Elementos de teoria e prática
da edição crítica

José Pereira da Silva (UERJ e ABRAFIL)

 

Sem qualquer pretensão de escrever um artigo teórico de Crítica Textual, faço aqui uma simples adaptação dos primeiros cinco capítulos do livro Iniciação em Crítica Textual (pág. 11 a 35) do Professor Leodegário A. de Azevedo Filho, publicado pela Editora Presença em 1987, reeditado em parte em 2004 com o título de Base Teórica de Crítica Textual (pág. 11 a 46), pela H.P. Comunicação.

Feita esta ressalva, não colocarei entre aspas nem farei qualquer referência à fonte todas as vezes que dela me sirvo porque isto se tornaria extremamente enfadonho. Portanto, fique registrado que seguiremos aqui, em princípio, as orientações de AZEVEDO FILHO (2004) em Base Teórica de Crítica Textual, com as adaptações e atualizações necessárias e possíveis ou convenientes.

 

INTRODUÇÃO GERAL

Um roteiro básico de Crítica Textual pressupõe, como pré-requisito, a revisão de uma bibliografia mínima, capaz de servir de fundamento às novas noções que vão ser adquiridas. Mas, em se tratando de um minicurso, durante o qual isto não é possível, vai toda ela reunida na BIBLIOGRAFIA, no final deste texto, tratando apenas da Crítica Textual, omitindo-se também os trabalhos práticos que têm sido bastante numerosos em língua portuguesa, suficientes para constituírem, só eles, o tema de um minicurso inteiro.

No caso específico deste minicurso, foram incluídos principalmente os estudos teóricos de Crítica Textual, ali indicados, selecionando-se especialmente os seguintes, todos editados no Brasil nos últimos anos: ARAÚJO (1986), AZEVEDO FILHO (2004), HOUAISS (1983), LAUFER [1980], SPAGGIARI & PERUGI (2004) e SPINA (1994), como sugestão de leitura obrigatória para quem desejar um posterior aprofundamento no assunto.

Já existe no Brasil uma boa tradição de estudos relacionados com a crítica textual. Basta lembrar, no que se refere à Idade Média, entre outros, os nomes de Oskar Nobiling (As Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade); Celso Cunha (O Cancioneiro de Martin Codax, O Cancioneiro de Paay Gômez Charinho e O Cancioneiro de Joan Zorro); Padre Augusto Magne (Demanda do Santo Graal), Segismundo Spina (As Cantigas de Pero Mafaldo) e Leodegário A. de Azevedo Filho (As Cantigas de Pero Meogo).

Do século XVI, apontam-se, entre outros, Sousa da Silveira (Textos Quinhentistas), Celso Cunha e Carlos Durval (Prosopopéia, de Bento Teixeira); Emmanuel Pereira Filho (As Rimas de Camões – Cancioneiro de I. S. M.); Maria de Lourdes de Paula Martins (As Poesias de Anchieta); Sílvio Elia e Leodegário A. de Azevedo Filho (As Poesias de Anchieta em Português), Cleonice Berardinelli (Sonetos, de Luís de Camões) e de Leodegário A. de Azevedo Filho (Lírica de Camões).

Do século XVII, a obra poética de Gregório de Matos vem sedo estudada por brasileiros como James Amado (Gregório de Matos – Obra Poética), Fernando da Rocha Peres e Silvia La Regina (Um Códice Setecentista Inédito de Gregório de Matos) e outros, além de portugueses como Francisco Topa (Edição Crítica da Obra Poética de Gregório de Matos e O Mapa do Labirinto). Gladstone Chaves de Melo preparou a edição do Sermão da Sexagésima, do Pe. Antônio Vieira.

Do século XVIII, meu mestre e amigo, de saudosa memória, Mário Camarinha da Silva, editou O Uruguay e Rodrigues Lapa publicou Marília de Dirceu.

Do século XIX, M. Cavalcânti Proença edita Iracema, de José de Alencar; Adriano da Gama Kury edita Poesias, de Cruz e Sousa; Maximiano de Carvalho e Silva edita Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco; Antônio José Chediak edita Tragédia no Mar (O Navio Negreiro), de Castro Alves; Walnice Nogueira Galvão edita Os Sertões, de Euclides da Cunha; além da Comissão Machado de Assis (tendo à frente Antônio Houaiss, Celso Cunha e Antônio José Chediak), que publicou vários volumes da obra do fundador da Academia Brasileira de Letras.

Do século XX, que tem sido bastante produtivo, Francisco Venceslau dos Santos, que preparou a edição crítica de Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, é um exemplo, assim como Walnice Nogueira Galvão, que fez a edição crítica de Os Sertões, de Euclides da Cunha.

