Negritude e
Poesia Brasileira
um
olhar sobre Luiz Gama e Solano Trindade
Lenice Trajano da Costa (UESB e FFJC)
Verlaneyde Maniçoba de Sá Koch (UESB)
A negritude são negros no mundo que lutam por negros, são negros da terra que lutam pela terra. São negros nas terras enjeitados de todas as terras. São negros oprimidos lutando pela vida. (Henrique Cunha, apud Damasceno, 2003: 15).
Durante mais de três
séculos de
escravidão, os
negros trazidos
para o Brasil tiveram
suas
culturas e raízes escamoteadas
pelo
modelo político-social vigente.
Após a “abolição”
oficial da
escravatura no Brasil,
em
vez de
criar
políticas de
integração dos
negros
por
meio de
programas de escolarização e
saúde, a
classe detentora do
poder preferiu esquecê-los. Nessa
nova
aparente
condição,
embora
não
mais fossem
escravos,
não atingiram a
cidadania,
pois
durante
quase
cem
anos
nem
sequer figuraram
como
problema
social
ou cultural a
ser resolvido no
país,
como se
apenas a
liberdade
oficial
lhes garantisse todas as
condições de
sobrevivência numa
sociedade
em
que passaram a
competir
em
condições da
mais
absoluta desigualdade.
Em
pleno século XXI, a
sociedade
brasileira continua a eximir-se de
sua
responsabilidade
por
ter mantido
durante
séculos a
escravidão, escondendo a
exclusão e a
intolerância
raciais
através do
mito da “democracia
racial” e
estereótipos do
tipo ”o
brasileiro é
um
povo
amistoso e
cordial”, “negro de
alma
branca”, etc.
Apesar de
hoje
haver uma
política
afirmativa
que
tenta
preservar a
cultura dos afro-descendentes, a
sociedade
brasileira continua a submetê-los a uma
realidade
não
muito
distante das
senzalas.
Embora
desde
sempre tenha havido
resistência
negra à
escravidão (como
nos
exemplos de
Zumbi e de
outros
tantos
quilombolas e no do
poeta Luiz
Gama), e
mesmo o engajamento de não-negros à
causa anti-escravista (como no
caso da
Conjuração Baiana e dos promotores da Confederação do Equador,
ou
ainda, do
poeta Castro Alves), o
processo de escravização
negra
quase eliminou
todo
traço de
identidade desses
povos,
pois,
logo
após a
abolição,
já no
início da
República, a
pouca
documentação
sobre o
tráfico negreiro e
construções típicas de uma
sociedade
escravocrata (senzalas,
pelourinhos, etc.) foram destruídas
por
ordem do
ministro Rui Barbosa,
que pretendia,
assim, “eliminar do
solo da
pátria a
escravidão (...)
por
honra à
pátria e
deveres
fraternais de
solidariedade
para
com a
grande
massa de
cidadãos
que,
pela
abolição do
elemento
servil, entraram na
comunhão
brasileira”. (Schwarcz & Reis, 1996: 81).
Para os negros, essa
crueldade foi
ainda
pior
que a
própria
escravidão, na
medida
que
lhes eliminou o
passado, de
forma
que o
atual
conhecimento
sobre a
cultura
negra foi,
em
sua
maior
parte, transmitido
oralmente,
conforme destaca
Colina (1982: 7): “nossa
História/Estória foram mantidas boca-a-boca. E de
fogueiras a bocas-de-fogão e
mesas, perduram
até
hoje, questionando a
verdade encapuzada da
história estabelecida”.
Depois de
um
passado de
servilismo e de
marginalidade
social
após a
abolição, a
tarefa
maior
com a
qual o
negro se defronta
hoje é
reconstruir
sua
identidade
coletiva, na
qual a
comunidade se insere
plenamente
como
sujeito,
processo
esse
que
também envolve a
construção da auto-estima do
negro, da valorização e do
amor à
suas raízes culturais e de
sua
adaptação ao
mundo
contemporâneo.
Esse
processo de
reconstrução de
identidade se dá
em
todo o
seu
significado e
importância
quanto
mais forem lembradas
suas
origens: uma
sociedade
escravista,
cujo
objetivo
era
destruir a
identidade do
negro e dominá-lo.
