PEDRO BLOCH
ENTREVISTA
ANTENOR NASCENTES

 

Não fosse a clamorosa injustiça de sua expulsão de uma escola primária, por uma professora sueca, e talvez, hoje, o professor Antenor Nascentes, filólogo de fama mundial e uma das glórias de nossa cultura, que dirigiu o projeto do Dicionário da Academia, escreveu mais de cinqüenta volumes didáticos e é membro de inúmeras instituições científicas de tantos cantos da Terra e merecedor de tantas honrarias e homenagens (“os maiores filólogos do mundo, Millardet, Fauché, Américo Castro e tantos outros, antes de visitarem o Pão de Açúcar, correm para a casa modesta do Andaraí”), e talvez o professor não passasse de um modesto encadernador de livros da Rua do Catete.

Tudo tem acontecido para o bem com este homem admirável, mestre de várias gerações, que impregnou com seu exemplo e saber. Tudo – especialmente injustiças e desastres – redundou em coisas positivas.

Nascentes é um homem tremendamente metódico. Chega às raias do impossível sua capacidade de organização, seu processo de arquivar. Ele é tanto capaz de guardar uma palavra como um tijolo e empregá-los no momento em que se fazem necessários. Seu fichário resulta do fato de ler tudo de lápis na mão, durante dez horas por dia.

Só recentemente, em virtude de um deslocamento de retina, tive que reduzir a quatro horas minha ração de leitura. Ler, para mim, é um prazer tão grande que, quando se cogitou de meu ex-libris, pensei logo numa lâmpada grega e na legenda Sempre lendo.

Quando o professor Nascentes diz que guarda tudo, tudo quer dizer tudo. Conserva a primeira cartilha, o primeiro caderno (de 1891!), a primeira História Sagrada, o primeiro livro que comprou com seu próprio dinheiro (Histórias da Carochinha), o diploma da escola pública... Está sempre em dia com tudo.

“Leio o Correio da Manhã desde o primeiro número. Quando viajo, os jornais ficam acumulados para serem lidos na minha volta. (“Quero saber o que houve, o que se publicou, quem morreu.”)

Arquiva até tijolo! Um dia, quando sonhou construir sua primeira casa, acolhedora e modesta, sua mãe riu muito dos sonhos do filho imaginoso. (“Casa! Como?”) Um caminhão passava pela rua e deixou cair dois tijolos. Ela mandou que um menino fosse apanhá-los, e, ainda achando graça, entregou-os a Antenor dizendo: “Olhe, dois tijolos para a sua casa.” Ele guardou e, quando construiu sua residência, utilizou os tijolos, marcando-os com alcatrão. Depois a casa foi demolida, os dois tijolos preservados e utilizados no lar definitivo que conseguiu edificar mais tarde.

É impressionante que um homem daquela idade não tenha uma só ruga no rosto. Nem no rosto, nem na alma.

Não guardo rancor nem sentimentos negativos. Este deve ser o segredo de meu rosto aos 78 anos. Quando alguém me faz mal ou alguma coisa me desagrada, elimino-os simplesmente. Passam a não existir. Lavo-os com uma esponja. Amnésia total.

Das pessoas que stima, porém, sabe tudo. Sua ternura se solidariza com as vitórias dos milhares de alunos e se comove com seus problemas e tristezas. Eu mesmo, que fui um deles, posso afirmar que Nascentes sabe o nome de todas as minhas peças, sabe tudo o que se publica a meu respeito, acopanha, de olhos iluminados, as pequenas e grandes vitórias daqueles que um dia beberam de seu saber e de sua humanidade.

A voz também não tem rugas. Voz de menino quase octogenário. A voz sem o homem falaria de um adolescente em plena ebulição e ânsia de descobrimento da vida e do mundo.

Tijolos, palavras, sentimentos e pensamentos são ordenados neste homem singular que tem como hobby tocar violino e um culto especial por Verdi. Certa vez Mário de Andrade foi visitá-lo e viu uma estatueta de Verdi sobre o piano. Ficou quieto. Entra na outra sala e vê um retrato de Verdi pendurado na parede e explode: “Mas assim já é demais!” Nunca é demais para o professor aquilo que ele ama. Espírito aberto a tudo que é moderno, é capaz, também, de adorar um samba, quer de Noel, quer de Tom e Vinícius. Gostar mesmo! Sem atitude, sem restrições!