Com as restrições naturais de tempo e do espaço para a publicação deste texto com o conceito amplo de crítica textual, faz-se aqui uma breve referência às principais ciências auxiliares da Ecdótica: a Paleografia (ciência que tem por objeto o estudo das escritas antigas, em qualquer espécie de material, e que compreende a decifração, a descoberta de erros na transmissão, a datação de textos, a atribuição de lugar de origem e interpretação, além de ocupar-se da própria história da escrita); a Epigrafia (parte da Paleografia que estuda as inscrições, isto é, a escrita antiga em material resistente como pedra, metal, argila, cera etc., incluindo sua decifração, datação e interpretação); a Diplomática (estudo da tradição, elaboração e forma dos documentos legais e administrativos) e a Codicologia (Disciplina auxiliar da crítica textual que tem por objeto o estudo dos materiais empregados na confecção e elaboração do livro manuscrito ou códice, sua produção nos scriptoria medievais e o modo pelo qual era comercializado), antes mesmo de serem estudados os problemas de crítica autoral e da tradição ou transmissão de textos. Por fim, após o capítulo reservado à caracterização de uma edição crítica, serão identificadas as suas etapas fundamentais, com amplo espaço aberto à estemática, aplicando a teoria exposta à edição crítica de cinco sonetos de Camões, conforme a edição que Leodegário A. de Azevedo Filho preparou para a Imprensa Nacional / Casa da Moeda, de Lisboa.

 

CONCEITO DE CRÍTICA TEXTUAL

Como disciplina integrante da técnica de editar um texto, a Crítica Textual seria o seu núcleo básico ou especificamente filológico da Ecdótica, segundo o Professor Leodegário, voltada que está apenas para o estabelecimento crítico de um texto e não para a totalidade dos problemas que envolvem a técnica e a arte editorial. Portanto, entre Crítica Textual e Ecdótica, pode-se indicar uma relação de inclusão.

É consenso, neste caso, que a Crítica Textual é trabalho filológico por excelência, cuidando do estudo da língua em toda a sua amplitude e dos documentos escritos que servem para documentá-la.

Dos períodos grego, alexandrino e romano aos nossos dias, bem ou mal sobrevivendo na Idade Média (476-1453), chega a Crítica Textual ao Renascimento (1300-1650), em seguida, passando pelo Barroco (séc. XVI-XVII ou XVII-XVIII) e pelo Neoclassicismo (fim do século XVIII), até o advento do método renovador de Karl Konrad Friedrich Wilhelm Lachmann (1793-1851), de que foram dissidentes Dom Henry Quentin (1872-1935) ainda que parcialmente, e Joseph Bédier (1864-1938), este último em nítida posição divergente. Na verdade, em Lachmann e Bédier se encontram os dois pontos de partida da Crítica Textual de nossos dias, por isso mesmo dividida em duas grandes correntes: a neo-lachmanniana dos críticos alemães e italianos e a neo-bédieriana dos críticos franceses. Em ambas, a edição crítica é tida como operação absolutamente necessária ao perfeito entendimento de um texto, ou à sua completa interpretação filológica, segundo critérios que melhor possam aproximá-lo da última vontade consciente do seu autor.

A edição crítica, portanto, não se confunde com a edição mecânica, nem com a edição diplomática, pois de ambas se distingue em seus momentos ou etapas específicas de operar, que podem ser indicadas assim:

a) Recensio [recensão] – Estudo da tradição manuscrita ou impressa de uma dada obra. Tal estudo consiste na análise comparativa das varia lectio quando a obra foi transmitida por vários manuscritos. Se a tradição apenas contém um códice, é o escrutínio pontual e rigoroso do único manuscrito que se possui. A recensio, no primeiro caso, pode levar à constituição do estema.

b) Collatio [colação] – Comparação das várias atestações manuscritas ou impressas da obra a publicar. Deve ser um procedimento muito cuidadoso, para não influenciar os resultados da recensio e da restitutio textus.

c) Eliminatio codicum descriptorum [exclusão dos códices copiados] – Operação que consiste em pôr de parte elementos da tradição desprovidos de valor enquanto testemunhos: ou porque são cópia de um exemplar conservado ou reconstituível sem a sua contribuição ou porque constituem lições dos testemunhos mais afastados do arquétipo, da responsabilidade do amanuense e, por isso mesmo, inúteis para a reconstituição do original.

d) Classificação estemática da tradição manuscrita (se houver) e da tradição impressa (textos não eliminados, após a examinatio [avaliação crítica]);

e) Emendatio [correção]Operação mediante a qual se corrige a lição de um texto.

f) Constitutio textus [constituição do texto crítico], após a selectio [seleção] - Operação pela qual se reconstitui a lição do arquétipo, mediante a comparação e junção das partes consideradas boas existentes em lições de vários manuscritos.

g) Apresentação do texto reconstituído;

h) Aparato de variantes.

Segundo o método lachmanniano, a recensio é o primeiro momento de uma edição crítica, tendo como finalidade, com base na collatio, o exame atento das relações de parentesco ou relações estemáticas dos códices existentes, para a eliminação dos que sejam simples cópias sem valor autônomo, a não ser que tenham alguma utilidade para o estabelecimento crítico do texto.

A emendatio [correção] é a etapa seguinte e deve obedecer a princípios básicos, pois não se emenda o que não for comprovadamente erro, deslize evidente ou gritante contra-senso. Quando se corrige um texto com base na lição majoritária dos manuscritos, encadeados num stemma codicum (árvore genealógica dos códices) fala-se em emendatio ope codicum (correção através dos códices) centrada na lei do predomínio numérico das variantes e no cálculo estatístico das probabilidades, ao contrario da emendatio ope conjecturae (correção através de conjecturas) ou divinatio, calcada em hipóteses, e que vai depender da intuição filológica do editor, em face das condições lingüísticas e culturais da época em que o texto foi produzido.

