, correspondências que nem precisariam ser biunívocas, entre uma unidade de um tipo com apenas uma dos outros tipos, do que resulta que os itens lexicais propriamente ditos, listáveis a priori com dada forma, dado sentido e dada classe gramatical, simplesmente não existiriam, seriam meras ilusões dos falantes.

Isso me parece completamente anti-intuitivo.

Sapir já mostrou há bastante tempo que, ao passo que os falantes nem sempre têm consciência dos morfemas da sua língua, eles costumam ter consciência das palavras, que são unidades lingüísticas com propriedades concretas, fonológicas, morfológicas, sintáticas e semânticas, que normalmente vêm integradas entre si, propriedades essas que são conhecidas pelos falantes. E, salvo em alguns casos limítrofes, os falantes em geral não têm problemas em reconhecer e delimitar as palavras na frase, os lingüistas é que não conseguem determinar os critérios que permitem esse reconhecimento. A questão a ser resolvida é exatamente a de ver em que circunstâncias as diversas propriedades típicas dos itens lexicais podem se dissociar umas das outras. Separá-las arbitrariamente como caracterizadoras de unidades não relacionadas entre si é criar uma ficção teórica.

O que proponho neste artigo como solução para o problema da definição dos itens lexicais é o reconhecimento de que há diversos “graus de lexicalidade”, e de que o conceito de item lexical funciona como uma categoria radial: os membros “prototípicos” da categoria apresentariam todas as propriedades dos itens lexicais tradicionalmente citadas, mas haveria membros “mais marginais”, que só teriam algumas dessas propriedades.

Por essa visão, os itens lexicais prototípicos teriam todas as propriedades citadas a seguir.

a) Do ponto de vista fonológico

O item lexical prototípico é dotado de um significante[5], ou, no caso das ditas “palavras variáveis”, de um conjunto de significantes relacionados entre si pelas regras flexionais da língua  que a Gramática Tradicional chama de “formas da mesma palavra”, que podemos chamar de vocábulos, para distingui-las da própria palavra, que é uma unidade mais abstrata, não definível predominantemente por critérios fonológicos[6]. Além disso, cada uma dessas formas tipicamente corresponde a uma única palavra fonológica.[7]

b) Do ponto de vista morfológico[8]

O item lexical prototípico tem uma classe de palavras dada e se manifesta por meio de vocábulos formados por uma única raiz, acrescida ou não de vogais temáticas e de morfemas derivacionais e flexionais  isso porque os compostos, e itens lexicais formados por outros tipos de processos morfológicos “menores”, não são tão regulares, tão potencialmente previsíveis pela morfologia da língua, quanto os derivados, embora também haja regularidades gramaticais que agem na sua formação.

c) Do ponto de vista sintático

O item lexical prototípico apresenta as propriedades de atomicidade sintática e de coesão estrutural, o que significa que ocupa uma única posição na estrutura sintática[9] e que não é “penetrável” à operação de processos sintáticos, e, em conseqüência, caso ele tenha estrutura interna, que “a ligação” entre as suas partes componentes não pode ser rompida pela omissão de nenhuma delas, nem pela troca da sua ordem ou pela inserção de nenhum outro elemento entre elas.

d) Do ponto de vista semântico

Qualquer item lexical, não só os prototípicos, tem um significado (representa algo do mundo externo ou, no caso das palavras gramaticais, exerce uma função gramatical definida)[10] que lhe é próprio, e de algum modo diferente do significado de qualquer outro item lexical da língua[11].

e) Do ponto de vista do conhecimento do falante

O item lexical prototípico é uma unidade “listada”, conhecida a priori pelos falantes antes do seu uso no discurso. Mesmo quando ele é formado de vários vocábulos independentemente existentes na língua, o conjunto é reconhecido pelos falantes como uma unidade a mais, sintática ou semanticamente diferente da que resultaria da mera combinação sintática dos vocábulos componentes[12].

