Todo o Amor por “Amor”
Martim Vicente da Cunha Silva
Maria Antonieta Jordão de Oliveira Borba
Parece que Julio Cortázar está certo. A Literatura é como um punhal. É algo que nos atravessa e perpassa nosso âmago, transformando-nos e fazendo com que nos deparemos com nossa real insignificância no universo em que vivemos. Clarice é uma escritora que produz punhais, o conto “Amor” está dentre eles, certamente. Se quisermos “ler” o conto historicamente, ou seja, fazer uma análise pautada em pressupostos sociológicos, poderemos, dentre outros, considerar os seguintes aspectos: analisar a representação da mulher no Brasil das décadas de 50/60 (vide a personagem Ana); investigar a marginalização dos indivíduos nas grandes cidades (vide personagem do cego que masca chicles), perpassando temas como o desmatamento do meio-ambiente no Brasil (vide a observação de Ana sobre a Mãe Natureza); e ainda a transformação sofrida pela organização da família brasileira no Brasil da segunda metade do século XX. No entanto, todas essas opções são cerceadoras da linda liberdade e profundidade que podem ser desfrutadas, pelo leitor ousado, através do texto clariceano. Por isso, se realmente quisermos fazer uma análise coerente com a grandiosidade da escrita de Clarice, deveremos nos aportar em pressupostos teóricos condizentes com a construção da sua narrativa. A partir disso, podemos prosseguir rumo à instigante descoberta do rico palimpsesto literário dos textos de Clarice Lispector, notadamente dos que fazem parte do corpus da presente pesquisa intitulada “Interpretação de imagens clariceanas”: “Amor”, “A imitação da rosa” e “Feliz aniversário”.
O primeiro conto a ser analisado nesta pesquisa, “Amor”, narra a história de Ana, uma mulher que passa por momentos de crise epifânica quando, à tarde, observa um cego que masca chicles. A partir deste insólito encontro, Ana passa por grandes transformações em sua existência interior e exterior. A personagem está no meio de um turbilhão emocional. É mulher que está no meio; como o é do mesmo modo à tarde, dentro das 24 horas de um dia, pois é momento que se localiza entre a claridade alegre da manhã e a escuridão sombria da noite. Não por acaso, portanto, é o momento do dia que serve de ambientação narrativa ao conto.
O momento de irrupção da crise em Ana é justamente o da tarde que, apesar de ser o momento que mais se assemelha ao mundo interior da personagem, é a ocasião em que é sentida a hora “perigosa” (p. 19). Isso ocorre certamente por esse trecho do dia não se definir, ser precário, indeciso, ser metade. Trata-se de um momento semelhante ao âmago de Ana, aquela que tenta ser a provedora do mundo, porém entra em choque quando se vê necessitando ajuda do mundo a sua volta, sendo alimentada pelo com o sumo, a essência de vida.
Clarice cria um universo tão detalhista, que é ao mesmo tempo cotidiano e mágico, onde até o nome da protagonista do conto, Ana, explicita a estrutura circular de “Amor”. Circular porque se assemelha a uma variante de anagrama; é a mesma situação pela qual passa a mulher Ana – entra em crise após ver o cego, mas depois “retorna ao normal” – embora nunca mais seja a mesma; assim como não é o nome ao contrário, seria anA, ou seja, é semelhante, mas possui uma leve diferença (começa por minúscula e finda em maiúscula), como o caráter íntimo daquela personagem ao final do texto, onde ela “soprou a pequena flama do dia” (p. 29).
No início do texto, somos apresentados à protagonista, ficando cientes de que Ana se apresenta com “... as compras deformando o novo saco de tricô.” (p. 19); uma interpretação acerca desta imagem nos conduz a ponto de observação de uma tensão que já está formada no começo de “Amor”; o cotidiano de Ana está deformando seu íntimo sendo que isto pode ser observado nas compras que metaforizam o cotidiano doméstico do papel social de uma mulher no Brasil de meados do século XX; bem como o saco de tricô foi cosido por ela, é algo que saiu do senso criativo de Ana - logo, em outra leitura, a deformação gerada pelas compras no saco exprime a tensão de Ana que começa a sentir-se desconfortável com sua vida.