Sobretudo para o primeiro caso [da emendatio ope codicum], que é de recensio fechada [com fundamentação exclusivamente nas cópias e edições] ou mesmo aberta [fundamentada filologicamente pelo editor], a Crítica Textual moderna tem seguido alguns preceitos gerais, herdados da tradição clássica, embora todos apresentem notáveis e históricas exceções. Eis as principais:

a) lectio antiquior potior [a leitura mais antiga é preferível];

b) lectio melioris codicis potior [a leitura do melhor códice é preferível];

c) lectio plurium codicum potior [a leitura do maior número de códices é preferível];

d) lectio difficilior potior [a leitura mais difícil é preferível];

e) lectio brevior potior [a leitura mais breve é preferível];

f) lectio quae alterius originem explicat potior [a leitura que explica a origem de outra é preferível].

Tudo isso, evidentemente, em busca da melhor lição: lectio melior potior [a melhor lição é preferível], como mostrou Celso Cunha (CUNHA, 2004: 115).

Em relação ao segundo caso (da emendatio ope conjecturae], nenhuma emenda conjetural deve ser feita, é claro, sem que se esgotem os recursos subsidiários oferecidos pela Diplomática, pela Codicologia, pela Paleografia, pela Escriptologia e pela própria Grafemática. Aqui também vai importar muito a formação lingüística e estético-literária do editor, sempre aliada ao critério do usus scribendi [forma usual de escrever do autor], além do permanente apelo aos princípios gerais da psicologia da cópia. Em síntese, os filólogos clássicos geralmente indicam cinco etapas para a crítica conjetural:

a) interpungere, ou seja, pontuar adequadamente o texto, tarefa muito mais complexa do que se possa pensar à primeira vista;

b) mutare, ou seja, corrigir a troca de letras, responsável pela formação de palavras sem qualquer sentido no contexto frasal;

c) transponere, ou seja, dispor as palavras noutra ordem, mais coerente com o sentido do texto e com a língua e com o estilo do autor, corrigindo-se assim possíveis alterações de copistas inovadores;

d) delere, ou seja, apagar ou suprimir palavras que aparecem no texto por interpolações prováveis de copistas;

e) supplere, ou seja, completar possíveis lacunas num texto, geralmente motivadas por pequenos saltos ou descuidos de copistas e até do próprio autor.

Tais princípios da emendatio [correção], em seus dois momentos específicos, são de caráter sempre muito geral. Na verdade, não existe nenhum método de crítica textual que se possa aplicar a todos os autores, pois cada edição apresenta os seus problemas particulares. Muitas vezes, com efeito, a lei objetiva do predomínio numérico das variantes, baseada no cálculo de probabilidades, em casos de recensio fechada [com fundamentação exclusivamente nas cópias e edições], terá que ceder espaço imediato ao critério interno da lectio difficilior [lição mais difícil] e ao princípio superior do usus scribendi [forma usual de escrever], em casos de recensio aberta, pois cada época e cada autor sempre apresentam características próprias, tanto do ponto de vista da língua, como do ponto de vista do estilo. Assim, não raro, a selectio das variantes vai oferecer ao leitor um texto bem diverso do seu correspondente na tradição impressa.

 

CIÊNCIAS AUXILIARES E UM POUCO DE HISTÓRIA

Segismundo Spina (1994) diz que a Crítica Textual não pode desenvolver-se plenamente sem o apoio de várias ciências auxiliares, tais como a Epigrafia, a Paleografia, a Codicologia e a Diplomática.

A Epigrafia tem como objeto de estudo as inscrições feitas em material durável, como o metal, a pedra ou a madeira. Distingue-se, assim, da Paleografia, também voltada para o estudo gráfico de textos antigos, mas já agora escritos em material perecível, como o papiro, o pergaminho e o papel. Em ambos os casos, os tipos caligráficos não são os mesmos, já que a expressão escrita evoluiu através das épocas. Por isso, cabe à Paleografia estudar a mudança ou a transformação dos tipos gráficos, distribuindo-os em períodos, como o greco-latino, que vai da Antigüidade Clássica até Carlos Magno, no século VIII; o romano, que vai do século IX ao século XI; o gótico, a partir dos meados do século XI, indo até o século XVI, quando a escrita humanística passou a predominar. Portanto, quando se trata da edição de textos antigos e medievais, grafados de formas não coincidentes com a moderna, torna-se inteiramente indispensável o recurso à Epigrafia e à Paleografia, como se pode ver nas boas edições de textos latinos e de textos medievais. No caso, as relações entre fonema e grafema, como é evidente, assumem papel de fundamental interesse.

Num círculo mais amplo, a Diplomática não se limita apenas ao estudo da parte gráfica de um documento (público ou privado), pois examina também os seus caracteres externos, como a matéria escriptória (papiro, pergaminho, papel); os instrumentos utilizados no ato a escrita; as tintas e o tipo de letra/ e os padrões de linguagem e a própria forma do documento. Tudo isso, é claro, para determinar a autenticidade da documentação analisada. Portanto, estando a Ecdótica empenhada na técnica de editoração de textos literários, a ciência diplomática lhe fornece subsídios preciosos, sobretudo no que se refere à determinação da autenticidade de um texto.

