SUBSTANTIVOS CONCRETIZADOS
TERMINADOS EM –ANÇA E –AGEM:
DESCRIÇÃO E FORMALIZAÇÃO
PARA PROCESSAMENTO AUTOMÁTICO
Fernanda Scopel Falcão (UFES)
Lúcia Helena Peyroton da Rocha (UFES)
Introdução
Uma palavra, enquanto unidade lexical, apresenta um conjunto de propriedades morfológicas, sintáticas e semânticas que lhe atribui diferentes graus de relevância. Tais particularidades só podem ser descritas adequadamente se considerarmos seus comportamentos em ocorrências reais de uso na língua, a partir de marcas lingüísticas que as palavras adquirem nos jogos combinatórios.
Em relação aos substantivos, por exemplo, a concretização de certos nomes[1] abstratos acontece de acordo com determinadas características que essas palavras apresentam ou mediante determinado contexto em que se encontram. Por isso, as descrições e a elaboração de critérios formais devem-se dar a partir da observação dos níveis morfológico, sintático e semântico. Assim, o tipo de palavra que foi investigado neste estudo é aquele que apresenta um comportamento oscilante entre os traços [abstrato] > [concreto], em função de certas combinatórias, a partir da ambiência lingüística da qual faz parte.
Nos estudos lingüísticos, o campo dos substantivos abstratos e concretos é praticamente inexplorado, principalmente no que tange à concretização de certos abstratos[2]. Por isso, a elucidação desse fenômeno pode promover maior explicitação do funcionamento da língua portuguesa, proporcionando melhoria no seu ensino-aprendi-zagem. Ainda, pode possibilitar eficiência na aplicação de softwares que lidam com o processamento da linguagem natural.
Um recurso que pode contribuir para o aumento da qualidade das aplicações informáticas é a elaboração de dicionários eletrônicos[3] que incluam os substantivos como uma classe e os abstratos e concretos como uma subclasse dessa primeira. As entradas lexicais de substantivos, substantivos abstratos e substantivos concretos formalizadas podem ser utilizadas na engenharia da linguagem para a busca de informações, a correção gramatical, a tradução e a sumarização automáticas, por exemplo. Além disso, podem solucionar grande parte de um dos problemas clássicos no processamento das línguas, promovendo o reconhecimento de formas numa seqüência linear sem o comprometimento do sentido das informações, eliminando ambigüidades, redundâncias, repetições e informações agramaticais.
Para a solução dos problemas citados é imprescindível conhecer e descrever os mecanismos da concretização de certos abstratos, pois a informação lingüística que constar nesses dicionários deve ser formalizada de modo totalmente explícito, sistemático e coerente, visto que qualquer lacuna ou imprecisão pode bloquear o reconhecimento das formas lingüísticas nos textos. Além disso, para o processamento automático de qualquer estrutura lingüística é preciso formalizar a descrição, já que as formalizações viabilizam a possibilidade de implementações computacionais. Qualquer aplicação que envolva análise e geração de textos automáticos por sistemas de processamento de linguagem natural, como a tradução automática, a indexação e a geração de sumários, necessita de um dicionário que inclua eficientemente as entradas de substantivos abstratos/concretos.
A proposta aqui desenvolvida resulta, então, da necessidade de parceria entre o campo da lingüística e o campo da informática, na busca de resultados que possam amenizar os problemas de ambigüidades lexical e estrutural, além de preencher as lacunas de sentido que tornam os textos imprecisos e incoerentes.
Assim, esta pesquisa investiga os substantivos concretizados terminados em –ança e –agem, desenhando um quadro descritivo ancorado em critérios formais e possibilitando a representação desse conhecimento em meios computacionais.
A descrição do léxico dos substantivos em questão restringiu-se à modalidade escrita do português contemporâneo do Brasil. Proveniente do Banco de Dados do Centro de Estudos Lexicográficos (CEL) da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP – campus de Araraquara, e publicado em parte no Dicionário de usos do Português do Brasil[4], o material utilizado para análise constituiu-se das literaturas romanesca, dramática, técnica, oratória e jornalística.
