Notas
sobre a história da língua portuguesa
em O Idioma Nacional
de Antenor Nascentes

José Pereira da Silva (UERJ)

 

INTRODUÇÃO       .

Nem todos os países falam línguas que lhes sejam próprias.

Assim, por exemplo, se em Portugal se fala o português, em França o francês, na Inglaterra o inglês, na Espanha o espanhol, que são línguas próprias destes países; na Suíça se fala o francês, o italiano, o rético e o alemão, na Argentina, no Chile, no Uruguai e outros países da América a língua é o espanhol, embora em alguns deles o povo ainda fale línguas indígenas.

O nosso Brasil está colocado entre os países sem língua própria.

Descoberto em 1500 por Pedro Álvares Cabral, desde então passou a ser colonizado pelos portugueses que nele, a par de seus costumes, a religião, etc., introduziram a sua língua.

A língua própria do Brasil seria o tupi, falado pela maior parte por nossos indígenas, mas o tupi foi inteiramente suplantado pelo português.

O português falado no Brasil, pela mistura com o tupi e com os falares dos africanos introduzidos no país e por outros motivos que não nos cabe aqui expor, é diferente do falado em Portugal.

Uma criança brasileira, de quatro anos até, distingue logo quando quem fala é um patrício seu ou é um português.

A nossa língua, pois, é a portuguesa, com as diversas modificações que no correr dos séculos nós lhe demos.

(Nascentes, 1960: 5)

Para homenagear o ilustre filólogo Antenor Nascentes, Professor Emérito do Colégio Pedro II, apresentaremos alguns destaques da diacronia da língua portuguesa pinçados no capítulo “A língua portuguesa – sua origem, história e domínio”, da página 173 à 263 do livro O Idioma Nacional, um dos mais conhecidos e mais utilizados pelos meados do século XX, na especialidade.

Em primeiro lugar, é indispensável louvar a simplicidade e a concisão com que Nascentes trata da diacronia da língua portuguesa, resumindo de forma tão segura o assunto em menos de noventa páginas.

Na relação das línguas provenientes do mesmo latim popular “que os romanos levaram às Gálias, à Helvécia, à Dácia e a todas as demais províncias do Império” (p. 175), desconsideram-se o galego, o catalão e o franco-provençal, apesar de relacionar o dalmático, que já era língua morta desde o final do século XIX.[1]

É importante a observação feita na página 176 relativa ao fato de que não se caracteriza uma língua pelo seu léxico, lembrando que o romeno, por exemplo, que é uma língua românica, tem percentual léxico bem inferior ao albanês, procedente do ramo ilírio do indo-europeu.

Antenor Nascentes considera já formada a língua portuguesa na época da invasão dos árabes, em 711, afirmando peremptoriamente que “A língua portuguesa formou-se na parte ocidental da Península Ibérica num período que vai do quinto século ao oitavo” (p. 177), quando a Lusitânia deixa de ser governada pela dinastia visigótica, mantendo o seu vernáculo, apesar de influenciado pelo árabe e, por isto, denominado moçárabe, principalmente ao sul do Tejo.[2]

Justificando a declaração com que abre o capítulo, Nascentes argumenta a favor da peculiaridade da formação do português:

O noroeste da península, desde as épocas primitivas, sempre obedeceu a destinos próprios, diferentes dos do resto da região.

Lá dominaram os celtas, como ainda hoje atesta a toponímia; lá se estabeleceu o reino dos suevos; lá se criou um feudo, mais tarde livre de laços de dependência.

Por conseguinte, graças a estes antecedentes, desenvolveu-se sempre ali um falar que se distinguia dos outros por traços característicos.

Ao falar desta região (Gallaecia), cujos limites ainda no meado do século XI chegavam ao Mondego, pode dar-se o nome de galeziano.

A independência do antigo condado aumentou a diferenciação que já se notava entre o galeziano do norte do Minho e o do sul (que deu o português). (p. 178).

Em menos de duas páginas, Nascentes consegue sintetizar uma descrição do latim vulgar, além de compará-lo com o clássico.

 

FONÉTICA HISTÓRICA

É interessante a observação de que “As consoantes não representam sons musicais, mas sim modos de articulação das vogais que elas acompanham, de maneira que não podem soar ou ser ouvidas senão com uma vogal” (p. 184), lembrando ainda que “cada consoante pode ser comparada com um ruído conhecido: o fé, por exemplo, lembra o arfar de uma locomotiva” (ibidem)[3].

