DA GRAMÁTICA À ANÁLISE
LINGÜÍSTICA
CAMINHOS PARA
UM ENSINO
PRODUTIVO
Leonor
Werneck dos Santos (UFRJ)
Rosana Aparecida da Silva (C.E.P.F.J.)
Língua portuguesa no ensino fundamental
O objetivo mais importante no ensino
de língua portuguesa para
seus falantes
é fazer com que eles pensem
criativamente a e em
sua língua (Luiz Marques de Souza)
Texto como pretexto x texto
como unidade
de ensino
As práticas de linguagem: propostas
dos PCN
Gêneros textuais
e análise lingüística
– Travaglia (1996: 103):
Os exercícios de
reconhecimento e classificação de classes de palavras
e de funções sintáticas correspondem a mais de 70% (75,56%) das atividades
de ensino de gramática,
aparecendo em todos
os grupos de professores
pesquisados.
– Sobre
o ensino, propõe Travaglia (1996: 109):
A proposta é também trabalhar a gramática numa perspectiva
formal mais
ampla, na dimensão
do funcionamento textual-discursivo dos elementos da língua,
uma vez que
a língua funciona em
textos que
atuam em situações
específicas de interação comunicativa e não
em palavras
e frases isoladas e abstraídas de qualquer situação
ou contexto
de comunicação. A perspectiva
textual tem a possibilidade de fazer com que a gramática seja
flagrada em seu
funcionamento, evidenciando a gramática em uso.
– Ao elaborar atividades produtivas para
o ensino de língua
portuguesa, tome-se como orientação os PCN (p. 78):
Quando se toma o texto
como unidade
de ensino, os aspectos
a serem tematizados não se referem somente à dimensão gramatical. Há conteúdos
relacionados às dimensões pragmática e semântica
da linguagem, por
serem inerentes à própria
atividade discursiva, precisam, na escola, ser tratados de maneira
articulada e simultânea no desenvolvimento das práticas
de produção e recepção
de textos.
– Perini (1997: 27-28) ao refletir
sobre os objetivos
do estudo de gramática,
diz:
Ninguém, que eu
saiba, conseguiu até
hoje levar um aluno fraco em leitura ou redação a melhorar
sensivelmente seu desempenho
apenas por
meio de instrução
gramatical. Muito
ao contrário, toda
a experiência parece mostrar
que entre
os pré-requisitos essenciais
para o estudo
da gramática estão, primeiro,
habilidade de leitura
fluente e, depois,
um domínio
razoável (já que esta é o objeto
das gramáticas disponíveis).
Assim, para estudar gramática com proveito, é
preciso ler bem – o que se exclui
a possibilidade de se utilizar a gramática
como um
dos caminhos para
a leitura. Creio que
o mesmo vale,
mutatis mutandis, para
redação.
Propostas de atividades
Gênero: artigo de Revista
As façanhas de
Arquimedes
(Revista Galileu)
O gênio que
inspirou esta seção brilhou na física
e na matemática
Se houvesse um concurso para escolher
o maior gênio
de todos os tempos, o grego Arquimedes (287-212 ou
211 a.C.)
seria um concorrente
muito sério.
Seu pai
havia sido um astrônomo
de pouco destaque
na história da ciência,
chamado Fídias, mas o que o pai não fez, o filho
realizou com sobra.
Não houve assunto
importante daquela época
em
que Arquimedes não tenha dado um palpite
inteligente, e muitas vezes fundou áreas
do conhecimento que
ainda não
existiam. Conta a lenda
que Arquimedes descobriu, enquanto tomava banho,
que um
corpo imerso
em um
líquido sofre a ação de
uma força, vertical
e para cima, que alivia o peso
do corpo. Essa força
do líquido sobre
o corpo chama-se empuxo.
Ao descobri-la, ele teria saído nu, às pressas pela rua, dizendo: “Eureca!”
(achei, em grego),
a palavra que
dá nome a esta seção
de Galileu.