O estudo lingüístico desses dados baseou-se nos critérios de aceitabilidade dos enunciados pelo locutor nativo e na consulta a dicionários; e as formas efetivamente concretizadas foram selecionadas e submetidas aos testes:
a) Verbo da frase inteira: este teste consiste em verificar a ambiência sintática exigida pelo verbo da oração, como o sujeito e os complementos verbais, que o configurem como substantivo [+concreto].
b) Modificador adjetival: este teste verifica os adjetivos e locuções adjetivas que possam determinar o uso dos substantivos como [+concreto].
c) Suporte material: este teste verifica a existência de locativos, que determinam a concretização dos substantivos.
Esses testes foram selecionados dentre os que Inge Bartning apresenta, em seu artigo “Les nominalisations déverbales dans les SN complexes em de envisagées sous l’angle dês traits processif et résultatif ainsi que de l’opposition abstrait/concret”, como evidenciadores de concretização de nomes abstratos.[5]
A partir daí, definimos os fatores que pudessem identificar a concretização e propusemos a formalização das entradas lexicais, para que elas constituam uma base de dados utilizável por dicionários eletrônicos.
De um total de mais de sessenta e duas mil palavras, encontramos trinta e três substantivos com estrutura [X-ança] ou [X-agem] que, de acordo com os testes aplicados, passam do [+abstrato] ao [+concreto]. Terminados em –ança, encontramos: aliança, confiança, esperança, lembrança, liderança, mudança, ordenança, segurança. E terminados em –agem: aparelhagem, bobagem, camaradagem, camuflagem, colagem, espionagem, homenagem, hospedagem, lavagem, malandragem, modelagem, moldagem, molecagem, passagem, peruagem, quilometragem, recapagem, reportagem, rodagem, silagem, tatuagem, tecelagem, tietagem, vassalagem, visagem.
Testes, descrições e formalizações
Segue-se, a título de exemplo, a explicitação dos resultados de alguns dos testes aplicados a ocorrências frasais de nove das palavras concretizáveis[6], seguida da formalização dos resultados obtidos nesses testes, que serão assim denominados: Teste A, para o “Verbo da frase inteira”; Teste B, para o “Modificador adjetival”; e Teste C, para o “Suporte material”. Em alguns casos, entretanto, esses testes não foram produtivos, mas pudemos formalizar o caso por meio da observação da ambiência da concretização; e quando isso ocorreu, apenas os denominamos de Teste. Antes, veja-se uma espécie de “legenda” das siglas utilizadas nas formalizações:
Nc: nome concreto Np: nome próprio V: verbo ou locução verbal Adj: adjetivo Adj[pat]: adjetivo pátrio Num: numeral Num[ord]: numeral ordinal Ladj: locução adjetiva |
Prep: preposição Fsuj: função sujeito Fobj: função objeto Fadjn: função adj. Adn. Fpreds: função pred. do suj. [masc]: gênero masculino [fem]: gênero feminino [pl]: número plural |
a) Aliança
Exemplos do nome aliança concretizado:
[...] porque sua aliança escorregou e sumiu no ralo.
[...] onde luzia a aliança de ouro.
Aplicação do teste:
Formalizações:
b) Confiança
Exemplo do nome confiança concretizado:
Era o confiança da casa.
Aplicação do teste:
Formalização:
c) Esperança
Exemplo do nome esperança concretizado:
A esperança se alimenta de folhas e deposita seus ovos no chão.
Aplicação do teste:
Formalização:
d) Espionagem
Exemplos do nome espionagem concretizado:
Exemplos do nome espionagem concretizado:
dezesseis agentes da espionagem americana [...] foram enviados à Rússia.
[...] a espionagem austríaca informa então, ao seu estado-maior, a presença de Don Michele.
Aplicação do teste:
Formalizações:
e) Lavagem
Exemplos do nome lavagem concretizado:
Sua mãe punha lavagem nos cochos para os leitões.
Comprei ela novinha, dei leite, dei lavagem, fiz dela uma porcona bonita.
Aplicação do teste:
Formalizações:
Exemplo do nome lavagem concretizado:
Esteve na lavagem uma mulher.
Aplicação do teste:
Formalização:
f) Liderança
Exemplos do nome liderança concretizado:
Mais uma reunião com todas as lideranças e os pré-candidatos.
Entrou ela em contacto com as lideranças das duas bancadas.
Aplicação do teste:
Formalização:
g) Mudança
Exemplos do nome mudança concretizado:
[...] ajudar a Jandira a arrumar a mudança.
O caminhão transportou sua mudança do porto até o hotel.
