Política, futebol e culinária
o entrecruzar das linguagens

Nícia de Andrade Verdini Clare (UERJ)

 

Quando comecei a estudar a linguagem da Política, percebi que ela não é um produto isolado. Ela se insere num contexto histórico-social que não pode ser ignorado. Como a linguagem é uma atividade criadora, produto da sociedade, ela vive em contínua evolução e é modificada, principalmente, por relações metafóricas e metonímicas, que surgem do povo para o próprio povo. O léxico não é um sistema fechado; ao contrário, está sempre aberto à evolução do mundo, do pensamento, da transformação da sociedade. Há uma interrelação entre a linguagem da Política e a da Economia. É praticamente impossível estabelecer uma fronteira entre as duas linguagens . Um antigo ministro da Fazenda na França ( barão Joseph –Dominique Louis) disse no século XIX: Daí-nos boa política e eu vos farei boas finanças.

Em ondas sucessivas e concêntricas, essas mudanças se irradiam por todo o imenso território brasileiro. Ao viver o cotidiano político em suas múltiplas facetas, o indivíduo cria. A criação é livre; não é privilégio de casta. Registram-se inovações de cidadãos de prestígio, relacionados ao poder, como o próprio Presidente da República – caso do fracassomania - e de simples desconhecidos anônimos para o contexto nacional.

A adoção depende de inúmeros fatores, entre eles, o prestígio do criador – caso de imexível x infritável - e a possibilidade de irradiação nacional, além do aproveitamento em outras áreas do saber humano.  É aí que ocorre o entrecruzar das linguagens, entrecruzar esse que vai surpreender-nos a todo instante. Política e futebol? Política e culinária? Por quê?

Vejamos: uma área afim da Política é o futebol. Como a Política, o futebol é uma arte que exige habilidade específica. Ambas se influenciam mutuamente. Foi assim que surgiu realmário, palavra composta por aglutinação: de real, moeda nacional, mais Romário, nome do craque brasileiro. Assim, realmário foi um nome jocoso sugerido para a nova moeda, que, dessa forma, seria supervalorizada.

Ronaldinho, o Ronaldo de hoje, também gerou Ronaldinhomania inspirado no -radical –mania usado em fracassomania, inovação do presidente Fernando Henrique.

Dar cartão vermelho , no futebol, significa punir um jogador com a expulsão do campo durante a partida disputada; na linguagem da Política, a idéia de expulsão associa-se à da demissão.

Por outro lado, a culinária também se faz presente junto à Política. Sua linguagem é absorvente e vai compor nosso quadro de inovações, caminhando transversalmente à linguagem da Política. Todos conhecem a famosa “pizza” sempre saboreada pelos políticos brasileiros. Estudaremos, agora, os seguintes termos culinários reaproveitados na linguagem da Política:

·          Desaquecer – termo usado, em Economia, no sentido de segurar o crescimento econômico desenfreado (Clare, 2004: 167);

·          Descongelamento – Na linguagem da Economia, significa dissociação. Equivale a divórcio na linguagem da Política (Clare, 2004: 169);

·          Fatiar – Seu sentido político é de desmembrar (Clare, 2004: 173);

·          Fervura – É o auge de uma crise política (Clare, 2004: 174);

·          Filé – Por ser o filé mignon uma das melhores porções da carne, por extensão metafórica, filé, na linguagem da Política, passa a significar elite (Clare, 2004: 174);

·          Fritura – Politicamente, significa queima de qualquer parlamentar, especialmente de ministros de Estado, em processo demissionário (Clare, 2004: 175);

·          Gordura – A palavra adquire, no jargão da Economia, um novo matiz: designa tudo que é excessivo, como abuso no aumento de preços, gastos exagerados etc. (Clare, 2004: 177);

·          Ovo – Metáfora atribuída aos problemas que o governo federal tem de enfrentar e resolver da melhor maneira possível (Clare, 2004: 193);

·          Peneira – Por associação metafórica com o objeto usado na cozinha para separar substâncias reduzidas a fragmentos, é usado para designar o vazamento de informações sigilosas (Clare, 2004: 194);

·          Assar como peru – Ser afastado de um cargo a contragosto. A associação com a ave se dá pelo fato de ser a preferida das ceias de Natal brasileiras. Normalmente, o peru é assado na véspera de Natal. Daí, o ditado popular: Só o peru morre de véspera. (Clare, 2004: 220);

·          Cair na frigideira – Gíria política que indica que determinado parlamentar – geralmente ministro – encontra-se demissionário (Clare, 2004: 221);

·          Colocar água na fervura – Antiga expressão popular que significa acalmar os ânimos, retomada pela linguagem da Política com o mesmo  sentido, embora  restrito aos membros dos poderes governamentais (Clare, 2004: 229);

·          Dieta de engorda – refere-se à atitude de certos partidos políticos, no sentido de aumentar sua bancada federal (Clare, 2004: 237);

·          Ir para o vinagre – Essa expressão usada na linguagem da Política significa fracassar. A associação metafórica ocorre por ser o vinagre um líquido ácido , de gosto forte, podendo ser associado a coisas ruins. (Clare, 2004: 246);

·          Linha macarrão - Estilo descrito pelo Gen. Newton Cruz, candidato ao governo do Estado do Rio de Janeiro em 1994. Consiste em entremear falas mansas a um discurso duro. A associação com macarrão é metafórica, pois, uma vez cozido, este pode apresentar partes moles, bem cozidas, e partes duras, al dente. (Clare, 2004: 248);

Como se pode ver, é dinâmico o caminhar da linguagem. Muitos cruzamentos ocorrem. Uns efêmeros; outros se tornam neologismos e, pouco a pouco, incorporam-se ao léxico, passando pelo processo de desmetaforização. Eis, portanto, um incentivo permanente à pesquisa aqui apenas iniciada.