Quando Ana se instala no bonde, exala um “suspiro de meia satisfação” (p. 19), e esta pequena passagem do texto nos remete ao teor crítico da narrativa, onde o feminino (representado por Ana) não está apto a sentir nada por inteiro, apenas consegue conviver com ações e emoções pela metade. Por exemplo, mais tarde ficamos sabendo que a atividade doméstica daquela personagem conota-nos um “...desejo vagamente artístico [grifo nosso]” (p. 20) o que corrobora o sentido de apatia apresentado por aquela personagem diante de suas emoções e da pulsação da vida.
Depois desse momento, observa-se o primeiro momento em que Ana revela algo que tem apreço (o primeiro sinal de amor na obra), seus filhos, a valorização de sua maternidade. Estes se ligam à noção de verdade na vida de Ana, “uma coisa verdadeira e sumarenta” (p. 19), entretanto, nem eles deixavam de ganhar alguma conotação negativa, pois eram verdadeiros, mas sumarentos. Além disso, exigiam “instantes cada vez mais completos” (idem); estes momentos certamente eram os de maior conflito para Ana, pois, como já observamos, ela não seria capaz de prover nada mais inteiro ou intenso do que já proporcionava. Ela então devia se sentir deficitária naquilo que lhe era mais caro, sua vida doméstica, ambiente no qual até o “fogão enguiçado dava estouros” (p. 19).Ela, é claro, não os dava, não se manifestava.
Neste ponto, é possível observar como era o comportamento de Ana em face às suas atividades cotidianas. Todas as palavras utilizadas na construção do conto por Clarice Lispector estão inseridas no campo semântico de trabalho: “Como um lavrador”, “plantara as sementes”, “cresciam sementes” (p. 19) A mão de Ana é considerada “sua corrente de vida” (idem), tudo isso através do trabalho que realizava com desvelo e dedicação. Ao cumprir todas as tarefas de seu lar, sabendo que nada mais precisava dela, ela ficava desgostosa, inquieta, e, com isso, em seu íntimo acreditava ser desnecessária como ser humano. Essa relação de Ana com o “decorativo” (p. 20), com o externo, “se desenvolvera e suplantara a íntima desordem” (idem); em outras palavras, a personagem se defendia, escondendo seus conflitos internos, através de suas tarefas como dona de casa. Ana cria uma personagem totalmente dedicada ao lar, à família. Ela achava que “tudo era passível de aperfeiçoamento” (ibidem), logo, por não conseguir aperfeiçoar suas fraquezas, tentava mudar tudo a sua volta.
Nesse momento, começamos a observar o que o conto nos propõe a respeito da visão de Ana sobre o destino. “Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado”.(p. 20); nesse exato momento, Ana repara que vive inserida em um contexto social preparado para a mulher, mas para si, ela cabe nesse destino, como se algo fosse original, ou se tivesse realizado uma escolha original. O questionamento sobre a escolha fica claro na seguinte citação que reforça explicitamente a idéia de destino: “Assim ela o quisera e escolhera” –essa citação é repetida duas vezes, de maneira exatamente igual – (p. 20; p. 21).
Ana reafirma que tem filhos e marido “verdadeiros” (p. 20) como se isso fosse a única verdade de sua existência, o único fato. Em sua juventude, ela estava com uma “doença de vida” (idem). A cura daquela “doença” mostra que ela agora sabe que “também sem a felicidade se vivia” (ibidem), ou seja, podemos deduzir que ela era feliz; agora ela tenta buscar segurança, apenas.
Ao falar sobre o feminino, Clarice se utiliza de uma figura de linguagem, o oximoro, a qual consiste em justapor duas palavras absolutamente antagônicas; por exemplo, na página 20 do conto: “felicidade insuportável”. Com essa construção, há um efeito muito interessante, pois explicita toda a sorte de sentimentos díspares – ou seja, a impossibilidade de se resolverem às contradições internas –, que atravessam o íntimo daquela mulher.