“Sinto profundamente tudo que é novo. É a minha maneira de me conservar jovem.”

E quando lhe faço lembrar que ele usa gíria, de vez em quando, o professor protesta:

A gíria tem um alto poder expressivo! Rui Barbosa, certa vez, usando a expressão é o suco, no sendito de é muito bom, provocou verdadeiro escândalo. Pena, muitas vezes, é que a vida das palavras e expressões de gíria seja tão curta. Algumas palavras, entretanto, conseguem cidadania.

Libertando-se das algemas das regras o professor Nascentes é capaz de conversar naquela base, decidindo um bom papo nas livrarias São José ou Acadêmica (seus pontos de quase todos os dias).

Antenor de Veras Nascentes nasceu a 17 de junho de 1886, carioca da Rua do Catete. Escapou de ser Manuel, graças a uma madrinha cheia de nove-hoas que lhe escolheu o nome. Filho de Dácio de Veras Nascentes, humilde servente da Alfândega, e de D. Paulina. Já foram cinco irmãos.

Aos quatro anos e meio mamãe foi matricular minha irmã mais velha no Colégio Frazão. Eu, ainda de camisola (nem calças usava), acompanhei-a e não quis voltar, tal a fascinação que a escola exerceu logo em mim. Li com cinco anos. Os primeiros dois mil-réis que mamãe me deu foram direto para a livraria. Para conseguir comprar as Histórias da Carochinha, vim a pé da cidade para casa durante um mês, juntando um tostão por dia. O outro tostão que papai me dava era para um pão, de dois vinténs, e três bananas. Note-se que, então, eu já estava numa escola da Rua da Quitanda. A passagem para esta escola decidiu o meu destino. A coisa foi assim: imagine que os Frazões haviam contratado uma professora de ginástica sueca. Pois no fim de uma de suas aulas saiu um bafafá de que eu estava inocente, mas fui por ela acusado. Para não delatar o responsável, preferi ser expulso.

Meu pai tinha um superior na Alfândega, cuja esposa era professora na Rua da Quitanda. Ao saber do sucedido, propôs que eu fosse para aquela escola. Fui. Ali, D. Amélia Fernandes da Costa me deu provas do que podem uma grande mestra e um coração de mulher. Fui um dos aprovados, com distinção, no exame final realizado na Benjamin Constant; tão miúdo, ainda, que precisava alcançar o alto do quadro-negro na ponta dos pés, provocando gargalhadas dos examinadores. Ao terminar o primário, ela, diante da pobreza de meu pai, se prontificou a me ajudar para que pudesse fazer o secundário. Consegui matrícula gratuita e continuei o meu rosário de distinções. Pois D. Amélia, ainda que sentindo imensa alegria, nunca me fez um elogio. Jamais ouvi dela palavra de louvor. Nem era preciso. Seu olhar dizia tudo.

Dentre os colegas do Pedro II guardo, até hoje, a companhia de Manuel Bandeira, Artur Moses, Sousa da Silveira. Uma vez por mês nos reunimos, chova ou faça sol, em casa deste último.

Tive grandes mestres, como Fausto Barreto; o professor de inglês, Alexander, que não conseguia manter a disciplina; Said Ali era um magnífico professor de alemão, que saí falando do colégio; Vicente de Sousa ensinava Latim... Tantos outros!

Nerval de Gouveia ensinava Ciências. Em sua classe não havia mau aluno. Vagabundo tinha vergonha de ser vagabundo. Fazia brotar um pudor imenso da ignorância. Ele era uma espécie de precursor da moderna pedagogia. Amigo dos alunos, que ele tratava como a colegas. Estudava-se com alegria, aprendia-se pelo prazer de aprender.