Ele foi o primeiro a deduzir as leis das alavancas e das roldanas
e a descobrir por
que os arcos
e navios flutuam. Gostava de máquinas e inventou um
sem-número de engenhocas
úteis, como um
aparelho de bombear
água que
até hoje
é usado em algumas partes
do mundo, e terríveis
catapultas de guerra,
com as quais
se podiam lançar pedras
de um quarto
de tonelada a 1 quilômetro
de distância. Seu
prestígio era
tão grande,
que se atribui a ele
até façanhas
improváveis, como
a de ter montado
um jogo
de espelhos capaz
de concentrar a luz
do sol e incendiar
navios de guerra
no mar. Experiências
atuais mostram que
o aparelho era
mesmo engenhoso,
mas dificilmente teria essa capacidade.
Na matemática,
Arquimedes ensinou a calcular o número
π e a determinar a área
de figuras, como
elipses, parábolas
e cilindros. Também
bolou um sistema
de numeração com o qual
se podia escrever números
gigantescos, inimagináveis
em seu
tempo, que
chegavam a quantidades de até 80 quatrilhões.
Nascido numa família
de aristocratas, ele
foi amigo do rei
Heron, de Siracusa, na atual Sicília,
cidade-estado grega então
sob ameaça de
Roma, o que explica o empenho do sábio
em criar máquinas de guerra.
Mas sua
criatividade não
foi páreo para
a força bélica
romana. Siracusa foi tomada, e Arquimedes, morto
durante a batalha
final por
um soldado
invasor.
1) A palavra “façanhas”,
no título, tem valor
positivo ou
negativo? O que
se pode esperar deste texto
a partir do título?
2) No subtítulo, fala-se do “gênio
que inspirou esta seção”.
Qual seção?
3) No texto, Arquimedes é caracterizado
como um
gênio. Por
quê?
4) Você concorda que
Arquimedes foi um gênio?
Justifique sua resposta.
5) De que maneira o título e o subtítulo
do texto se relacionam com o que se fala de Arquimedes?
6) De acordo com as informações do texto,
qual a importância
de Arquimedes para a ciência?
7) Destaque as descobertas
de Arquimedes, separando-as em três grupos: física, matemática,
máquinas de guerra.
8) Por que será que a seção de Flavio
Dieguez retoma o grito de Arquimedes? Você
já ouviu essa palavra
antes? Em
que situação, costumamos empregá-la?
9) E possível afirmar que tudo que é dito sobre Arquimedes é verdadeiro?
Justifique sua resposta
com base
nas informações do texto.
10) Destaque do texto
exemplos de linguagem
informal. Comente o porquê
dessa linguagem nesse texto.
11) A linguagem utilizada por
Flávio Dieguez é adequada ao texto?
Justifique sua resposta,
prestando atenção à revista
em que
o texto foi publicado.
12) Destaque palavras
do texto usadas para
se referir ao grego
Arquimedes. Procure entender por
que elas
foram utilizadas.
13) Observe o 1º
parágrafo do texto
e responda as questões:
Se houvesse um concurso para escolher
o maior gênio
de todos os tempos, o grego Arquimedes (287-212 ou
211 a.C.)
seria um concorrente
muito sério.
Seu pai
havia sido um astrônomo
de pouco destaque
na história da ciência,
chamado Fídias, mas o que o pai não fez, o filho
realizou com sobra.
Não houve assunto
importante daquela época
em
que Arquimedes não tenha dado um palpite
inteligente, e muitas vezes fundou áreas
do conhecimento que
ainda não
existiam. Conta a lenda
que Arquimedes descobriu, enquanto tomava banho,
que um
corpo imerso
em um
líquido sofre a ação de
uma força, vertical
e para cima, que alivia o peso
do corpo. Essa força
do líquido sobre
o corpo chama-se empuxo.
Ao descobri-la, ele teria saído nu, às pressas pela rua, dizendo: “Eureca!”
(achei, em grego),
a palavra que
dá nome a esta seção
de Galileu.
a)
Compare os verbos “seria” e “teria” (na
1ª e na última frase)
e descubra se há alguma semelhança no uso dessa forma verbal.
b) Destaque, no trecho, os verbos no presente e no pretérito perfeito
do indicativo. Identifique que tempo verbal se refere explicitamente à história
de Arquimedes (ao que aconteceu com ele) e que tempo verbal se refere a informações
variadas.
c) Faça um quadro,
relacionando os verbos a seguir
aos elementos que
concordam com eles
em número
e pessoa (ex: 1ª frase
– seria > o grego Arquimedes): 2ª frase – havia sido, fez, realizou; 3ª frase – tenha dado,
fundou, existiam; 4ª frase – conta, descobriu, tomava, sofre, alivia.
14) Redija, para cada parágrafo do texto,
uma frase sintetizando a informação principal. A partir dessas frases,
resuma o texto,
no máximo, em
7 linhas.
15) Faça uma experiência à moda de
Arquimedes: pegue uma vasilha com água e
coloque dentro uma série
de objetos, um
de cada vez
(sugestões: um
garfo, uma vasilha
menor cheia
de água, uma pedra...).
Redija um pequeno
relatório com suas conclusões.
Gênero: Fábula
Atividades de leitura
Leitura de diversas
fábulas
(ver anexo)
·
Organizar grupos com seis
alunos.
·
Distribuir uma fábula para cada grupo (cada aluno recebe uma fábula
sem a moral).
·
Cada grupo deverá realizar a leitura, tentar descobrir a moral da fábula, apresentar a história resumida, oralmente,
e moral à turma.
·
O professor
anota a moral construída pelos alunos.
·
Num segundo momento,
no quadro, o professor
confronta a moral
do fabulista e a dos alunos (Normalmente
não há erro,
os alunos constroem paráfrases).
Objetivos:
·
Identificação do gênero textual fábula;
·
Leitura de texto, análise
e síntese, através
da conclusão sobre
a moral da fábula;
·
Expressão oral (Como o gênero faz parte
da tradição oral,
o aluno é levado
a se colocar no lugar
do contador de histórias);
·
Entrosamento da turma.
Obs. Neste primeiro momento, trabalhou-se o plano
do conteúdo. O aluno
precisou acionar os conhecimentos
de mundo para
realizar as inferências
necessárias à compreensão textual.
Análise da fábula “A
raposa e as uvas”
De repente a raposa, esfomeada e gulosa,
fome de quatro
dias e gula
de todos os tempos,
saiu do areal do deserto
e caiu na sombra deliciosa
do parreiral que descia por um precipício a perder de vista. Olhou e viu, além
de tudo, à altura
de um salto,
cachos de uvas
maravilhosos, uvas
grandes, tentadoras. Armou o salto, retesou o corpo,
saltou, o focinho passou a um salto das uvas. Caiu, tentou de novo,
não conseguiu. Descansou, encolheu mais o corpo,
deu tudo que
tinha, não
conseguiu nem roçar
as uvas gordas e redondas. Desistiu,
dizendo entre dentes,
com raiva:
“Ah, também, não
tem importância. Estão muito verdes”.E
foi descendo, com cuidado,
quando viu à sua
frente uma pedra
enorme. Com
esforço empurrou a pedra
até o local
em que
estavam os cachos de uva, trepou na pedra,
perigosamente, pois o terreno
era irregular
e havia risco de despencar,
esticou a pata e...conseguiu! Com avidez
colocou na boca quase
o cacho inteiro.
E cuspiu. Realmente as uvas estavam muito
verdes!
MORAL: A FRUSTRAÇÃO É
UMA FORMA DE JULGAMENTO TÃO BOA COMO QUALQUER OUTRA
(FERNANDES, Millôr. Fábulas fabulosas.
9ª ed. Rio de Janeiro:
Nórdica)
Vocabulário:
Ávido – muito sedento ou faminto, avidez.
Retesar – tornar-se tenso
ou rijo
1) Esta fábula,
escrita por
Millôr Fernandes, é uma versão da fábula tradicional de Esopo. Escreva duas razões para este texto ser considerado uma fábula.
a)
____________________________________________________
b)
____________________________________________________
Este texto
é narrativo porque possui algumas características: personagem
que vivencia determinadas ações numa seqüência
temporal, cujos
fatos estão encadeados numa relação de causa / conseqüência. Tais
fatos se modificam num movimento de anterioridade e posterioridade.
Baseando-se nas informações
acima responda as questões
seguintes:
2) Transcreva do texto
o fato inicial
e o conflito da narrativa.
______________________________________________________
3) Que elementos do texto
indicam a passagem do tempo?
______________________________________________________
4) “...no texto
narrativo os fatos estão encadeados numa
relação de causa
/ conseqüência”...Comprove com elementos
do texto esta afirmação.
______________________________________________________
5) Qual o desfecho do texto
narrativo?
______________________________________________________
6) Há um momento no texto
em que
a personagem fala.
Que marcas
indicam neste texto a fala do personagem?
Reescreva essa fala do personagem, utilizando outro
recurso da língua.
______________________________________________________
Atividades de análise lingüística (“A raposa e as uvas”)
Nomes (substantivos
e adjetivos)
Objetivos:
·
Observação de como as palavras
(nomes e atributos)
se relacionam no texto para
construir o sentido;
·
Verificação das
várias possibilidades dos atributos (adjetivos) a partir das intenções do produtor
do texto. (Neste momento,
trabalhou-se o plano da expressão, o Como
Dizer).
Atividade coletiva (professor e aluno): A
partir da fábula
“A Raposa e as Uvas”,
o professor fará com
a turma o levantamento
das palavras usadas para
nomear os seres,
lembrando que esta seleção
é feita pelo produtor do texto
de acordo com
suas intenções
(aqui, apontando para
uma característica do texto
narrativo, ser figurativo, ser
constituído por nomes
concretos).
Após a construção da lista das palavras (substantivos) que
nomeiam os seres, serão
relacionados os atributos (adjetivos) a essas palavras.
Na seqüência, o professor
pedirá que cada
aluno faça o mesmo
com as fábulas
que já
trazem no caderno, da atividade anterior (As atividades
não são
isoladas, o aluno precisa
voltar ao mesmo
texto e vê-lo sob
outro aspecto).
Obs. Há várias possibilidades de discussão
nesta forma de trabalho, pois os alunos
deverão ler diferentes
versões da mesma fábula, contada por Monteiro Lobato, por
Esopo, por Millôr Fernandes. Assim, poderão comparar a seleção vocabular de um
e de outro (plano
da expressão) e pensar
sobre essa flexibilidade da linguagem.
1) A partir do
texto “A raposa
e as uvas”, faça o levantamento, numa coluna, das palavras
utilizadas para nomear os
seres (substantivos).
Em outra
coluna, relacione aos nomes listados características (adjetivos)
que especifiquem os seres.
NOMES
(substantivos)
|
ATRIBUTOS
(adjetivos)
|
NOMES
(substantivos)
|
ATRIBUTOS
(adjetivos)
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
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|
|
|
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|
|
|
Verbos
Objetivos:
·
Levantamento dos verbos do texto;
·
Verificação dos tempos verbais
predominantes no texto;
·
Comparar os usos dos tempos do pretérito
perfeito e imperfeito
no texto narrativo;
·
Relacionar a predominância
do pretérito perfeito às seqüências narrativas,
assim como
o pretérito imperfeito,
às descritivas.
1) Liste os verbos
do texto, escreva ao lado em qual tempo se
encontram. A partir de sua
observação escreva sua
conclusão sobre
que tempo
verbal predomina no texto
narrativo.
Conclusão: _____________________________________________
Em
que seqüências
do texto é usado um
tempo verbal ou
outro?
______________________________________________________
Referências bibliográficas
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al. Oralidade e escrita:
perspectivas para
o ensino de língua
materna. São
Paulo: Cortez, 2000.
GERALDI, João W. (org). O texto na sala
de aula. São
Paulo: Ática, 1997.
KOCH, Ingedore. A
inter-ação pela linguagem.
São Paulo: Contexto,
1998.
––––––. Lingüística
Textual: introdução.
6ª ed. São Paulo: Cortez, 2002.
MARCUSCHI, Luiz Antonio. Da fala para
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de retextualização. São Paulo: Cortez,
2001.
PARÂMETROS CURRICULARES
NACIONAIS: primeiro e segundo ciclos
do ensino fundamental:
língua portuguesa. Secretaria
de Educação Fundamental.
Brasília: MEC/SEF, 1998.
PERINI, Mário A. Sofrendo a gramática:
Ensaios sobre
a linguagem. São
Paulo: Ática, 1997.
Platão Savioli, Francisco & FIORIN, José Luiz. Lições de texto: leitura
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Paulo: Ática, 1997.
POSSENTI, Sírio. Por que
(não) ensinar
gramática na escola.
Campinas: Mercado
de Letras, 1999.
PRETI, Dino. Estudos de língua
oral e escrita.
Rio de Janeiro:
Lucerna, 2004.
ROCHA LIMA. Gramática normativa da língua portuguesa. 29ª ed.
Rio de Janeiro:
José Olímpio, 1988.
ROJO, Roxane (org.). A prática de linguagem
em sala
de aula: praticando os PCN. Campinas: Mercado
das Letras, 2000.
SANTOS, Leonor W. dos. O ensino
de língua portuguesa e os PCN. In: PAULIUKONIS, Maria Aparecida L.
& GAVAZZI, Sigrid (org.). Da língua ao discurso:
reflexões para
o ensino. Rio
de Janeiro: Lucerna,
2005, p. 173-184.
SECRETARIA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO. Reorientação
curricular linguagens e códigos. Rio de Janeiro, 2006.
SOUZA, Luiz M. de. Por uma gramática pedagógica.
Rio de Janeiro:
UFRJ, 1984. (Tese de Doutorado em Lingüística)
TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no ensino de 1º e 2º graus.
São Paulo: Cortez, 1996.
––––––. Gramática: ensino plural. São
Paulo: Cortez, 2003.
ANEXO:
FÁBULAS PARA A ATIVIDADE 2.2.1.1
1-O CORVO E O PAVÃO
(Recontada por Monteiro Lobato)
O pavão,
de roda aberta
em forma de leque, dizia com
desprezo para o corvo:
– Repare como
sou belo! Que
cauda, hein? Que cores, que maravilhosa
plumagem! Sou das aves
a mais formosa,
a mais perfeita,
não?
– Não
há dúvida que
você é um belo bicho _
disse o corvo. Mas,
perfeito? Alto
lá!
O corvo
respondeu:
– Quem
quer criticar-me! Um
bicho preto,
capenga, desengraçado e, além disso, ave
de mau agouro...Que falha você vê em mim, ó tição de penas?
O corvo
respondeu:
– Noto
que para abater o orgulho dos pavões a natureza
lhes deu um
par de patas
que, faça-me o favor,
envergonharia até a um
pobre diabo como eu...
O pavão,
que nunca
tinha reparado nos
próprios pés,
abaixou-se e contemplou-os longamente.
E, desapontado, foi andando o seu caminho sem replicar coisa nenhuma.
2-O LOBO E O CARNEIRO
(Recontada por Monteiro Lobato)
Estava o cordeiro
a beber num córrego, quando apareceu um
lobo esfaimado, de horrendo
aspecto.
– Que
desaforo é esse
de turvar a água
que venho beber?
– disse o monstro arreganhando os dentes. – Espere, que
vou castigar tamanha
má-criação!...
O cordeirinho, trêmulo
de medo, respondeu com
inocência:
– Como
posso turvar a água
que o senhor
vai beber se ela
corre do senhor para mim?
Era verdade
aquilo e o lobo
atrapalhou-se com a resposta.
Mas não
deu o rabo a torcer.
– Além
disso – inventou ele – sei que você andou falando mal de mim o ano passado.
– Como
poderia falar
mal do senhor
o ano passado,
se nasci este ano?
Novamente confundido pela voz da inocência, o lobo
insistiu:
– Se não
foi você, foi seu
irmão mais
velho, o que
dá no mesmo.
Como poderia
ser o meu irmão mais velho, se sou filho
único?
O lobo,
furioso, vendo que
com razões
claras não
vencia o pobrezinho, veio com uma razão
de lobo faminto:
– Pois
se não foi seu
irmão, foi seu
pai ou
seu avô!
– E – nhoque!
– sangrou-o no pescoço.
3-A RAPOSA E AS UVAS
(Recontada por Monteiro Lobato)
Certa raposa
esfaimada encontrou uma parreira
carregadinha de lindos cachos maduros,
coisa de fazer vir água à boca. Mas tão altos que nem
pulando.
O matreiro
bicho torceu o focinho.
– Estão verdes
– murmurou. – Uvas verdes,
só para cachorro.
E foi-se.
Nisto deu um vento e uma folha caiu.
A raposa
ouvindo o barulhinho voltou depressa e
pôs-se a farejar...
4-A CIGARRA E AS FORMIGAS
(Recontada por Monteiro Lobato)
Houve uma jovem cigarra que tinha o costume de chiar ao pé dum formigueiro.
Só parava quando
cansadinha; e seu divertimento
então era
observar as formigas
na eterna faina
de abastecer as tulhas.
Mas o bom
tempo afinal
passou e vieram as chuvas. Os animais todos
arrepiados passavam o dia cochilando nas
tocas.
A pobre
cigarra, sem
abrigo em seu galhinho seco
e metida em
grandes apuros,
deliberou socorrer-se de alguém.
Manquitolando, com uma asa a arrastar, lá se
dirigiu para o formigueiro.
Bateu – tique, tique, tique...
Aparece uma formiga friorenta,
embrulhada num xalinho de paina.
– Que
quer? – perguntou, examinando a triste mendiga suja de lama e
a tossir.
– Venho em
busca de agasalho.
O mau tempo
não cessa e eu...
A formiga
olhou-a de alto a baixo.
– E que
fez durante o bom
tempo, que
não construiu sua casa?
A pobre
cigarra, toda
tremendo, respondeu depois
de um acesso
de tosse.
– Eu
cantava, bem sabe...
– Cantava? Pois
dance agora! – e fechou-lhe a porta no nariz.
5-O RATO E O VERME
Um rato
faminto girava em
torno de uma noz.
Do interior da noz
um verme
lhe disse:
– Não
nos leves!
Eu comi toda
a polpa deste fruto,
e tu te
arrependerias de tocar nele.
O rato
refletiu:
– És gordo
ou magro?
– E o verme
vaidoso:
– Sou gordo,
e nada mais
quero da vida.
– Muito
bem – disse o rato.
– Espero que a tua gordura
tenha sabor de noz.
Roeu a casca,
tirou o verme e o comeu.
6-O CACHORRO E SUA SOMBRA
Um cachorro,
com um
pedaço de carne
roubada na boca, estava atravessando um rio a caminho de casa,
quando viu sua
sombra refletida na água.
Pensando que estava vendo um outro cachorro, com outro pedaço de carne, ele
abocanhou o reflexo para
se apropriar da outra
carne, mas
quando abriu a boca
deixou cair no rio o pedaço que já era dele.
MORAL
1- Tinha razão
o corvo: não
há beleza sem
senão.
2- Contra a força
não há argumentos.
3- Quem desdenha quer comprar.
4- Quem planta
colhe.
5- Imita o sábio
que, mesmo
na opulência, permanece modesto.
6- A cobiça
não leva
a nada.