Na exemplificação dos ditongos, há duas situações em que é fácil discordar do autor: quando afirma que “falta o ditongo ou porque no Brasil este conjunto de fonemas soa como o fechado” (p. 195) e quando marca a nasalidade no i do ditongo ũi que ocorre apenas na palavra muito, observando que “só aparece neste vocábulo e na forma apocopada mui com esta grafia, pelo que se poderia escrever muim, muinto” (p. 195, nota 1). A existência da ultracorreção “douze”, por exemplo, é um vestígio da consciência do brasileiro de que existe um desprestígio social para a simplificação do ditongo “ou” e a nasalização do ditongo ũi ocorre principalmente na vogal.[4]

A tendência para eliminar os hiatos é explicada como uma tendência geral das línguas, abonada pela definição de sílaba oferecida por Saussure “como uma unidade constituída por um ou vários fonemas de abertura crescente da boca, seguidos de um ou vários fonemas de abertura decrescente < >”, lembrando que, neste caso, “o hiato representa o rompimento dessa cadeia, porque apresenta duas aberturas consecutivas < <, exigindo por isso maior esforço” (p. 204).

No registro das consoantes do português, é importante constatar algumas que não são correntes na fala do brasileiro ou não costumam ser apresentadas como tais em nossas gramáticas descritivas, como, por exemplo: “bê – fricativo, bilabial, sonora”; “dê – fricativa, dental, sonora”[5], “lê – fricativa, lateral velar, surda” e “nê – oclusiva, nasal, velar, sonora”.

Na página 198, observa que “As línguas românicas ficaram, como o latim vulgar, com acento essencialmente intensivo, isto é, a sílaba tônica se articula mais forte do que as átonas, embora concomitantemente se possa perceber subida de tom”, que não é traço distintivo na classificação dos fonemas dessas línguas, que não são tonais.

Em menos de duas páginas sintetizou os metaplasmos: prótese, epêntese, paragoge; aférese, síncope (e haplologia), apócope (sinalefa e ectlipse); crase, apofonia, metafonia, alargamento, redução, nasalação e desnasalação, abrandamento, degeneração, vocalização e consonantização, permuta e metátese.

Não somente a naturalidade da ocorrência da base dos ditongos ser fechada é explicada pela influência metafônica da semivogal, mas também a pronúncia corrente das vogais “e” e “o” átonas em final de palavras como se fossem /i/ e /u/. É por isto que são acentuados graficamente os ditongos tônicos com vogais abertas como “anzóis”, “chapéu” e “papéis”, por exemplo.

Com a neutralização das vogais átonas finais dos temas em “e” e em “o” (pronunciados como /i/ ou /u/ na maior parte da lusofonia), estas terminações passam a ser interpretadas graficamente como se fossem grafados com “e” ou “o” para as regras de acentuação gráfica, considerando-se que são acentuadas naturalmente as penúltimas vogais nas palavras terminadas em a(s), e(s), o(s), em, ens e am (Cf. Dequi, 2002).

 

MORFOLOGIA HISTÓRICA

No capítulo sobre a morfologia, a dificuldade relativa à expressão do gênero dos substantivos no português vai da página 217 à 219, lembrando que “essa confusão já é antiga” (p. 217) e concluindo que “por analogia criaram um feminino em a” para os nomes em “or” e “nte”, que eram invariáveis em fases mais antigas da língua portuguesa[6].

Quanto à produtividade dos verbos na língua portuguesa, cujas aquisições e formações recentes costumam ser incorporadas à primeira conjugação, Nascentes lembra que também é produtiva a segunda conjugação pelo menos para os verbos incoativos em –scer e em –cer, como “acrescer”, “aquiescer”, “aurorescer”, “coalescer” ou como “abastecer”, “aborrecer”, “abrandecer” etc. (Cf. Houaiss, s.v. –scer).

Na formação dos verbos, Nascentes utiliza um argumento comparativo com o espanhol antigo para provar que o futuro do subjuntivo provém do futuro perfeito e não do pretérito perfeito do subjuntivo, informando:

A prova de que este tempo (que só existe no português, no espanhol e no romeno) foi tirado do futuro e não do perfeito do subjuntivo está não só no seu emprego sintático, mas também na forma em o que no espanhol antigo aparece (amaro) (p. 227).

Na constituição do futuro do presente e do futuro do pretérito na língua portuguesa, é tão intenso o sentimento lingüístico de composição da sua estrutura que se permite a intercalação de pronomes oblíquos entre a forma proveniente do verbo principal e a forma proveniente do auxiliar, como em amá-lo-ei, amá-lo-ia, amar-nos-emos, amar-nos-íamos etc. (Cf. p. 232).

Apesar de ser uma novidade nos estudos diacrônicos do português, que pouco tratam da formação perifrástica de nossa conjugação verbal, Nascentes a descreve sem se referir ao fato de que a oposição entre formas simples e formas compostas costuma distinguir esses tempos quanto ao aspecto perfeito/imperfeito. (Cf. p. 232-234)

 

SINTAXE HISTÓRICA

Na sintaxe histórica, sem abandonar inteiramente as referências a sua origem latina, Nascentes prioriza os estudos diacrônicos dentro da lusofonia, comparando o português arcaico com o atual e o lusitano com o brasileiro.