Também foi nosso professor o insequecível Paulo de Frontin. Lecionava Mecânica e Astronomia. Podia-se acertar o relógio (nove horas) pela chegada de seu tílburi. Ensinava aluno seu até a usar o teodolito. Quando papai morreu (em 1903) não nos deixou nada. Não havia dinheiro nem pro aluguel. Mas sugeria-me, antes de falecer, que eu procurasse Frontin. Este me recebeu. Dirigia, então, as obras da Avenida Central. Fui nomeado e fiquei apontando janelas e gradis que saíam de edifícios em demolição. Fiz, depois, concurso para terceiro-oficial do Ministério da Justiça. Tirei o primeiro lugar e fui nomeado. Queria, entretanto, continuar os estudos. Por eliminação, fui para o Direito. Medicina e Engenharia era impossível, por causa do horário do meu trabalho. Havia duas faculdades de Direito na época, uma delas funcionando na parte da tarde no próprio Pedro II, cujo secundário tinha cursado com distinção. Eu não tinha os trinta mil-réis para a matrícula. Consegui ser matriculado de graça, em virtude das minhas notas, acompanhadas de um atestado de pobreza. Até o diploma foi gratuito. formei-me, mas nunca advoguei.

Grego, espanhol e português

– Estudei grego para fazer concurso para o Pedro II. Veio o Maximiliano e a cadeira foi extinta. Eu já estudava tanto, porém, que numa parte da manhã era capaz de ler 400 e tantos versos da Ilíada. Ia passar para o latim, quando se instalou o estudo do espanhol (facultativo), em retribuição ao ensino do português em cursos uruguaios. Preparei-me fazendo o levantamento de tudo que havia, em matéria de espanhol, de útil para o professorado, nas livrarias, na biblioteca Nacional, nas editoras estrangeiras. Surgiram muitos candidatos e o professor que, normalmente (em se tratando de cadeira criada), seria nomeado, passou a ser escolhido por concurso. Meu trabalho foi sobre Fonética Diferencial entre o espanhol e o português. Para me preparar, lia um dicionário, à razão de 30 páginas por dia, para anotar todas as palavras que eu pudesse ignorar na prova de tradução. (O perigo está sempre nas palavras sem sinônimos, como nomes de frutas, flores, coisas assim.) Entrei para professor de espanhol em 1919. Mas sofri muitas humilhações, porque ninguém estudava. Não havia nem horário, nem exame. Eu só podia apanhar as sobras dos horários. Quando surgiu o desdobramento das cadeiras de português e latim, me deram a escolher. Optei pelo português. Como existia o regime de revezamento de professores, fiquei livre, em 1927, para conhecer, em primeira viagem, a Europa, parte da Ásia e da África. Com o dólar a oito mil-réis.

Casei em 1912 com Salomé Adelaide. Somos primos. Ela é de Petrópolis. Essa xícara em que você está tomando café foi presente do Montebelo para as nossas bodas de ouro. Temos cinco filhos: Olavo (professor de português e latim), Célio, Elza, Aída, Teresa. Dez netos e um bisneto.

Sou profundamente religioso. Já tentei fumar, mas não consegui. A coisa não pegou. Viajei muito por este mundo. Guardo recordações inesquecíveis. Estudo, todos os dias, das 7 às 11 da manhã. À tarde vou à cidade. Fui colaborador do Correio da Manhã: crônicas de viagem e contos. Meus versos são inéditos. Só escrevo poesia quando uma coisa qualquer me choca muito, como por exemplo a destruição de Lídice. Só me liberto dos grandes choques com versos que escrevo só para mim. Pretendo destruí-los, é claro.

Emoção

– Dentre as maiores emoções de minha vida guardo a do dia em que, depois de um mês de olhos vendados, em virtude de uma operação, me tiraram a venda e pude ver novamente. Não é preciso dizer que fiz um poema.

Português ou brasileiro?

A língua que falamos no Brasil é uma simples variante do português. Continua com a mesma estrutura. O que faz parecer diferente é a pronúncia e palavras indígenas ou africanas... O que é fundamental, entretanto, continua o mesmo.

O Dicionário da Academia – O Dicionário da Academia, um projeto de Nascentes, realizado por uma equipe, está totalmente composto. O primeiro volume dos quatro que o completarão, já se encontra nas livrarias. O professor lembra que, só depois que a Academia o emendar, é que ele será, realmente, o Dicionário da Academia.

O critério das palavras introduzidas nele resulta da análise das coisas que devem ser do conhecimento geral. Palavras que transbordam da especialidade para a cultura geral. Quando se sente que transcende à especialização. Regionalismo só raramente. Entro quando adquire curso em todo o Brasil. Mas existem aquelas palavras que, embora sem curso, todos devem conhecer. É outro aspecto interessante do problema. A ciência divulgada e atualizada, a era atômica, trouxeram palavras indispensáveis. E assim por diante.

Mas voltando ao que você dizia do idioma que falamos. Mário de Andrade tentou uma língua brasileira. Mas creio que não acabou sendo nem a dele mesmo. Penso que ele próprio não acreditava em seu exagero. Guimarães Rosa? Considero-o interessantíssimo! Uma criação individual inesgotável. Dele só li Sagarana. Gostei tanto que fiquei com medo de ler suas outras obras.

Características do Dicionário da Academia? Pois não: ali estão aproximadamente 90.000 palavras, alinhadas em três anos de trabalho. O dicionário é prosódico (tem a transcrição fonética no alfabeto internacional); é semântico; de regência (com a regência exemplificada); fraseologia (como “bater o 31”, no sentido de “morrer”); e etimológico, mas só com etimologia comprovada.

Adjetivo, neto e avião – Ao ver uma dedicatória de um livro para seu filho Olavo, me espanto com a sequidão aparente: “A Olavo, o A.N.” O professor explica: “O adjetivo não tem valor.”

O curioso é que esse pudor de sentir se manifesta em tudo. Um dia o neto soltou papagaio com uma carta de Pop. O menino não teve a menor cerimônia em pegar numa carta importantíssimo, de filólogo mundialmente famoso, do arquivo de um homem que tudo guarda, e transformar o papel em pipa. Nascentes se limitou a soltar uma grande gargalhada.

Sua tolerância faz com que aceite a arte abstrata compreendendo-a em sua essência. (“Vivo a novidade para não envelhecer.”)

Sou o que a vida me entrega. Não quero ser nada, não quero nada de ninguém. Tenho a minha vida interior e uma infinita capacidade de adaptação a tudo que é novo. Gosto do moderno, até do avião a jato, apesar do desastre que sofri em 37, quando morreu gente e o avião caiu perto de Trinidad. Comigo viajava o José Iturbi, famoso pianista na época, e que só se preocupava com os dedos machucados. Eu tinha perdido os óculos e, saindo do avião que caiu ao mar, comecei a nadar sem ver nada, sem nada exergar. Mas veja você como é a minha vida. Na ida eu tinha sonhado passar dez dias em Trinidad. Seria tão bom! – pensei comigo mesmo! – Pois o desastre me proporcionou exatamente as férias que eu queria.

As palavras mais belas – “Não. Nunca pensei em função de palavras bonitas. Acho anticientífico, sabe? Não saberia dizer quais são as palavras mais bonitas de nosso idioma.”

Olho o mestre e me espanto. Aquele homem ama tanto as palavras que não quer escolher as mais belas entre as suas filhas. Não quer demonstrar predileção. (Já Platão se referia ao fato das coisas terem nome que merecem.) Analiso o rosto sereno, pronto para florescer em risos e gargalhadas sonoras, e admiro o escrúpulo de quem não destaca, dentre as outras, nem a palavra saudade.

Acontece, porém, professor Nascente, que eu gosto de adjetivos. Não tendo a sua grande responsabilidade de filólogo eminente, posso até escolher palavras que mais me agradem.

Pois aí vão os adjetivos que lhe cabem: culto, bom, respeitado, extraordinário!

E, diante de sua figura ilustre, não tive a menor dúvida de que uma das mais belas palavras de todos os idiomas é aquela que traduz o que o senhor, modelo de gente, representa para todos nós: Professor.

Esse homem fabuloso que conhece todas as regras, escafandrista do idioma, microscopista da gramática, analista da lingüística, arqueólogo da palavra, sonhador permanente da cultura e do cotidiano, é capaz de usar a mesma gíria que o malandro do morro carioca soltou na véspera. É quando lhe faço lembrar que ele usa gíria, de vez em quando, o professor protesta com veemência:

“De vez em quando, vírgula! SEMPRE!”