Segundo Frizotti (1998: 113-4), “ideologicamente, esta
destruição
era reforçada
pela brutalização da
relação
branco/senhor–negro/escravo”.
Além da
violência
física, os
negros eram submetidos a uma
violência
moral, na
medida em que eram isolados de
suas
referências, sendo-lhes negados história e
passado, controlando-se sabiamente as
manifestações étnicas e culturais, demonizando-se
sua
vivência
religiosa: “Nem os
reis eram reconhecidos nesta
terra, (...)
nem a
língua, (...)
nem os
sacerdotes, os
ritos, os
templos
sagrados”. (Frizotti, apud Silva, 1998: 113).
Outra
manifestação dessa
violência
moral –
talvez
maior
que a
violência
física –, encontra-se na
imagem do
negro veiculada
por essa
sociedade,
como se
vê
nos
seguintes
excertos, retirados de
textos da
época colonial:
São
muitos deles
tão
boçais e
rudes, pondo
seus
senhores há
diligência
em os
ensinar,
cada
vez parece
que sabem menos. (Constituições primeiras do arcebispado da Bahia, apud Fragoso, ([s.d.]: 297)).
Entre essas
gentes há
gente
que
mais tem de
burro
que de
gente. Há
alarves
em Guiné tão rudes e bossais
que
só o
vosso
poder
lhes poderá
meter o
Padre
Nosso na
cabeça. Há
Minas
tão
brutos e
incapazes,
que
mil
vezes
nos havemos de
benzer deles,
primeiro
que
eles aprendam a benzer-se. (Fragoso, ([s.d.]): 205-6).
ou,
ainda, na
definição de
escravo
constante da
Consolidação das
Leis Civis do
Governo Imperial:
bem
móvel,
semovente, equiparado aos
animais.
Guardadas as devidas
proporções,
ainda
hoje prevalece
esse
mau
trato
moral na
forma
pela
qual o
país priva o
negro do
exercício
pleno de
sua
cidadania e
pela
imagem
que dele apresenta.
Desse
contexto, resulta, no Brasil
atual, a
grande
importância da
literatura
negra,
manifestação
artística
cujo
surgimento,
segundo Bernd (1988), está ligado à
compreensão do
conceito de
negro,
termo
que pode
nos
remeter a duas
realidades: “tanto (...) à
ofensa e à
humilhação,
quanto” à “expressão de
orgulho”. (Bernd, 1988: 96).
Ainda
segundo essa
estudiosa, ”através da
poesia, o
negro se
liberta da
imagem
quase
sempre estereotipada
com
que foi apresentado
desde
sua
chegada ao
Novo
Mundo”.
Quando se discute a
legitimidade da
expressão
poesia
negra, tem-se
costumeiramente apontado
para
temáticas relacionadas ao
combate ao
racismo e à
miséria.
Hoje,
porém, encontram-se
motivos
como o
amor, o
erotismo, a
beleza,
assim
como a
aliança
entre música e
poesia,
através do
samba, do
pagode,
maracatu,
congada, reggae, etc., o
que parece
coincidir
com a avaliação de Fernandes (1972, p. 12-5),
para
quem, ao
lado da
religião, as
artes,
em
geral, e,
sobretudo,
...a
poesia, o
teatro (...) permitem
chegar ao
homem
negro, às
ambições e
frustrações
mais profundas e ao
que há de
irremediável e
irredutível no
empobrecimento
humano e cultural de uma
sociedade
que converte a
democracia
racial
em
um
falso idealismo.
Nesse
sentido, a
profundidade de uma
consciência
negra
para uma
nação
mestiça é
fundamental e a
expressão
artística foi o
meio
que inúmeros
poetas encontraram
para
combater e
libertar
seu
povo do
preconceito e integrá-los à
sociedade. O
discurso poético,
então, é o locus
onde afloram o
conceito de negritude e a
tomada de
consciência. Daí, a
necessidade da
poesia
negra,
porque
expressa a
verdade de uma
comunidade
que
fala de
si
própria
com
orgulho e
expressão assumida.
Descobrimos
que no Brasil há
um
número
razoável de
poetas afrodescendentes,
mas
suas
obras
não
são
ainda
tão divulgadas,
não
por
conta da
qualidade,
mas
pelo
desinteresse do
público
leitor (talvez
por
puro
preconceito) e, também, do
mercado
editorial.
Logo,
muito do
material
que conseguimos
para
analisar neste
estudo foi
fruto de árduo trabalho de pesquisa.
Através da
pesquisa e da
análise das
obras dos
poetas
negros
brasileiros Luiz
Gama (1830-1882) e Solano
Trindade (1908-1974), pretendemos
enfocar a
questão da negritude e,
assim,
contribuir
para o
rompimento da
imagem
negativa
que
sempre foi mostrada do
negro
não
só
em
nosso
país,
mas no
mundo, e
mostrar o
quanto se sabe e o
quanto há
para se
revelar dos
poetas
negros.
Iniciemos
pelo
precursor da
poesia
negra
brasileira, Luiz Gonzaga
Pinto da
Gama,
filho de
fidalgo e da
escrava Luíza Mahim.
Embora
já tenha nascido
livre, Luiz
Gama foi vendido
como
escravo
pelo
pai aos
dez
anos
para
pagar
dívidas de
jogo.
Autodidata, aprendeu facilmente as
letras e a
arte da
retórica. Enveredou
pelo
campo do
Direito, criou
fama de
bom
advogado, ganhou
muito
dinheiro, aplicado na
alforria de
escravos.
Suas
atitudes desdobraram-se
em múltiplas
frentes de
combate à
escravidão: na
ação
jornalística, à
frente da
sociedade emancipadora, na participação de
organizações secretas destinadas a
facilitar as
fugas e
nos
tribunais,
onde afirmava: “Perante o
Direito, é justificável o
crime do
escravo perpetrado na
pessoa do
senhor”. (Silva,
apud Luna, 1976: 279).
Fazendo de
sua
poesia uma
arma,
ele denunciou as
mazelas
sociais decorrentes da
escravidão de
maneira
distinta do
que faziam
outros
poetas e
escritores de
seu
tempo –
como Castro Alves –,
que
apenas tematizavam a
problemática
negra de
forma
superficial,
mas engajada, generalizante, humanitarista,
justiceira,
advocatícia.
Em
Gama, vê-se o
negro tratando de
sua
própria
realidade, desnudando-a, criticando-a. Na
poesia de
Gama,
não há
lamentos
pela
escravidão,
mas
denúncias
contra o
sistema.
Assim,
em
seu
livro Primeiras
Trovas Burlescas do Getulino, o
poema “Quem sou
eu?” apresenta
um
panorama da
sociedade
brasileira, mostrando
que o
negro está
presente
em todas as
camadas
sociais,
ainda
que,
por
preconceito,
aqueles
que conseguiram
alcançar
altos
cargos queiram
negar
sua
origem. O
texto é
um
exemplo da
criatividade e
talento do
poeta,
que
usa
seus
versos
com
precisão e
maestria
para
mostrar a
inconsistência do
preconceito
racial.
Com
humor
ferino e
inteligência, o
poeta ridiculariza a
pretensa fidalguia
branca da
elite
brasileira, ao
mesmo
tempo
em
que assume
sua negritude e
mostra a
expansão de
sua
gente nessa mesma sociedade.
Se sou
negro
ou se sou
bode,
Pouco importa, o
que
isto pode?
Bodes há de
toda casta
Pois
que a
espécie é
muito vasta... (Gama, 2000).
Gama utiliza a sátira para
criticar e
desprezar o
mulato
que
nega
sua
origem
africana e, pretendendo-se
puramente
europeu, esforça-se
por
parecer
branco, negando
sua
origem, e à força ostenta
sua nobreza. No
poema Sortimento de Gorras
para a
Gente do
Grande
Tom,
ele
registra
sua
indignação e denuncia:
Se os
nobres desta
terra
empanturrados,
Em Guiné têm
parentes enterrados,
E cedendo à prosápia,
ou
duros
vícios,
Esquecem os negrinhos seus patrícios
Se
mulatos de
cor esbranquiçada
Já se julgam de
origem refinada (Gama, 2000)
Por
outro
lado,
Gama é o
primeiro
poeta a
cantar a
beleza da
mulher
negra
sem
tentar imprimir-lhe
características da
musa
branca,
como faziam
outros
poetas de
sua época, e evidenciado nos fragmentos abaixo:
... Mãe da
água
fora,
Talvez, se a
cor de
seus
quebrados olhos
Imitasse a do
céu, se a
tez
morena,
Morena
como a
esposa dos cantares... (Assis, 1973: 138)
...Onde vais à tardinha
Mucama
tão bonitinha,
Morena
flor do sertão? (Alves, 1990: 141)
Em
ambos os
textos, observa-se
que foram atenuadas as
características africanas
por
ventura existentes na
mestiça e dignificada
sua
cor
morena. No
texto
machadiano, essa dignificação é,
ainda, enfatizada
pela
referência à
morena bíblica.