Segundo as concepções aqui defendidas, apenas o critério semântico seria necessário, no sentido lógico desse adjetivo. No meu entender, ele subjaz quer aos critérios de coesão estrutural e autonomia sintática quer ao de listabilidade. A coesão estrutural e a autonomia sintática de um dado complexo mórfico são conseqüências do seu uso unitário para realizar um dado ato de denominação ou uma dada função gramatical. No caso dos itens lexicais multivocabulares, tais propriedades resultam de um processo de consolidação que ocorre no tempo, donde o caráter sempre potencialmente gradual da coesão e da autonomia adquiridas. E é a repetição no uso desse ato de denominação ou dessa função gramatical que provoca a “cristalização” de uma nova unidade enquanto item listado no léxico mental dos falantes, e sua difusão pelo léxico de um número cada vez maior de falantes[13].

Pois, na verdade, admitir “graus de lexicalidade” significa aceitar uma visão dinâmica do Léxico, admitir que, em certos casos, opere um processo de lexicalização que transforme o que, no início, seria um conjunto de unidades lingüísticas separadas, num item lexical único, o qual venha a adquirir, com o tempo, e como resultado do seu uso efetivo no discurso, coesão estrutural e atomicidade sintática, e até, no limite, a sofrer contrações na sua forma original de modo a vir a corresponder a uma única palavra fonológica  ou seja, a apresentar um número progressivamente maior das propriedades caracterizadoras dos itens lexicais.

Essa visão permite a aceitação de critérios para definir a lexicalidade, mas não de critérios absolutos, que possam ser usados como testes.

 

BIBLIOGRAFIA

Câmara Jr., J. M. Problemas de lingüística descritiva. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 1981.

Di Sciullo, A. & Williams, E. On the Definition of Word. Cambridge, Mass., The MIT Press, 1987.

Jackendoff, R. The Architecture of the Language Faculty. Cambridge, Mass., The MIT Press, 1997.

Perini, M. A. Sobre o Conceito de “Item Léxico”: Uma Proposta Radical. In: Palavra, n° 5, p. 140/163, 1999.

Vasconcellos, Z. Listabilidade Versus Integração Sentencial: Um Dilema para a Aceitação de Itens Lexicais Multivocabulares. Texto apresentado no III Congresso Internacional da ABRALIN, em 2005, cujos Anais ainda não foram publicados.

––––––. Critérios Para a Admissão de Itens Lexicais Multivocabulares. Texto apresentado no XXI Encontro da ANPOLL, em 2006, a ser publicado brevemente em meio eletrônico, no site do Grupo de Pesquisa Descrição do Português.


 


 

[1]Na prática, os átomos sintáticos correspondem quase sempre aos objetos morfológicos, com exceção do caso das unidades que esses autores chamam de “palavras sintáticas”, que seriam atômicas para a sintaxe apesar de não serem formadas segundo as regras do componente morfológico da língua e sim, à primeira vista paradoxalmente, segundo princípios de combinação sintáticos. Mais tais palavras sintáticas se resumem a casos do tipo do uso de deus-nos-acuda como substantivo, como na frase  “Foi um deus-nos-acuda terrível”, que um estruturalista, como Mattoso (Câmara Jr, 1971/1981), chamaria de compostos, ou seja, um tipo especial de objetos morfológicos (mas que S&W não consideram assim, porque restringem os compostos a combinações de núcleo à direita, que são majoritárias entre os compostos do Inglês, mas não dos do Português ou do Francês).

[2] Como por ex., locuções prepositivas ou adverbiais, e expressões formadas de verbo leve mais SN que representam um processo verbal único, do tipo dar beijo (abraço, tapa, etc.), bater boca, e outras do gênero.

[3] No caso das formas dos dois tempos futuros, por causa da existência de mesóclise na língua, que quebra a coesão estrutural delas e permite que a operação sintática de pronominalização rompa a atomicidade sintática própria aos vocábulos em geral. No caso dos compostos em –mente, por causa da possibilidade de omissão do sufixo quando dois advérbios em –mente são coordenados entre si.