Contradição é uma palavra-chave dessa personagem, uma vez que Ana, ao ver que seus móveis se encontravam limpos e que tudo estava em ordem em seu mundo doméstico, sentia-se espantada e sufocava esse sentimento. Ela pensava que, com o fim da tarde, teria de volta seus “calmos deveres” (p. 21) e “Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos” (idem). Ana se sentia credora de tudo e todos, pois estava sempre à disposição de sua casa e família para ajudá-los e trabalhar em prol da ordem dos acontecimentos de sua vida.
A partir deste momento, a espiral narrativa do conto nos conduz a uma previsão de mudança de perspectiva íntima da personagem, às custas da atmosfera delineada: “Logo um vento úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável” (ibidem). Podemos observar que à tarde, como antes observamos, é o elemento que traz instabilidade e indefinição à vida desta mulher. Então ela respira fundo e “uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher” (ibidem). Em outras palavras, Ana tem a face de mulher adulta apta a viver a vida que “escolhera”, exatamente quando aceita seu papel como tal. Além da mudança da cronologia do conto –nos deslocamos de um momento da tarde em direção à noite – temos a presença de um “vento úmido” que denota uma leve previsão do torvelinho íntimo que se avizinha de Ana.
É então que, de volta ao momento do início do conto, Ana avista o homem cego mascando chiclete que está parado na calçada, enquanto ela se encontra no bonde. Esse elemento lhe detona a seguinte sensação: “o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mastigava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos.” (p. 21) Ela está em crise neste momento. Sente-se insultada, passando quase ao ódio – diz-se, inclusive, que “quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio” [grifo nosso] (p. 22), ou seja, nem o sentimento de ódio era inteiro, era só uma impressão.
Ela fica olhando o cego apreensivamente e o bonde dá uma arrancada, o que a faz jogar suas compras no chão. Ao passar por este momento “uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgira-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível” (p. 22), algo se transformou nela, trazendo à tona emoções há muito não desfrutadas, levando Ana a descobrir-se e se confrontar com algo novo. Diz-se neste momento do conto que o bonde avança novamente e o cego fica para trás, para sempre. Entretanto, “o mal estava feito” (idem). A crise tinha eclodido em Ana. Os ovos que estavam em sua sacola de tricô quebraram e as gemas estavam escorrendo – ovos como símbolo metafórico da vida de Ana, também estavam escorrendo diante dos olhos dessa mulher “vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam” (ibidem). Até o cego desejava ajudá-la, tentando estender os braços para “pegar o que acontecia” (ibidem). Agora, a rede de tricô que ela produzira lhe era infamiliar, pois estava suja de ovos. Ela se sentia sufocada de piedade; “o mundo se tornara de novo um mal estar” [grifo nosso] (ibidem). É interessante nos determos na expressão “de novo” . Podemos saber que essa não é uma sensação nova; é algo que ela já experimentou –talvez pelo fato de que quando era mais jovem estava com uma “doença de vida” (p. 20). Ela estava em contato, agora, com uma maneira não de ver apenas, mas de enxergar o mundo, a vida e o próximo à sua volta.
Enxergar que até um cego poderia mascar chicletes era, para Ana, quebrar alguma lei, uma convenção social que preexistia em sua mente. O choque que a visão daquele homem causou em Ana foi “perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram” (p. 23); ela desejava, sofria por perceber que seu mundo, sua vida não eram tão perfeitos e intocáveis assim; tudo era passível de mudança; nada é definitivo, tampouco fixo.
A crise pela qual ela passa é justificada pela seguinte cena: “um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão”.(p. 23) Ela começa a se sentir, então, sensibilizada pela situação marginalizada do cego e pelas pessoas que o vêem com indiferença total; o resultado é que “Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa”. (idem). O cego quebrara a lógica simples do cotidiano. A vida, para ela –haja vista que Ana lutava para ordenar tudo– era algo que lhe causava enjôo: “...através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.” (ibidem)
O que se segue no conto é a desestruturação da ordem instituída por Ana em seu dia-a-dia. O primeiro sinal disso é o fato de ela passar –e muito– de seu local de descida do bonde. Então vai parar no Jardim Botânico, já em contato assustador com “...a vida que descobrira” (p. 24). Ela estava se acalmando com o silêncio que o local lhe trazia e parecia dormir dentro de si mesma. Entretanto, agora o choque é provocado por causa de Ana ter sentido a presença, próximo a ela, de um gato. Curiosamente, sua percepção do ambiente estava agora mais aguçada; ela desempenhava movimentos rápidos e tinha uma sensibilidade intensa de quaisquer mudanças provocadas à sua volta, assemelhando-se a um gato. Esse senso de observação que ela desenvolve a leva a se aperceber do “trabalho secreto” (p. 24) que se realizava no Jardim Botânico, ou seja, o trabalho da natureza; como ela também uma mãe, que alimentava seus filhos, sem nem fazer alarde aos seres humanos.