Aplicação do teste:
Formalização
h) Passagem
xemplos do nome passagem concretizado:
Havia uma passagem estreita e escura, de um metro e meio de largura.
A passagem subterrânea liga a prestes Maia com o vale do Anhangabaú.
Aplicação do teste:
Formalizações:
Exemplos do nome passagem concretizado:
Ele decidiu vender o piano e comprar passagem de ida para Nova Iorque.
Adquiri passagem de primeira classe.
Aplicação do teste:
Formalizações:
i) Segurança
Exemplo do nome segurança concretizado:
Mereci um segurança só para mim, não deixa de ser uma distinção.
Aplicação do teste:
Formalização:
Conclusão
Na história dos estudos lingüísticos, a distinção entre substantivos abstratos e concretos é muito antiga. No entanto, ao longo dos tempos, esse assunto – como já dissemos anteriormente, no item 1, e pudemos confirmar na revisão bibliográfica que antecedeu o estudo – foi praticamente inexplorado, sobretudo no que tange a concretização de certos abstratos.
As definições elaboradas por muitos estudiosos[7] mostram-se limitadas, pouco abrangentes. Estabelece-se a distinção entre abstratos e concretos, mas se aprofunda pouco no assunto; há apenas definição de conceitos e apresentação de exemplos. Mesmo quando se tentou definir critérios, percebemos a falta de eficiência e a superficialidade, como acontece com o teste da variação singular/plural, estabelecido por Rocha Lima (1999). Na frase “Perdi minhas esperanças quando perdi você”, por exemplo, o critério singular/plural não se aplica ao substantivo “esperança” (que consta do nosso corpus), pois ele permanece em sua acepção abstrata mesmo quando empregada no plural. Assim, para dar conta qualitativamente do assunto, os critérios devem ser mais abrangentes. Para tanto, faz-se necessário investigar todas as ocorrências em uso na língua.
Entendemos, por conseguinte, que as dificuldades no ensino-aprendizagem dessa matéria devem-se à descrição ineficiente do sistema da língua, porque as normas em voga classificam, de modo estanque, os substantivos como abstratos ou como concretos. A esse mesmo fator devem-se, no processamento da linguagem natural, os problemas de ambigüidades lexical e estrutural e a formação de lacunas de sentido que tornam os textos imprecisos e incoerentes. Mas precisamos deixar de estabelecer essa situação como norma geral; observando o contexto lingüístico em que as palavras podem ser inseridas, devemos considerar que a oscilação [abstrato] > [concreto] ocorre não como exceção, mas diversas vezes.
Em nossa pesquisa, ao analisarmos o corpus, pudemos verificar que os substantivos selecionados não são originariamente abstratos ou concretos, mas palavras que se abstratizam ou se concretizam em determinados ambientes e/ou em função de certas combinatórias. A partir dessa constatação, observamos, por meio dos testes, que muitas vezes há fatores que interferem e determinam o uso dessas palavras como substantivos concretizados. E, conforme transcrevemos no item 3, pudemos identificar muitos casos e estabelecemos a formalização desse conhecimento para uso em meios computacionais.[8]
Referências Bibliográficas
[1] Utilizaremos neste artigo o termo “nome” como sinônimo de “substantivo”.
[2] Um dos raros estudos sobre esse assunto é a tese de doutoramento de Lúcia Helena Peyroton da Rocha, intitulada Substantivos: fatores que favorecem a passagem do abstrato ao concreto. Ver Referências.
[3] Diferentemente dos dicionários tradicionais (impressos ou eletrônicos) para utilizador humano, esse tipo de dicionário consiste numa base de dados lingüísticos a ser consultada por programas que atuam no processamento da linguagem natural.
[4] Ver referências.
[5] Cf. Bartning, Inge. Les nominalisations déverbales dans les SN complexes em de envisagées sous l’angle dês traits processif et résultatif ainsi que de l’opposition abstrait/concret. In: Actes du colloque de dunkerque, 1992, Villeneuve d’Ascq (Nord). Les noms abstraits: histoire et théories. Paris: Presses Universitaires de septentrion, 1996. p. 323-336.
[6] Lembramos que somente foram considerados os testes que se mostraram produtivos em um número considerável de ocorrências.
[8] O objetivo primeiro desta pesquisa foi estabelecer a formalização da concretização para fins computacionais. Entretanto, esse conhecimento pode ser utilizado para fins didáticos, possibilitando maior eficiência no ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa.