Uso de estruturas relativas não-padrão no português europeu popular[1]

Filomena Varejão (UFRJ)

 

INTRODUÇÃO

Tomando como ponto de partida as primeiras monografias dialetais de Amadeu Amaral (1920), Antenor Nascentes (1922), Mário Marroquim (1934), entre outros, neste início de século XXI, soma-se, no Brasil, quase um século de estudos acerca do funcionamento das mais diversas normas que constituem o português brasileiro. Mais recentemente, lingüistas e sociolingüistas, nos diversos programas de pós-graduação de universidades brasileiras, buscam conhecer a extensão das semelhanças e das diferenças no funcionamento do sistema fonético-fonológico e morfossintático das variedades européia e brasileira de português, tarefa que acabou por reacender o interesse pela sócio-história do vernáculo brasileiro, sobretudo, pelas origens de nossa heterogeneidade lingüística.

Esperando contribuir com esses estudos, este trabalho pretende refletir sobre as estruturas de relativização não-padrão no português europeu popular. Tais estruturas já foram cuidadosamente descritas para o português brasileiro falado (Lemle 1978; Tarallo 1983), no qual se observa que as relativas do tipo padrão são pouco usuais, sendo mais comuns as estratégias copiadora e cortadora.

Dois princípios são subjacentes a esta investigação: (i) o (incansável) combate à postura preconceituosa de que o português dos brasileiros é “errado” e o dos lusitanos é “correto” e (ii) a defesa de que, pelo menos em relação às estruturas não-padrão em foco, a configuração do português brasileiro popular pode ser fruto de um processo natural de variação e de mudança secularmente verificado no português, aqui acelerado devido às condições históricas e sociais particulares à formação de países colonizados. Nossa hipótese, portanto, é a de que as falas lusitana e brasileira populares são sensíveis a formas variáveis na mesma medida de qualidade, embora existam diferenças quantitativas significativas entre elas.

Com o intuito de traçar um painel comparativo entre os contextos nos quais as relativas não-padrão são mais usuais nas duas variedades de português, cotejam-se os principais resultados de pesquisas variacionistas acerca das estratégias de relativização no português brasileiro com resultados da observação desses mesmos fenômenos em realizações não-padrão no português europeu popular. Os primeiros resultados mostram que relativas cortadoras e copiadoras também são encontradas na fala popular de portugueses, embora com menor freqüência e em contextos mais restritos, o que, no entanto, mantém possível a hipótese de que fenômenos marginais do vernáculo brasileiro aqui aportaram com os primeiros colonizadores.

 

PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS

Para constituir uma base teórica que sustentasse a discussão central a que se propunha este trabalho, foram abordadas idéias dos seguintes campos de pesquisa:

a)       dos debates sobre as origens do vernáculo brasileiro, arrolaram-se argumentos pertinentes à hipótese da crioulização/descrioulização (Guy, 1989); às teses da crioulização leve (Lucchesi & Baxter, 1997) e da transmissão lingüística irregular (Lucchesi, 1998; 1999) e à defesa da deriva natural (Naro & Scherre, 1993);

b)       sobre a história da constituição e da codificação da norma culta do português brasileiro, buscaram-se, respectivamente, as idéias de Guimarães (1996) e Pagotto (1998; 2001);

c)       da variação no português europeu, foi resenhado o trabalho de Peres & Móia (1995);

d)       a respeito dos fatores sociais e estruturais que governam os usos variáveis no âmbito das estratégias de relativização no PB, foram consultados os trabalhos de Mollica (1977) e de Tarallo (1983); para o fenômeno da variação na concordância verbal no PB, destacamos as pesquisas de Naro & Scherre (1993) e Scherre & Naro (2001).

Tendo em mente os resultados e as análises das investigações referidas, foi organizado um corpus em que se reuniram formas não-padrão das estruturas sintáticas mencionadas. Foi consultados 21 inquéritos da Amostra Cordial-sin (Corpus Dialetal com anotação Sintática)[2], organizada pela professora Ana Maria Martins, da Universidade de Lisboa. Essa Amostra reúne a fala de indivíduos de pouca ou nenhuma escolarização, habitantes de regiões não-urbanas de todo o território português.

Como nosso objetivo se limitou à observação de aspectos estruturais e por lidarmos com uma pequena quantidade de dados retirados de uma amostra que não apresenta uma distribuição regular de informantes, não fizemos uma análise variacionista stricto sensu.

 

RESULTADOS E ANÁLISE

Um primeiro painel a respeito das relativas no PE popular pode ser assim traduzido em números: foram quantificadas 3315 ocorrências. Dessas, apenas para efeito de mensuração, foram destacadas 1498 relativas padrão de sujeito e objeto direto e 108 relativas padrão de funções oblíquas. Em atenção à finalidade de examinar em que contextos estruturais ocorriam cortadoras e copiadoras, foi constituído um corpus de trabalho com 103 dados como os seguintes:

(1) Há comeres que a gente também enjoa (Alcochete 4)

(2) Ainda tenho aqui uma netinha de dez anos, que ela, quando eu estou amassando [o pão], ela pergunta logo por a rosquilhinha (Camacha e Tanque 17)

Das pesquisas já realizadas no PB, selecionamos alguns contextos estruturais condicionantes para o uso dessas formas, a saber: a função sintática do constituinte relativizado (sujeito, objeto direto, complemento relativo, objeto indireto, adjunto adverbial, complemento nominal e adjunto adnominal); a animacidade do antecedente e o tipo de preposição cortada.

A tabela abaixo mostra as freqüências de cortadoras e copiadoras de acordo com as diferentes funções observadas:

Tabela 1. Cortadoras e copiadoras,
conforme a função sintática, no português europeu popular

 

 CORTADORAS

 COPIADORAS

Sujeito

 ---

 4 (14%)

Objeto direto

 ---

 7 (25%)

Adjunto adverbial

 58 (77%)

 6 (21%)

Complemento relativo

 14 (19%)

 1 (4%)

Objeto indireto

 1 (1%)

 2 (8%)

Complemento nominal

 2 (3%)

 4 (14%)

Adjunto adnominal (genitivo)

 0 (0%)

 4 (14%)

TOTAL

 75 (100%)

 28 (100%)

Do mesmo modo que Taralllo (1983) observou no PB, no corpus do PE, verificamos a preferência pela estratégia cortadora. Do total de 103 ocorrências não-padrão, 75 (73%) são cortadoras e 28 (27%) são copiadoras, como se vê na tabela.

A preponderância das cortadoras está de acordo com a função sintática predominantemente relativizada de modo não-padrão: o adjunto adverbial. Uma hipótese para sua maior freqüência poderia estar relacionada ao estatuto não argumental dessa função ou a fatores de processamento lingüístico, questões que ainda precisam ser investigadas. Também decorre desse fato o predomínio da preposição em entre as preposições cortadas e do traço [- animado] do antecedente.

Do mesmo modo que na pesquisa de Tarallo, também não se registraram cortadoras entre as relativas de função oblíqua, sendo categórica a ausência do pronome cujo no corpus. Nessa função, ou se verifica o uso de uma forma de esquiva ou de uma forma copiadora, como em:

(3) Havia um coiso qualquer de corrente de água, e lá em baixo havia um rochedo e ao fundo do rochedo fazia um grande pego de água (Cabeço de Vide 44)

(4) Mas quantas vezes a gente está a falar com uma senhora da sua idade que a vida dela foi toda no campo e não sabem as ervas! O nome das ervas (Figueiró 4).

Além de ser categórica para genitivos, a tendência maior para o uso de estratégia copiadora se encontra entre as relativas de objeto direto (7/28 ou 25% das ocorrências), como vemos em:

(5) Há duas [azenhas] lá em cima que eu nunca as vi trabalhar (Cabeço de Vide 36)

Uma curiosidade observada no corpus investigado é a forte concorrência entre estruturas padrão (108 casos) e não-padrão (103 casos) entre as funções oblíquas, como as exemplificadas abaixo:

(6) A caixa do arpão tem um furo que a gente mete um pedaço de madeira (Câmara de Lobos/ Caniçal 31)

Portugueses, havia muitos [na Suíça]. Porque é um país que emigram por volta de cinco mil portugueses para lá (Serpa 1)

Quanto aos relativizadores, observa-se a preponderância de QUE sobre os demais, tendência prevista por Tarallo (1983) e reafirmada por Silva (2005), em estudos do PB.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora quantitativamente haja uma distância considerável entre o PB e o PE, encontramos indícios de semelhanças entre os contextos estruturais favoráveis ao uso de formas não-padrão, pelo menos no que concerne aos fenômenos aqui observados.

Se é verdade que olhando o presente podemos investigar o passado, como Labov enunciou, defendemos que a presença dessas construções no corpus devem ser fruto de um processo natural de variação e mudança por que passam as línguas naturais. Dessa forma, tais estruturas podem ter aqui aportado com os colonizadores.

Em suma, sem conhecermos melhor o perfil da variação em Portugal e sem observar a forma como a norma foi codificada no Brasil (Pagotto, 1998; 2001), aspectos considerados “erros” na fala de brasileiros (relativamente à fala lusitana) merecem investigação mais aprofundada no português europeu, já que ainda precisamos conhecer melhor as normas reais dessa variedade.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMARAL, Amadeu. O dialeto caipira. São Paulo: O livro, 1920.

GUIMARÃES, Eduardo. Sinopse dos estudos do português no Brasil: a gramatização brasileira. In: GUIMARÃES, Eduardo & ORLANDI, ENI (orgs.). Língua e cidadania. Campinas: Pontes, 1996, p. 127-138.

GUY, Gregory. Linguistic variation in brazilian portuguese: aspects of the phonology, syntax and language history. Philadelphia: University of Pennsylvania. Ph. D. Dissertation, 1981.

LEMLE, Miriam. Heterogeneidade dialetal: um apelo à pesquisa. In: LOBATO, L.(org.) Lingüística e ensino do vernáculo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978, p. 60-94.

LUCCHESI, D. & BAXTER, Alan. A relevância dos processos de pidginização e crioulização na formação da língua portuguesa no Brasil. In: Revista estudos lingüísticos e literários, 1997, v. 19, p. 65-84.

LUCCHESI, Dante. A constituição histórica do português brasileiro: tendências atuais de mudança nas normas culta e popular. In: GROBE, S. & ZIMMERMANN, K. (eds.), 'Substandard" e mudança no português do Brasil. Frankfurt: TFM, 1998, p. 73 a 99.

____. A questão da formação do português popular do Brasil. In: A cor das letras, 1999, n. 3, p. 73-100.

MARROQUIM, Mário. A língua do Nordeste: Alagoas e Pernambuco. Curitiba: HD Livros, 1934.

MOLLICA, Maria Cecília. Estudo da cópia nas construções relativas em português. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1977.

NARO, A. & SCHERRE, Maria Marta Pereira. Sobre as origens do português popular do Brasil. In: D.E.L.T.A., 1993, v. 9, p.437-454.

NASCENTES, Antenor. O linguajar carioca. Rio de Janeiro: Organização Simões, 1922/1953.

PAGOTTO, Emílio G. Norma e condescendência; ciência e pureza. In: Línguas e Instrumentos Lingüísticos. Campinas: Pontes, 1998, n° 2.

____. Gramatização e normatização: entre o discurso polêmico e o científico. In: ORLANDI, Eni (org.) História das idéias lingüísticas. Mato Grosso: UNEMAT, p. 39-57, 2001.

____. Sobre as origens estruturais do português brasileiro: crioulização ou mudança natural? In: Papia, no 11, p. 40-50, 2001.

PERES, João Andrade & MÓIA, Telmo. Áreas críticas da língua portuguesa. Lisboa: Editorial Caminho, 1995.

SILVA, Bianca Graziela Souza Gomes da. O caminhão que eu trabalhava com ele subia qualquer ladeira: um estudo sobre a gramaticalização do que. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras. mimeo. Dissertação de Mestrado, 2005.

TARALLO, Fernando. Relativization strategies in brasilian portuguese. Universidade da Pennsilvânia, Tese de Doutoramento, 1983.


 

[1] Este trabalho é parte da tese de doutoramento, defendida em março de 2006, no Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da UFRJ, sob a orientação das professoras Maria Eugênia Lamoglia Duarte e Dinah Callou (co-orientador).

[2] Disponível em: www.clul.pt/sectores/cordialsin/projecto_cordial_corpus.html