As descrições de ambientes que Ana realiza a partir deste momento são muito mais naturalistas; são animalizadas, por exemplo, ao descrever os caroços que estão caídos no chão do Jardim, ela nos diz que esses são “cérebros apodrecidos” (p. 25) e mais tarde: “A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos” (idem). Em outras palavras, tudo, aos olhos dela, estava sendo reavaliado; era agora dotado de nova significação. A morte era agora, não mais a perda, e sim a renovação, o renascimento. “Como a repulsa que precedesse uma entrega –era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.” (ibidem), apesar do choque e do nojo provocado por suas emoções naturalizadas, cruas, ela estava totalmente fascinada por este novo mundo que se descortinava. Seus oximoros viram intensos paradoxos, dado o caráter de suas emoções nesse momento: “o mundo era tão rico que apodrecia” (ibidem).
Então, a conexão dela com o mundo doméstico se faz através da lembrança de seus filhos –talvez pelo fato de Ana reparar que as crianças tinham a visão de mundo que ela agora compartilha?– e ela começa a sentir-se infamiliar a tudo. Quando chega ao seu prédio, sua “alma batia-lhe no peito” (p. 26), não mais o coração apenas lhe batia, mas por todas as emoções que lhe surpreenderam durante toda à tarde, sua alma inteira era tomada por emoções avassaladoras. Ela então chega com a rede, ou seja, o símbolo do que se lhe tinha tornado estranho, pois estava agora a rede de tricô que ela havia cosido estava suja com as gemas de ovos já endurecidas.
Pela primeira vez somos notificados que o mundo para Ana é: “...seu, sujo, perecível, seu” (p. 26); a repetição do pronome nos serve para demonstrar que agora o mundo é de fato dela, apesar do nojo e da piedade que ela sentira com relação ao cego. Seu apartamento, seu lar era agora descrito com a pergunta: “que nova terra era essa?” (idem) que conota uma visão embotada pelo estranhamento de tudo que lhe parecia muito limpo e brilhante. Ana tem a noção – que de alguma maneira se alinha com a passagem supracitada, na qual ela via sua juventude “estranha como uma doença de vida” (p. 20) – de que sua vida de agora é que lhe parecia “um modo moralmente louco de viver” (p. 26) e ela vê seu filho de uma maneira muito estranha e choca-se, pois a “vida era periclitante” (idem), talvez porque a harmonia de tudo era tênue e poderia ser abalada por uma visão como a de um cego que masca chicletes.
Ela abraça o filho ao chegar em sua casa e quase o machuca, tudo em Ana é conflito e ela fala para seu filo, uma criança que “a vida é horrível” (ibidem). Ana diz que se cedesse a epifania provocada pela visão do cego ela iria só, pois o mundo não compartilhava de sua visão da verdade; sente também –a despeito do que acontecia até esse ponto em sua vida – não mais apenas tendo que prover – sua casa e a vida de todos, anulando-se em nome do bem que acreditava fazer –mas sendo provida “ela precisava deles...” (ibidem) Ela, ao sentir o olhar de seu filho ao longe, ficou apavorada. “Era o pior olhar que jamais recebera” (p. 27), talvez porque agora essa mulher está sem o último resquício de segurança que o mundo lhe fornecia, a certeza de que seu filho nutria amor por ela e vice-versa. Há medo na relação maternal, pois a mãe quer proteger o filho, não quer que seu rebento sofra com as misérias do mundo.