[4] Cuja unidade interna depende de fatores históricos, do fato dos vários sentidos se terem progressivamente individualizado a partir do significado básico da palavra em pauta. Fato que sempre foi levado em consideração pelos dicionaristas, que sempre usaram, entre outros, o critério de origem etimológica comum ou diferente para distinguir entre casos de homonímia ou de polissemia.

[5] Embora nem sempre de um significante próprio apenas a ele, já que numa língua podem existir palavras homônimas.

[6] Já que, embora normalmente todos as formas de uma mesma palavra  contenham uma parte comum, correspondente ao radical dela, até isso pode não ocorrer em certos casos, como por exemplo no caso dos chamados verbos anômalos, que apresentam vários radicais diferentes, e são no entanto reconhecidos como uma palavra única, todas as suas formas representando uma mesma “escolha do falante”, como diria Martinet, acompanhada de outras escolhas, relativas a valores de traços gramaticais.

[7] Palavra fonológica é o nome dado pela Fonologia a um dos tipos de domínios em que se podem descrever dadas regularidades fonológicas ou em que ocorrem processos fonológicos; há outros, como a sílaba, o pé métrico, etc. Em Português, trata-se do domínio em que ocorre o acento de palavra.

[8] Na verdade o ponto de vista morfológico tanto se imbrica com o fonológico, como já ficou claro acima ao tratar daquele, como com o sintático, pois a classe do item lexical, e as propriedades flexionais de suas várias formas, têm relevância tanto para a operação de regras morfológicas quanto para a dos processos sintáticos. Também a coesão estrutural, que será caracterizada neste artigo como uma propriedade sintática, se manifesta igualmente do ponto de vista morfológico  na verdade, se manifesta até num grau mais forte dentro da unidade morfológica por excelência, o vocábulo formal.

[9] Nos termos da Teoria X Barra assumida por S&W, essa seria uma posição de nível X0, ou seja, uma posição de núcleo lexical.  

[10] Na verdade, na maioria das vezes os itens lexicais têm antes um conjunto de sentidos ou de valores gramaticais, os qusis são, porém, relacionados polissemicamente entre si.

[11] Isso vale mesmo para os ditos sinônimos, uma vez que não existem sinônimos absolutamente perfeitos, com todas as conotações e valores de registro iguais..

[12] Por exemplo, no caso da expressão bater as botas: enquanto sintagma sintático, significa bater uma bota do par contra a outra, ou bater ambas contra uma outra coisa qualquer.. Já enquanto item lexical, significa morrer, e sobre o conjunto não se aplicam várias operações sintáticas que poderiam incidir sobre o sintagma: o SN as botas, por exemplo, não pode aparecer substituído por pronome oblíquo, não pode vir como sujeito de uma frase na voz passiva, nem precedido por nenhum outro item lexical que não seja uma forma do próprio verbo bater. O caso de deus-nos-acuda, já mencionado antes na nota 32, é ainda mais extremo. Considerada do ponto de vista sintático, tal expressão seria uma oração, formada de um sujeito, um verbo principal e um complemento verbal; já enquanto item lexical, trata-se de um simples substantivo, como o demonstra a possibilidade de ser precedida de artigo e modificada por adjetivo, no SN “um deus-nos-acuda terrível” (no entanto, do ponto de vista interno, não apresenta as propriedades morfológicas de um substantivo  seria difícil, por exemplo, formar o plural dessa expressão).

[13] Essa repetição no uso do ato de denominação ou da função gramatical em causa que causam tal difusão é essencial do ponto de vista da língua, que é um sistema simbólico de toda uma comunidade. Afinal, o uso ocasional de uma extensa expressão formada sintaticamente para efetuar um ato de denominação é sempre possível, e isso não basta, por si mesmo, para transformar tal expressão num item lexical.