 

O LÉXICO PORTUGUÊS
E O PORTUGUÊS DO BRASIL

Como autor do excelente Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, o capítulo relativo ao léxico português apresenta uma síntese do trabalho que ali desenvolveu, com uns 100.000 verbetes, distribuídos em europeus (2.083), asiáticos (949), africanos (47), americanos (102), oceânicos (37), gregos (16.079) e latinos (80.703)

 

CONCLUSÃO

É natural que eu não tenha resumido aqui todas as contribuições particulares de Antenor Nascentes sobre a diacronia da língua portuguesa, excluindo apenas o que aparece na maioria dos estudos similares. O tempo de uma comunicação e a extensão desse texto nos dão bem a imagem dessa deficiência e do nosso esforço de síntese.

O conjunto das conferências, palestras, comunicações, pôsteres, testemunhos etc. que ocorrerão nesse evento será um retrato mais seguro da importância de Antenor Nascentes nos estudos lingüísticos e filológicos da língua portuguesa.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DEQUI, Francisco. Português fono-orto-morfo. 5ª ed. Canoas: Centro de Estudos Sintagramaticais – IPUC, 2002.

HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico Houaiss de língua portuguesa. Rio de Janeiro: Instituto Antônio Houaiss; Objetiva, 2000.

NASCENTES, Antenor. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1932.

––––––. Elementos de filologia românica. Rio de Janeiro: Organização Simões, 1954. Coleção Padre Nóbrega, n° 4.

––––––. O idioma nacional. 3ª ed. De acordo com a Nomenclatura Gramatical Brasileira. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1960.

NORBERG, Dag. Manual prático de latim medieval: I – breve história do latim medieval. Tradução: José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2007. Disponível em  http://www.filologia.org.br/soletras/12sup/suplemento1.doc.

PERINI, Mário A. Princípios de lingüística descritiva: Introdução ao pensamento gramatical. [São Paulo]: Parábola, 2006. Coleção Linguagem, n° 17.


 


 

[1] Complementam esse tópico de forma brilhante os Elementos de Filologia Românica (Organizações Simões, Rio de Janeiro, 1954, 109 páginas), de que estamos preparando uma edição atualizada e comentada.

[2] Dividido em três zonas no período de dominação árabe, assim se pode ver lingüisticamente Portugal: “Na primeira, que ia do Minho ao Douro, a influência dos dominadores foi quase nula; na segunda, do Douro ao Tejo, as povoações, do século VIII ao XII, pertencem ora aos cristãos, ora aos árabes; finalmente, na terceira, o árabe predomina” (p. 178).

[3] “Cumpre distinguir som e ruído. Som propriamente dito é o que produz uma sensação contínua e cujo valor musical pode ser apreciado; o ruído é, como o tiro do canhão, um som curto demais para que se possa classificar na escala musical, ou uma confusa mistura de sons, como o trovão ou o barulho das ondas” (p. 183-184).

[4] Assim como a maioria absoluta de nossas gramáticas, também aqui se registram ditongos crescentes e decrescentes, sem qualquer referência à distinção em que se constituem estruturalmente. Na verdade, o termo “semivogal”, que Nascentes critica implicitamente ao registrar entre parênteses “(conforme a NGB)” não corresponde ao primeiro fonema de um ditongo crescente, mas apenas ao segundo fonema do ditongo decrescente.  Veja-se o que diz Dag Norberg (2007: 18) em seu Manual Prático de Latim Medieval:

“As vogais e e i em hiatos fecharam-se para chegarem à semiconsoante y: vinea > vinya > italiano vigna, espanhol viña, francês vigne. O autor do Appendix Probi previne seus alunos contra as grafias vinia, cavia, lancia, calcius, baltius, grafias que encontramos mil vezes no latim merovingiano. Paralelamente, o e u em hiatos se fecharam numa semiconsoante; cf. Appendix Probi: vacua non vaqua, vacui non vaqui.

[5] Naturalmente, a homorgânica correspondente, que deve ser a consoante de “tia” em oposição à da palavra “dia”, deveria ter sido descrita também, o que não ocorreu.

[6] Confira na recente obra de Mário Alberto Perini (2006), o capítulo sobre “Classes e Funções”, em que se busca uma nova classificação para os nomes que têm funções de substantivos e de adjetivos, como “amigo”, “professor”, “ouvinte” etc., que reduz ainda mais o insignificante número de “substantivos” que poderiam ser interpretados como flexionáveis em gênero.