Ana recorre agora à metáfora semelhante a dos ovos que se quebram com a freada do bonde, dizendo: “os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra.” (p. 27) Ela estava agora em enfrentamento com a sua verde sobre a vida. A “ostra” representa exatamente essa verdade nova que surge a partir da crise de uma verdade prévia. Ela se descobre como a parte “forte” do mundo, isso parte de uma empáfia recorrente nesta personagem, pois se crê a eterna provedora do mundo. Ana sabe que nasceu para, como mãe, prover sua família e o mundo humano –tal o faz a Mãe Natureza –tudo por amor.
Agora o que ela transparecia era uma “piedade de leão” (idem), ou seja, ela parte de uma situação onde não sente nada verdadeiro, mas sim parcial; medíocre, para a condição de quem é hipersensível às intempéries – e maldades – humanas. E ela se descobre amando o cego, ao mesmo tempo em que verifica que este não é o sentimento que a preenche quando ela está em uma igreja, porque sua bondade não é mais divinizada como outrora, e sim materializada, cotidiana; sentida. A sua sensibilidade para as pequenas grande coisas de seu cotidiano estava ampliada. Ana repara que o mesmo “trabalho secreto” do Jardim Botânico se realiza agora em seu lar, em sua cozinha –o trabalho secreto no cômodo da casa que expressa o papel social da mulher nesse período, principalmente.
Uma frase muito interessante, que é representativa do trabalho de construção literária inovador realizado por Clarice Lispector, é a seguinte: “eles rodeavam a mesa, a família”. (p. 28); essa passagem explicita tanto o caráter circular do conto – no qual não sabemos se a mesa é rodeada pela família, ou se a própria família é rodeada pelo trabalho da natureza – quanto à subversão sintática do que poderia ser uma frase absolutamente corriqueira –e com um limitado efeito estético.
Depois disso, Ana observa a todos de sua família que jantam em sua sala e “Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu” (idem); essa protagonista começa a esboçar uma espécie de retorno a seu estado de espírito anterior, ou melhor, ao caráter controlador de seu íntimo. Ela agora reflete, antes de dormir, sobre o efeito que a visão do cego exercerá sobre ela (“O que o cego desencadeara caberia nos seus dias ?” [p. 29]) descobre-se novamente com juventude (“Quantos anos levaria até envelhecer de novo?” [idem]), pois ela passou por um processo de despertar de sua sensibilidade (“Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças” [ibidem]).
Entretanto, a partir da passagem: “O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico” (p. 29), nos parece que Ana coleta todas as imagens transcorridas durante sua tarde, os mistura e os recalca em seu íntimo, começando a deixar sua revelação de lado. Ela então tenta proteger o marido ao se assustar com o estouro do fogão, repreendendo-se por não estar atenta aos assuntos domésticos (“Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa!” [idem]). Seu marido a impele sutilmente a dormir e demonstra cuidado e carinho para segurar a mão da mulher com um “gesto que não era seu, mas que pareceu natural” [grifo nosso] (ibidem). Com isso, “afastando-a do perigo de viver” [grifo nosso] (ibidem). É declarado então: “acabara-se assim a vertigem de bondade” (ibidem), ou seja, todo o choque pelo qual ela passou tenta descartá-lo para que possa voltar a viver sua realidade tranqüilamente. Ao se pentear para dormir ela estava “por um instante sem nenhum mundo no coração” (ibidem), em outras palavras, sem nenhuma conexão com a solidariedade tampouco com o amor ao próximo –utiliza-se um símbolo da vaidade feminina, para demonstrar futilidade e esvaziamento de valores construtivos. Daí surge-nos a pergunta para reflexão: se ela sopra e apaga “a pequena flama do dia” (ibidem), afastando-se de sua experiência, será que ela será, em seu dia seguinte, a Ana de sempre, ou apesar das tentativas de esquecimento, sairá transformada de maneira indelével? Essa é uma pergunta a qual poderemos perseguir as diversas respostas –que sempre nos serão enriquecedoras –porque Ana é fruto da brilhante percepção da artista do humano chamada Clarice Lispector, cuja obra nos suscita pensamentos questionadores – e sempre reveladores – que nos levarão ao enfrentamento de nossa própria –frágil – natureza.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS[1]
[1] Os autores se esqueceram de incluir as referências bibliográficas, o que prejudica a qualidade tècnica de sua produção.