Por seu turno, com base na Paleografia e na Diplomática, a Codicologia tem como objeto de estudo a análise e a descrição técnica de códices. O códice (do latim codex,-cis) é um antepassado histórico do livro, que passou a ser impresso com a invenção da imprensa, no século XV. Daí a denominação de “livros de mão”, ainda usada no século XVI, com referência aos cancioneiros manuscritos. Mais longe ainda, na Antigüidade Clássica, a história do livro tem início com o papiro e com o pergaminho, até chegar-se ao uso do papel, já na Idade Média, como matéria escriptoria. Diante de um manuscrito a ser editado, portanto, é básico o recurso à Paleografia, à Diplomática e à Codicologia, para a sua exata descrição e completo estudo de todos os seus aspectos materiais. Ou seja: deve-se analisar, num manuscrito, quando e como foi feito, a matéria escriptoria usada, o tipo de letra e a autenticidade do códice, como elementos de investigação preliminar. Para o desenvolvimento de todos esses estudos, há bibliografia específica, recomendando-se ao estudante brasileiro, como leitura inicial, o livro Elementos de Bibliologia, de Antônio Houaiss, onde encontrará ainda a indicação de vários livros sobre tais matérias, quase todos integrando a Bibliografia deste artigo.

Em relação aos textos da Antigüidade Clássica, as mais antigas edições críticas são as dos poetas gregos pré-helenísticos, levadas a termo pelos críticos alexandrinos, tais como Aristófanes de Bizâncio e Aristarco de Samotrácia. Em geral, foram privilegiados os poemas homéricos, a partir de uma recensio centrada em critérios internos, embora as emendas nem sempre fossem diretamente incorporadas ao texto. No século III, o alexandrino Orígenes (185-253) empreendeu o seu admirável trabalho sobre a Bíblia, com uso de uma metodologia mais tarde seguida por Roma, a exemplo dos trabalhos de Públio Terêncio Varrão (82-35 a.C.) e especialmente a exemplo de Jerônimo (340-420) e sua edição da Vulgata. Na Idade Média, a época carolíngia também cultivou certa forma de recensio, como nos mostra a Regula Sancti Benedicti. Modernamente, a partir do século XVI, com estudos sobre o texto da Bíblia grega e latina, particularmente na França, prosseguiu a lenta evolução da crítica textual. No século XVI, vale a pena lembrar ainda os nomes de Angelo Boliziano e Justo Scaligero, assim como os de Richard Bentley, Johann Albrecht Bengel e Johann Jakob Wettstein no século XVIII. Mas se deve sobretudo a Karl Lachmann (1793-1851), com o prefácio à sua edição do poema De Rerum Natura, de Lucrécio, publicado um ano antes de sua morte (1850), a sistematização da matéria. Isso porque, no século XVII, os critérios eram ainda subjetivos, impressionistas e arbitrários, como se pode ver nas Rimas Várias, de Luís de Camões, edição de Manuel de Faria e Sousa (1685-1689). Coube a Lachmann, portanto, fixar os conceitos básicos de recensio, collatio, emendatio, archetypum, agrupando geneticamente os manuscritos em função de suas relações de parentesco e eliminando os manuscritos suspeitos de interpolação. O método de Lachmann, conseqüentemente, está na origem de uma das grandes correntes da Crítica Textual moderna, em geral seguida pelos críticos alemães e italianos, ao lado da teoria do codex optimus, de Joseph Bédier (1970), em geral seguida pelos críticos franceses. Tanto em Lachmann como em Bédier, a edição crítica é tida como operação fundamental para o perfeito entendimento de um texto ou para a sua completa hermenêutica [interpretação] e exegese [comentário], segundo critérios que melhor possam aproximá-lo da última vontade lúcida do autor. E para isso, evidentemente, as ciências auxiliares da Paleografia, da Diplomática e da Codicologia desempenham um papel de extrema importância. Se Lachmann visava a uma crítica reconstrutiva, com base na recensio, na collatio e na emendatio, Bédier procurava ater-se às lições de um bom manuscrito, ainda que trivializadas ou banalizadas, investigando as razões dessas alterações e estudando a forma assumida pelo texto em determinado momento de sua história. E isso sempre a partir de um codex optimus, com registro sistemático de variantes.

Voltando-se aos textos clássicos, deles não há autógrafos gregos ou latinos, nem mesmo apógrafos diretamente confrontados com o original, pois restam apenas cópias resultantes de outras cópias intermediárias, tudo isso acarretando sérias dificuldades para a atividade ecdótica.

Quanto aos textos medievais, o estudante brasileiro dispõe da obra básica de Serafim da Silva Neto, intitulada Textos Medievais Portugueses e seus Problemas, livro publicado pela Casa de Rui Barbosa, em 1956. Aqui também não há autógrafos para a imensa totalidade dos textos em prosa ou verso. Portanto, para a constituição de arquétipos, só se pode partir dos apógrafos existentes, ou então trabalhar com um codex optimus, eleito entre os códices conservados. Nesse sentido, a chamada escola filológica italiana tem prestado relevantes serviços à edição crítica de textos medievais galego-portugueses. Em Portugal, é de justiça mencionar aqui os nomes de Manuel Rodrigues Lapa, Luís Filipe Lindley Cintra e Ivo Castro, pelo rigor dos trabalhos que têm publicado. No Brasil, a relação nominal é um pouco maior, como já vimos.

Nas Cantigas de Pero Meogo, com estudo crítico dos textos, análise literária, glossário e reprodução fac-similar dos manuscritos, Leodegário A. de Azevedo Filho apresenta um bom exemplo de disposição da matéria numa edição crítica de texto literário arcaico. (Cf. AZEVEDO FILHO, 2004: 29-30)

No que se refere ao século XVI, na sua edição da Lírica de Camões, além da ampla discussão histórica e metodológica do primeiro volume, que termina com a constituição do corpus, a ordem de apresentação, para cada poema, é a seguinte:

1 – Texto criticamente estabelecido

                  1.1 – Indicação das fontes manuscritas

                  1.2 – Indicação das fontes básicas da tradição impressa

2 – Aparato crítico

                  2.1 – Tradição manuscrita

            2.1.1 – Genealogia do texto, com estudo de suas relações estemáticas

            2.1.2 – Elenco das variantes na tradição manuscrita, a partir de um exemplar de colação, analisando-se verso por verso de cada poema

     2.2 – Tradição impressa

            2.2.1 – Genealogia do texto

            2.2.2 – Elenco das variantes da tradição impressa, em confronto com a tradição manuscrita

     2.3 – Versificação

     2.4 – Glossário

   2.5 – Leitura crítica do texto nas principais edições modernas

   2.6 – Breve anotação (literária) ao texto

No que se refere à edição de textos modernos, será bom observar que os problemas encontrados do século XVI ao século XX, ao contrário o que muitos pensam, não são exatamente os mesmos. Assim, não vão apresentar as mesmas peculiaridades ou dificuldades, por exemplo, uma edição da lírica de Camões (séc. XVI); uma edição da poesia de Gregório de Matos (séc. XVII); uma edição da poesia de Cláudio Manuel da Costa (séc. XVIII); uma edição da poesia de Castro Alves (séc. XIX); uma poesia da obra de Machado de Assis (séc. XIX); uma edição da poesia de Cruz e Sousa (séc. XIX); ou uma edição da obra de Oswald de Andrade (séc. XX). Nesse sentido, recomenda-se a leitura da introdução ao texto crítico das Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, 1, Suplemento da Revista do Livro, Rio de Janeiro: INL, 1959, bem assim a leitura da introdução ao texto crítico de Quincas Borba, de Machado de Assis, 2, Suplemento da Revista do Livro, Rio de Janeiro, INL, 1960, o primeiro texto de autoria de Antônio Houaiss e o segundo de autoria de Antônio José Chediak, para a Comissão Machado de Assis, que tantos serviços prestou à boa causa da edição crítica de textos no Brasil.

Em suma, se há princípios gerais capazes de orientar a edição crítica de um texto, conforme esta ou aquela corrente teórica, não há nenhuma fórmula que se possa universalmente aplicar a todas as obras. Cada texto tem a sua problemática específica, ligando-se naturalmente à época em que foi escrito. Nem mesmo se acredita em edições críticas definitivas, conforme a seguinte observação de Segismundo Spina:

Qualquer edição crítica representa, sempre, uma tentativa de restauração de um texto, provisoriamente definitiva enquanto não surjam outras, naturalmente baseadas em novos achados ou em diferentes perspectivas metodológicas, que possam lançar novas luzes sobre o original. (SPINA, 1994: 127).

E assim, realmente, ocorre. E de tal forma que será possível falar em boas ou más edições críticas, mas não em edições críticas perfeitas.

 

EDIÇÃO CRÍTICA E OUTRAS EDIÇÕES

Introdução

No capítulo anterior, foi visto que o objetivo maior de uma edição crítica consiste em restituir um texto, tanto quanto possível, à sua forma genuína. Assim, o conhecimento da língua e da época em que o texto foi escrito, desde logo, transforma-se em exigência preliminar. Nem se poderia, sem o indispensável recurso às principais ciências auxiliares da Ecdótica aqui referidas, entender o valor e o sentido de um texto, dele eliminando o conjunto de alterações acumuladas durante o processo da sua transmissão. Portanto, editar criticamente um texto (conjunto de expressões fixadas pela escrita) é apresentá-lo ao leitor em sua forma possivelmente originária ou livre de impurezas. Em outras palavras, um texto-mensagem pressupõe a existência de um código lingüístico usado em determinada época; de um emissor ou autor; de um canal ou veículo de transmissão, que é o documento manuscrito ou impresso; e de um receptor ou leitor. E, comosempreruídosem qualquer processo de comunicação, a edição de um texto está sempre sujeita a lacunas, saltos, lapsos de revisão ou de cópia, omissões, transposições, em suma, erros de toda espécie, cabendo à Crítica Textual a análise técnica de todas essas questões, sempre com a finalidade de restituir o texto à sua possível forma originária ou genuína.

Quanto à nomenclatura basicamente utilizada, por autógrafo (documento escrito pelo autor) se entende um texto que exprime a vontade definitiva de quem o escreveu. Mas esse texto pode ser copiado, chamando-se então apógrafo, em duas situações: sem a revisão do autor, ficando assim sujeito aos erros normais de qualquer cópia, ou sob o controle do autor, à mão ou à máquina (datilografado ou digitado). Assim, acrescenta ainda o autor citado, original e autógrafo não são palavras necessariamente sinônimas, que um texto pode ser original, mas não autógrafo, no caso de ter sido ditado pelo autor ou resultar de uma gravação por ele feita. Além disso, quando o autor resume um texto por ele escrito, tem-se o caso de um autógrafo, nãodúvida, mas de um autógrafo que não se confunde com o original. De qualquer forma, edição original é aquela que foi preparada de acordo com a vontade do seu autor.

Entretanto, nem mesmo um original autógrafo exclui a presença ou possibilidade de erros, pois nele podem ocorrer falhas motivadas por descuido ou distração involuntária. Em tais casos, qualquer correção deve ser devidamente justificada pelo editor, sempre à luz da coerência e do sentido do texto, mas sem querer substituir a cultura do autor por sua própria cultura. Por exemplo, mesmo num original autógrafo, será legítima a retificação de datas históricas equivocadas ou de cálculos matemáticos mal feitos, como será legítima a correção de citações erradas, mas sempre em forma de advertência ao leitor, pois o respeito ao texto alheio é um princípio sagrado da Ecdótica.

Além dos possíveis erros do próprio autor, os especialistas em Crítica Textual costumam tratar ainda das chamadas variantes do autor, introduzidas no texto durante a sua revisão manuscrita, datilográfica ou mesmo impressa. Com efeito, quem escreve corrige e emenda o próprio texto, em geral várias vezes, com o sentido de aperfeiçoá-lo. E tal fato é de extrema importância não apenas para a crítica estilística, mas também para a crítica genética. Como exemplo, cite-se o confronto de originais de Cobra Norato com várias edições dessa obra de Raul Bopp, trabalho que ainda não se fez. No caso, saltará aos olhos a extensa constelação de variantes do autor, todas revestidas de grande interesse ecdótico e estético-literário.

Na hipótese de ter o mesmo texto passado por várias redações, a partir de um rascunho inicial, não inutilizado pelo autor, tem-se a chamada redação múltipla. No caso, quandoindicação de datas, a tarefa é mais simples, pois a última cópia datada naturalmente prevalece sobre as anteriores. O difícil é quando não se pode determinar uma seqüência cronológica precisa, ou mesmo relativa. Nesse sentido, pode até ocorrer o caso de que a verdadeira vontade do autor tenha sido a da não publicação do texto, razão por que a edição póstuma de um manuscrito é sempre um problema complexo. Realmente, quem pode assegurar que esteja, num determinado manuscrito autógrafo, a última vontade do autor? Muitas vezes, a versão encontrada é ainda primitiva, ou simples rascunho, tendo sido interrompido o processo de elaboração do texto com a morte do autor. Por isso mesmo, a publicação póstuma de qualquer manuscrito autógrafo deve ser feita com muita cautela, se isso for indispensável, para que não se comprometa o próprio nome do escritor. Muitas vezes, o melhor é não publicar o texto, sobretudo quando se trata de evidente rascunho inicial, ou publicá-lo com muitas ressalvas ou muitas observações críticas. Seja como for, o trabalho de crítica genética, voltado para as variantes do autor, ou para o processo de elaboração de um texto, não se confunde com as atividades específicas da crítica reconstitutiva, sempre voltada para o estudo das variantes textuais, colhidas em manuscritos apógrafos ou em várias edições sucessivas da mesma obra. Por exemplo, no caso específico da lírica de Camões, que não dispõe de um autógrafo sequer, a crítica textual pode basear-se nos manuscritos apógrafos oulivros de mão” da época, pois tais cancioneiros miscelânicos é que deram origem às duas edições póstumas, impressas no século XVI: Rhythmas (1595) e Rimas (1598). Do século XVII em diante, com a publicação das Rimas Várias, por Manuel de Faria e Sousa, das fontes de tradição impressa se criaram, ambas corrompidas, a segunda muito mais que a primeira. Isso nos mostra que, em nossos dias, torna-se inteiramente indispensável retornar à tradição manuscrita dos cancioneiros da época, onde a lírica camoniana ficou dispersa e fragmentada, como base de qualquer edição interpretativa ou crítica.

Em síntese, tais noções preliminares se tornam necessárias numa obra teórica de iniciação em Crítica Textual. O conceito de erro está presente em tudo, dele não escapando o próprio autógrafo ou a própria edição original. Por fim as chamadas variantes do autor, incluindo-se aqui o caso de redações múltiplas, não devem ser confundidas com as variantes textuais propriamente ditas, interessando as primeiras muito mais à crítica genética e as segundas à crítica textual especificamente considerada.

 

Tipos de Edição

Em princípio, há três tipos de edição: a edição mecânica, a edição diplomática e a edição crítica.

Nesta oportunidade, trataremos apenas da edição crítica, por absoluta falta de tempo, visto que também a edição mecânica e a edição diplomática têm o seu valor filológico e científico, dependendo do material disponível como fonte ou base para cada uma dessas formas de edição de textos.

Em geral, a edição crítica se volta para obras com tradição textual divergente ou múltipla, devendo então se procurar a unidade de lição. Se as edições mecânicas e as edições diplomáticas se destinam mais a especialistas que ao grande público, as edições diplomático-interpretativas e crítica têm um público mais amplo, embora não especializado. Como aqui mesmo vimos, nos manuscritos, além das dificuldades paleográficas e codicológicas sempre existentes, a freqüente falta de pontuação, os erros de cópia, as lacunas, as inovações, as corruptelas, as abreviaturas, as interpolações e a própria grafia, com separação de partes de um vocábulo, ou junção de vocábulos diferentes num conglomerado, entre vários outros elementos, como as relações entre grafema e fonema, dificultam extremamente a leitura do texto, gerando confusões em pessoas não especializadas. De tudo isso e de muito mais trata uma edição crítica, a partir de normas de transcrição textual previamente estabelecidas. Na edição crítica da Lírica de Camões, vol. II, Leodegário procura mostrar que o soneto “Se tanta pena tenho merecida”, como ocorre em relação a vários outros textos líricos de Camões, aparece inteiramente corrompido na dupla tradição impressa, a partir da leitura das duas edições quinhentistas (1595 e 1598) e a partir da edição de Manuel de Faria e Sousa, do século XVII.

Como prova, veja o segundo quarteto, conforme a leitura encontrada na editio princeps (1595), em transcrição diplomática:

Nella exprimentay se sois servida,

Desprezos, disfavores, & asperezas,

Que mòres soffrimentos, & firmezas,

Sostentarei na guerra desta vida.

Nos Manuscritos quinhentistas em que o soneto se conserva, entretanto, o terceiro verso do citado quarteto aparece assim:

1 – que a moores soffrimentos, e firmezas

(Cancioneiro de Cristóvão Borges, ed. de Askins, fólio 19v.)

2 – amores, sofrimtos, e firmezas

(Cancioneiro de Luís Franco Correa, fólio 41v.)

3 – amores, sofrimtos, e firmezas

 (Cancioneiro de Luís Franco Correa, fólio 123v.)

4 – amores, sofrimentos, e firmezas

(Cancioneiro de Madrid, Ms. D-199, da Real Academia da História, fólio 21)

Nas duas edições quinhentistas, a citada edição de 1595 e a edição de 1598, entretanto, o verso aparece assim:

5 – Que mòres soffrimentos, & firmezas

(Rhythmas, fólio 8v.)

6 – Que mòres soffrimentos, & firmezas

(Rimas, fólio 9)

Na edição seiscentista de Manuel de Faria e Sousa (Rimas Várias de Luís de Camões, vol. I, 33), que é o ponto de partida da segunda tradição impressa, o verso aparece assim:

7 – Que móres sofrimentos, & firmezas,

Como se , a dupla tradição impressa alterou .. amores .. (a partir, certamente, da grafia ..a moores.., encontrada no Cancioneiro de Cristóvão Borges, ou em outro manuscrito pertencente à mesma família), para ..mores.., com supressão de a- inicial de “amores”. No caso, a má leitura do manuscrito gerou duas graves alterações posteriores no texto: o verbo sostentarão. (último verso do quarteto), que assim mesmo aparece em todos os manuscritos, passou a Sustentarei.. na dupla tradição impressa corrompida, transformando-se o objeto direto a guerra desta vida (que assim aparece em todos os manuscritos) em adjunto adverbial: ..na guerra desta vida. Tudo isso, evidentemente, compromete a sintaxe e a semântica dos versos, que o sujeito de “sostentarão” é “amores, sofrimentos e firmezas” e não o pronomeeu”, oculto na leitura corrompida da dupla tradição impressa do texto. Portanto, esse conjunto de alterações claramente prova que, no 7º verso, a lição autêntica e muito provavelmente exata, conforme o testemunho dos manuscritos, é “amores” e não “a móres”, alterado simplesmente paramores”. Como se verifica, a separação gráfica de partes de um vocábulo (a moores), no Cancioneiro de Cristóvão Borges, em que a reduplicação vocálica apenas indica tonicidade, confundiu o editor das Rhythmas (1595), o primeiro responsável pela alteração do texto, gerando-se então a má leitura do 7º verso, que se refletiu nos versos seguintes do soneto. E a leitura do primeiro editor, seguida pelo segundo e acolhida por Faria e Sousa, penetrou na dupla tradição impressa, chegando aos nossos dias, como se pode ver em todas as edições antigas e modernas, sem exceção alguma, da obra lírica de Camões.

O exemplo acima nos mostra que toda cópia está sujeita a corruptelas, trate-se de cópia manual e individualizada, trate-se de cópia ou reprodução tipográfica e plural. Por isso mesmo, o confronto entre as cópias existentes (collatio) revela sempre um determinado número de variantes, em face de um exemplar de colação. Reconhecer, entre lições concorrentes, a que está errada, tanto pode ser muito fácil, nos casos de erros gritantes, ou de várias lições coincidentes contra uma lição singular, como pode ser uma tarefa extremamente complexa, ainda que possível. Como exemplo de dificuldade, eis o caso de uma tradição manuscrita ternária e não contaminada, tendo-se três variantes adiáforas ou concorrentes. Qual delas deve ser escolhida? Como é óbvio, aqui não se podem combinar as lições conjuntas de dois manuscritos (A e B) contra a lição isolada de outro (C), pois as três lições são diferentes. Em tal situação, resta ao editor do texto, impossibilitado de recorrer à lei do predomínio numérico das variantes, apelar para a existência de uma lectio difficilior, capaz de explicar as lições trivializadas ou banalizadas dos outros dois testemunhos, ou, na ausência de lectio difficilior, ou de alguma lição que assim possa ser considerada, apelar para o usus scribendi do autor. Quando nada disso tiver condições de resolver o problema, a última solução consiste em manter inalterada a lição do texto manuscrito que foi tomado como exemplar de colação, desde que não apresente nenhum erra na técnica do verso, se o texto for de poesia, onde a questão dos encontros vocálicos é muito importante. Aliás, tudo isso indica que o exercício do judicium, numa edição crítica, é de todo indispensável, mesmo quando aparentemente se possa admitir uma seleção automática de variantes com base no princípio de que lectio plurium codicum potior. As exceções, em todas normas de crítica textual, quase sempre, são uma constante. Assim, a qualidade de uma edição crítica também via depender do acerto das decisões assumidas pelo editor, com base em sua experiência e cultura. Na tradição ou transmissão de um texto, com efeito, há sempre erros de toda espécie, a partir dos chamados erros psicológicos ou decorrentes da interferência psicológica no próprio ato da leitura, até se chegar aos erros derivados da própria decifração do manuscrito ou de sua transcrição mecânica, no último caso citando-se os saltos e as reduplicações, como exemplo. Portanto, a Psicologia da Cópia é também uma ciência auxiliar da Ecdótica, que a própria Psicologia da Gestalt (forma, estrutura, configuração, conjunto) nos ensina que não se lê uma linha letra por letra, ou sílaba por sílaba, a não ser quando se tem dificuldade na compreensão do sentido de palavras estranhas. Lê-se o conjunto ou a palavração, unindo segmentos mais ou menos longos, por sentenciação, conforme a prática de leitura de cada um. Por isso mesmo, vezes sem conta, lê-se uma palavra por outra, ou se passa por cima, tudo dependendo ainda, nos casos de tradição manuscrita, da própria grafia dos manuscritos e mesmo da troca de letras ou de palavras, como o caso de “amores”, que afinal deu “mores”, há pouco comentado. Em português, por exemplo, há palavras e expressões que vão caindo em desuso, pela sistemática incidência de erro em relação a elas, como é o caso da expressão “à saciedade”, bastante evitada pelos escritores, pois em geral se imprime “à sociedade”, em seu lugar. Nos próprios termos técnicos da Crítica Textualexemplo disso, como é o caso do verbocolacionar”, muitas vezes impressocolecionarpelos tipógrafos e linotipistas. Na verdade, é muito raro encontrar-se um texto impresso sem a presença de algum erro.

Por outro lado, por menor que seja o intervalo de leitura de um manuscrito em relação à sua cópia, pequenos erros de memória em geral se cometem, quase sempre por interferência psicológica. Qualquer digitador, quando copia um texto manuscrito, autógrafo ou apógrafo, comete erros de tal tipo, pulando ou reduplicando palavras, ou mesmo pequenos trechos. A automatização da cópia, sempre à mercê de fatores psicológicos, responde assim pelos chamados erros de leitura interior, não raro com interpolações, assim como os erros mecânicos ou simplesmente materiais geram confusão de leitura, do timo “amopor “anno”. E não se esqueça também dos erros oriundos de conjectura dos copistas, diante de certas dificuldades gráficas encontradas em manuscritos de épocas passadas, que são os chamados erros inovadores, como esquecer não se deve do chamado erro homotelêutico, com saltos longos ou pequenos, motivados pela repetição da mesma palavra, linhas adiante, recomeçando-se a transcrição a partir daí.

Em suma, de cópia em cópia os erros se vão multiplicando, muitas vezes sendo impossível retornar-se à lição original, pelo menos de modo incontroverso. Em tais casos, o recurso ao critério da lectio difficilior [lição mais difícil] tem sido muito proveitoso, pois ela é que vai explicar as trivializações ou banalizações posteriores. Cita-se aqui, como exemplo, o quarto verso do sonetoSete anos de pastor Jacob servia”, de Camões, assim encontrado na boa lição manuscrita: “e a ela por soldada pretendida”, e assim aparecendo o verso em toda a tradição impressa: “e a ela por prêmio pretendia”. Como é evidente, ressalvada qualquer hipótese de variante do autor, se Camões tivesse escritoprêmio”, a nenhum copista, por mais arbitrário que fosse, certamente, ocorreria a idéia de substituir tal palavra porsoldada”. O contrário, entretanto, é perfeitamente admissível, queprêmio” é termo menos realista e talvez mais literário. Portanto, a lectio difficilior pode sersoldada” e nãoprêmio”, pois ela é que explica a origem da outra. Mas é a leitura trivializada ou “aperfeiçoada” que vai vencer os séculos, chegando aos nossos dias, como se pode ver em qualquer edição, antiga ou moderna, da lírica de Camões.

Em conclusão, a despeito de todo o rigor científico-filológico empregado numa edição crítica, nãoedições críticas perfeitas. Mas é a perfeição o seu objetivo maior, incansavelmente procurado pelo editor, sem atingi-lo nunca. E vem daí o fascínio dessa atividade humanística, pois a busca da perfeição, ainda que inatingível, é que nos pode verdadeiramente enriquecer.

 

CONCLUSÃO

Atentem-se os prezados minicursistas para a particularidade do texto apresentado como roteiro desse trabalho, para não se passar a ilusão de que sou, de fato, o seu autor, já que fiz simplesmente uma adaptação dos capítulos correspondentes da obra do Professor Leodegário A. de Azevedo Filho (1987 e 2004), publicada como Iniciação em Crítica Textual e como Base Teórica de Crítica Textual, respectivamente.

 

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