Essa
tentativa de
embranquecimento da
mulher
negra é uma
outra
forma de tematização do
negro na
literatura
nacional, decorrente
mesmo
entre
autores
negros
contemporâneos,
como denuncia Bernd (1988) e demonstra o
texto
abaixo, de Gil (1984):
Negra é a
mão de
quem faz a limpeza
Lavando a
roupa encardida, esfregando o
chão,
Negra é
mão, é a
mão da
pureza,
Negra é a
vida consumida ao
pé do
fogão.
Negra é a
mão
nos preparando a
mesa,
Limpando as
manchas
com
água e sabão.
Nos
versos
acima, o
negro é tomado
apenas
como
temática,
não havendo
elementos
capazes de
demonstrar
nem uma
intenção do
poeta
em
revelar
sua negritude.
Além disso, o eu-lirico do
poema faz
parte daqueles
que
são servidos pelas
mãos negras.
Por
sua
vez,
Gama ressalta a
beleza da
negra
por
seus
traços de negritude (pele
escura e
cabelos crespos), rompendo
com as
convenções
sociais e
estéticas
que impunham – e,
em
certa
medida,
ainda o fazem –, a brancura
como
condição
indispensável à
beleza.
Uma comparação dos
versos
abaixo de Tereza, de Álvares de Azevedo, e de A
cativa, de Luiz
Gama, revela
que,
enquanto Álvares de Azevedo condiciona o
seu
amor à Tereza
por
suas
características de brancura (os
louros anéis dos
cabelos, os
verdes
olhos
safira),
Gama
canta a
beleza da
mulher
amada, exaltando
suas
características negras:
O
que
eu adoro
em ti é
teu rosto
O angélico
perfume da pureza
São
teus quinze
anos numa
fronte santa
O
que
eu adoro
em ti,
minha Tereza!
São os
louros anéis de
teus cabelos,
O
esmero da
cintura pequenina,
Da
face a
rosa
viva, e de
teus olhos
A
safira
que a
alma
te ilumina! (Azevedo, 1942)
Como
era
linda,
meu Deus!
Não
tinha da
neve a cor,
Mas no
moreno semblante
Brilham
raios de
amor.
As
madeixas crespas, negras
Sobre os
seios
lhe pendiam
Onde os
castos
pomos de ouro
Amorosos se escondiam. (Gama, 2000)
Embora
pouco
numerosa, a
obra de Luiz
Gama é
extremamente
relevante no
panorama da
literatura
nacional
devido ao
seu
caráter
inovador. O
autor reivindica o
reconhecimento do
negro
como
fator
significativo na formação do
povo e da
cultura
brasileira,
motivo
pelo
qual
ele, o
negro,
não pode
ser menosprezado
ou negado. O
clamor do
bardo é
pela
liberdade e,
principalmente,
pela valorização e
respeito de
sua
gente,
pela
glorificação de
sua
cor, numa
reação aos
preconceitos e
estereótipos.
Esse mesmo tipo de reação pode ser encontrada na lavra do poeta negro pernambucano, Solano Trindade, nascido a 24 de julho de 1908, filho de um sapateiro e uma quituteira. Ao longo da vida, ele foi vítima de vários tipos de preconceito por ser negro, pobre e nordestino. Foi operário, colaborador na imprensa, atuante no cinema e mantenedor de um grupo teatral folclórico por vários anos. Com o objetivo de divulgar os intelectuais e artistas negros, fundou a Frente Negra Pernambucana e o Centro de Cultura Afro-brasileiro. Editou seu primeiro livro em 1944 (Poemas de uma vida simples), o segundo, em 1958 (Seis tempos de poesia) e o terceiro em 1961(Cantares ao meu povo).
Como se vê, Trindade desenvolveu uma intensa atividade cultural voltada para o folclore e para a denúncia do racismo, prestando significativa contribuição à cultura nacional, quer pelas realizações, quer pela pesquisa dos fatos da cultura popular. Poeta que viveu o seu tempo, construindo uma obra de grande importância pela força da sua mensagem, confidencia na abertura do seu último livro:
Agradam-me profundamente os títulos de ‘poeta negro’; ‘poeta do povo’; ‘poeta popular’, às vezes dito de modo depreciativo - mas que me dão uma consciência exata do meu papel de poeta na defesa das tradições culturais do meu povo, na luta por um mundo melhor. Unir o Universal do Regional, num poema participante ou amoroso, num verso de protesto ou ternura – mas em palavras bem compreensíveis. Quem me ouvir, ouça. (Trindade, 1961)
Através de
suas
poesias de
estilo
popular,
concreto e
objetivo, diversas
cortinas do mascaramento
social
são historicamente ameaçadas.
Em
suas
obras, o
humor e
ironia
são
empregados
para
questionar a
ordem
escravocrata de
outrora e a
ordem
social
excludente de
seu
tempo. Ao
manipular as
palavras, o
poeta reconstrói as
relações e reorganiza as
informações desencontradas, permitindo
um
olhar diferenciado. Nesse sentido, como se em resposta às agressões de outrora e às contemporâneas, o poeta escreve:
—
Eita
negro!
quem foi que disse
que a
gente
não é
gente?
quem foi esse demente,
se tem olhos não vê... (Trindade, 1961: 10)
Nesse
trecho do
poema
Conversa, percebe-se
um
desgosto do eu-lírico
por
ver
seu
povo diminuído,
além de uma
expressão
muito contida,
cortante,
nos
dois
últimos
versos. Continua o
poeta:
—
Que foi
que fizeste,
mano,
pra
tanto
falar
assim?
— Plantei os
canaviais do nordeste
— E
tu,
mano, o
que fizeste?
Eu plantei algodão
nos campos do sul
pros
homens de
sangue
azul
que pagavam o
meu
trabalho
com
surra de cipó-pau. (Trindade, 1961: 10)
Nessas
estrofes, há
um
questionamento a
respeito de
por
que o
negro
ser
tão maltratado,
embora tenha contribuído
para a prosperidade
econômica e
social do Brasil –
com
seu
trabalho no
plantio da
cana-de-açúcar no
Nordeste,
cujos
engenhos tornaram o
país o
maior
produtor de
açúcar da
era colonial –, e de
sua
antiga
metrópole e
seus
aliados –
com
seu
trabalho no
Sul, no
plantio do
algodão
que, uma
vez exportado
para Portugal e daí para a Inglaterra, contribuiu
para o
desenvolvimento da
indústria
têxtil desse
país e
para a
própria
Revolução
Industrial
aí
iniciada,
berço do
capitalismo
contemporâneo.
Porém, é na
última
estrofe
que a
angústia se revela
com
maior
intensidade:
—
Basta,
mano,
pra eu não chorar (Trindade, 1961: 10)
Em todo o poema, o autor utiliza-se de uma narrativa para denunciar o mundo que negou o negro como ser humano e sempre o condenou a não ser. Há no texto uma força natural e uma voz individual, rica e ardente, que se confunde com a voz coletiva e conclama os negros a se conscientizarem, a assumir orgulhosamente sua identidade e a lutar contra a discriminação.
A
imagem
que o Brasil
passa de
nação
em
que
diferentes
grupos
étnicos convivem
em
relativa
estabilidade
não é verdadeira,
pois os
negros sofrem
preconceito de
todo o
tipo,
apesar dos
eufemismos
que o camuflam,
sobretudo
depois
que o
país passou a se
reconhecer
mestiço e a
criar
alternativas de afirmação
para afro-descendentes. De
toda
forma,
isso reproduz uma
verdade
dada, uma
justificativa
para
sociedade
admitir
incontestável a inferioridade deles e,
assim,
atribuir a essa
visão estereotipada
um
caráter
universal
natural, tornando-os
cada
vez
mais
socialmente excluídos
em
função da
maneira
pela
qual
são representados:
marginais.
O
perfil do
negro
sempre foi colocado a
partir de uma
identidade
global, havendo
diferenças
apenas no
campo
econômico
social,
entre
ricos e
pobres, o
que propiciou
sua despersonalização,
pelo
fato de
seu
corpo
ser
aprisionado
pelos
olhares
que o excluem e revelam
não
só
nos
modos
como o
negro é
olhado
pelo
outro,
como
também na
maneira
como
olha
para
si
mesmo.
A
questão do
reconhecimento do
negro é
relativa,
pois
não
basta
ter
pele
escura
para
pertencer à
comunidade de
irmãos
ou
possuir os
mesmos
interesses.
Segundo Gomes e
Pereira (2001), ao
lado da
semelhança da
cor, devem-se
considerar
outros
fatores
que
tanto aproximam
como podem
afastar,
isso
porque
muitos
negros tiveram de se auto-negar
para se afirmarem. É o
que se percebe
nos
versos da
segunda
estrofe de “Negros”,
constante
em
Trindade (1988):
Negros
senhores na América
a
serviço do capital
Não são meus irmãos. (Trindade, 1988: 15)
Aqui, sente-se
como se dá a
tomada de
consciência do
poeta e
como a auto-identificação liga-o ao
destino de
sua gente. Nesses e,
mais
ainda,
nos
últimos
versos, o eu-lírico
mostra
que o
reconhecimento se dá
não pelos
bens
que se possui,
mas
pela negritude:
Só os
negros oprimidos
escravizados
em luta por liberdade
são
meus irmãos. (Trindade, 1988: 15)
No poema acima, o eu-lírico se coloca na condição de negro e fala de si mesmo, sem pretender definir sua identidade apenas por meio de ideologias em prol da classe menos privilegiada, porque sua ideologia/bandeira é muito mais complexa. Na construção da identidade do negro estão, portanto, incluídas experiências simbólicas enraizadas e integrantes de sua cultura, como a arte e a religião, bem como o espírito libertário desse povo que quer ser visto não pelo corpo ou pela cor da pele.
Nesse sentido, no poema abaixo, do livro Poemas de uma Vida Simples, verifica-se a construção da identidade pessoal por meio de um relato que perpassa pela reconstrução de imagens da infância para o fluxo da memória dos labores e acontecimentos da vida adulta para, enfim, chegar à conclusão da imutabilidade de sua condição e caráter:
Poema Autobiográfico
Quando eu nasci,
Meu pai batia sola,
Minha mana pisava milho no pilão,
Para o angu das manhãs...
Portanto eu venho da massa,
Eu sou um trabalhador...
Ouvi o ritmo das máquinas,
E o borbulhar das caldeiras...
Obedeci ao chamado das sirenes...
Morei num mucambo do "Bode",
E hoje moro num barraco na Saúde...
Não mudei nada... (Trindade, 1944: 78)
No poema Para que vim, do mesmo livro, Trindade apresenta o conteúdo da sua esperança (cuidar de jardins, oferecer flores aos deuses e às mulheres, trabalho, liturgia e amor), algo insondável em tempo de guerra; por isso, é preciso mudar de atitude e atualizar o conteúdo da esperança às contingências históricas, transformando-o numa luta pela paz. Nesse processo, não há repostas prontas, nem o próprio Deus está presente, como uma mão invisível, para preencher o lugar humano, a tarefa de fazer a história. É isto que o poeta parece querer dizer:
Eu vim para cuidar de jardins
Plantar coloridas flores
Regá-las ao
sair do sol
Fazer
lindos buquês
E ofertá-los aos
deuses e às
mulheres.
Mas há
ameaça de guerra
E os
jardins
não sobreviverão ao fogo
Não levarei
flores aos deuses
Nem às mulheres
Pregarei a paz. (Trindade, 1944: 62)
Em sua poesia, Trindade também ressalta o valor da beleza da mulher negra, como se pode ver no poema abaixo:
Linda Negra
Naquela noite
ficou o teu olhar branco
vagando no escuro
entre ternura e medo
teus olhos grandes
dançavam como loucos
na música do silêncio
Eu era animal e poeta
a procurar em ti
o que perdi em outra
Linda negra. (Trindade, 1961: 79)
Em todas as suas dimensões, a poesia de Trindade revê as relações entre negros e não-negros na sociedade brasileira, como também indaga sobre o grau de aceitabilidade da condição de homem de pele escura. Não se trata de um discurso de autocomiseração pelo passado de sofrimento do povo negro nesse país, mas de uma busca de identidade por meio de uma reflexão histórica e pela valorização das virtudes e capacidades criativas e de luta desse povo.
Se olhadas numa perspectiva comparatista que leve em conta as demandas de seus diferentes momentos históricos, as obras de cada poeta enfocado no presente estudo apresentam similitudes e (des)continuidades temáticas. Todavia, acima de tudo, o que as une é o fato de serem expressões artísticas de uma etnia socialmente marginalizada devido à injusta condição de servilismo que outrora ocupara e que hoje enfrenta a tarefa histórica de
reconstruir
sua própria identidade para adaptar-se às exigências do
mundo contemporâneo e resistir, desta vez, ao discurso hegemônico da globalização das economias e do apagamento de culturas minoritárias em favor da cultura de base judaico-cristã, ocidental e capitalista.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERND, Zilá. Introdução à
literatura negra.
São Paulo: Brasiliense, 1988.
BERND, Zilá. Negritude e literatura na América Latina. In: Rosa Helena Blanco & Márcia Rios da Silva. (Org.). Estampa das Letras: literatura, lingüística e outras linguagens. Salvador: Quarteto, 2004.
CAMARGO, Oswaldo de. O negro escrito. São Paulo: GRD, 1987.
CASTRO ALVES, Antônio de. Canto da esperança: poesia social, libertária e lírica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
COLINA, Paulo.
Antologia contemporânea da
poesia
negra brasileira.
São Paulo: Global, 1982.
DAMASCENO, Benedita Gouveia. Poesia negra no modernismo brasileiro. 2ª ed. Campinas: Pontes, 2003.
FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Difel, 1972.
FONSECA, Maria Nazareth Soares. Visibilidade e ocultação da diferença: imagem de negro na cultura brasileira. Belo Horizonte: PUC-Minas, 2001.
FRAGOSO, Frei Hugo. O etnocentrismo na
primeira
evangelização do Brasil. Convergência, 233, 199?.
FRIZOTTI, Heitor. O
resgate da
identidade negra. In: Antônio Aparecido da Silva (org). Existe
um
pensar
teológico negro? São Paulo: Paulinas, 1998.
GIL, Gilberto. Raça humana. São Bernardo do Campo: Emi-Odeo/WEA, 1984.
GAMA, Luiz Gonzaga Pinto da. Primeiras trovas burlescas e outros poemas. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
HISTÓRIA negra. parte 2. Disponível em: www.racablac.vilabol.uol.com.br./historiablac.htm
LUNA, Luiz. O negro na luta contra a escravidão. 2ª ed. Rio de Janeiro: Cátedra/INL, 1976.
ASSIS, José Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1973, v3.
PEREIRA, Edimilson de Almeida & GOMES, Núbia Pereira de M. (2001). Ardis da imagem: exclusão étnica e violência nos discursos da cultura brasileira. Belo Horizonte: Maza/ EDPUCMG.
RACISMO: o gato que continua. Disponível em www.racablack.vilabol.uol.com.br/racismo.htm
SCHWARCZ, Lilia Moritz & SOUZA REIS, Letícia Vidor de. (Org.). Negras imagens: ensaios sobre cultura e escravidão no Brasil. São Paulo: EDUPS, 1996.
TRINDADE, Solano. O poeta do povo: Solano Trindade. São Paulo: Cantos e Prantos, 1999.
TRINDADE, Solano. Tem
gente
com
fome e
outros poemas.
Rio de Janeiro: [s.e.], 1988.
www.terrabrasileira.net/floclore/origens/africana.cultura.html
www.portalafro.com.br/artesafricana.htm
www.feranet21.com.br/artes/culturanegra.htm