Fundamentação filosófica das gramáticas
(TEORIA DOS ATOS DA FALA)
Gustavo Adolfo da Silva (UERJ e UGF)
Introdução
No Gênesis,
vê-se que a linguagem é um atributo da divindade, pois o criador dela se vale
quando realiza sua obra. Deus cria o mundo falando. No início, não havia nada. Depois,
há o caos:
No princípio,
criou Deus o céu e a terra. A terra, contudo, estava vazia e vaga e as trevas
cobriam o abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas (1,1,2).
A passagem do
caos à ordem (=cosmo) faz-se por meio de um ato de linguagem. É esta que dá
sentido ao mundo. O poder criador da divindade é exercido pela linguagem, que
tem, no mito, um poder ilocucional, já que nela e por ela se ordena o mundo:
Deus disse:
“Faça-se a luz”. E a luz foi feita. E viu Deus que a luz era boa: e separou a
luz e as trevas. Deus chamou à luz dia e às trevas, noite; fez-se uma tarde e
uma manhã, primeiro dia (1.3,5).
Ao mesmo tempo
que faz as coisas, Deus denomina-as. No universo mítico, dar nome é criar. Até
o quinto dia, o senhor vai criando lingüisticamente o mundo.
A expulsão do
paraíso foi a colocação do homem na História. No âmbito da linguagem, o que
pertence à ordem da História é o discurso. Colocar o homem na História é
enunciá-lo.
Dentro desta
visão performativa da linguagem, é que nos propomos, num esforço de síntese, a
acompanhar a evolução do pensamento de Austin.
A TEORIA DOS ATOS DE FALA
A Teoria dos
Atos de Fala surgiu no interior da Filosofia da Linguagem, no início dos anos
sessenta, tendo sido, posteriormente apropriada pela Pragmática. Filósofos da
Escola Analítica de Oxford, tendo como pioneiro o inglês John Langshaw Austin
(1911-1960), seguido por John Searle e outros, entendiam a linguagem como uma
forma de ação ("todo dizer é um fazer"). Passaram, então, a refletir
sobre os diversos tipos de ações humanas que se realizam através da linguagem: os
"atos de fala", (em inglês, "Speech acts").
A Teoria dos
Atos de Fala tem por base doze conferências proferidas por Austin na
Universidade de Harvard, EUA, em 1955, e publicadas postumamente, em 1962, no
livro How to do Things with words. O título da obra resume claramente a idéia
principal defendida por Austin: dizer é transmitir informações, mas é também
(e, sobretudo,) uma forma de agir sobre o interlocutor e sobre o mundo
circundante.
Até então, os
lingüistas e os filósofos, de modo geral, pensavam que as afirmações serviam
apenas para descrever um estado de coisas, e, portanto, eram verdadeiras ou
falsas. Austin põe em xeque essa visão descritiva da língua, mostrando que
certas afirmações não servem para descrever nada, mas sim para realizar ações.
Inicialmente,
Austin (1962) distinguiu dois tipos de enunciados: os constativos e os
performa1ivos:
• enunciados constativos
são aqueles que descrevem ou relatam um estado de coisas, e que, por isso, se
submetem ao critério de verificabilidade, isto é, podem ser rotulados de
verdadeiros ou falsos. Na prática, são os enunciados comumente denominados de
afirmações, descrições ou relatos, como Eu jogo futebol; A Terra gira em
torno do sol; A mosca caiu na sopa etc.;
• enunciados
performativos são enunciados que não descrevem, não relatam, nem constatam
absolutamente nada, e, portanto, não se submetem ao critério de
verificabilidade (não são falsos nem verdadeiros). Mais precisamente, são
enunciados que, quando proferidos na primeira pessoa do singular do presente do
indicativo, na forma afirmativa e na voz ativa, realizam uma ação (daí o
termo performativo: o verbo inglês to perform significa realizar). Eis alguns
exemplos: Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo;
Eu te condeno a dez meses de trabalho comunitário; Declaro aberta a
sessão; Ordeno que você saia; Eu te perdôo. Tais enunciados, no exato
momento em que são proferidos, realizam a ação denotada pelo verbo; não servem
para descrever nada, mas sim para executar atos (ato de batizar, condenar,
perdoar, abrir uma sessão etc.). Nesse sentido, dizer algo é fazer algo. Com
efeito, dizer, por exemplo, Declaro aberta a sessão não é informar sobre
a abertura da sessão, é abrir a sessão. São os enunciados performativos que
constituem o maior foco de interesse de Austin.
É preciso
observar, no entanto, que o simples fato de proferir um enunciado performativo
não garante a sua realização. Para que um enunciado performativo seja
bem-sucedido, ou seja, para que a ação por ele designada seja de fato
realizada, é preciso, ainda, que as circunstâncias sejam adequadas. Um
enunciado performativo pronunciado em circunstâncias inadequadas não é falso,
mas sim nulo, sem efeito: ele simplesmente fracassa. Assim, por exemplo, se um
faxineiro (e não o presidente da câmara) diz Declaro aberta a sessão, o
performativo não se realiza (isto é, a sessão não se abre), porque o faxineiro
não tem poder ou autoridade para abrir a sessão. O enunciado é, portanto, nulo,
sem efeito (ou, nas palavras de Austin,
"infeliz").
Aos critérios
que precisam ser satisfeitos para que um enunciado performativo seja
bem-sucedido, Austin denominou "condições de felicidade”. As principais
são:
. falante deve ter autoridade
para executar o ato (como no exemplo do parágrafo anterior);
. as circunstâncias em que as
palavras são proferidas devem ser apropriadas (se o presidente da câmara
declara aberta a sessão, sozinho, em sua casa, o performativo não se realiza, porque não está sendo
enunciado nas circunstâncias apropriadas);
Posteriormente,
ao tentar fixar um critério gramatical para os enunciados performativos
(inicialmente, o critério verbo na primeira pessoa do singular do presente do
indicativo etc.), Austin esbarra em muitos problemas, pois constata, entre
outras coisas, que:
1. nem todo enunciado
performativo tem verbo na primeira pessoa do singular do presente do indicativo
na forma afirmativa e na voz ativa. Eis alguns exemplos:
Proibido fumar; Vocês estão
autorizados a sair; Todos os funcionários estão convidados para a reunião de
hoje.
Nesses exemplos, os atos de proibição, autorização e convite se realizam sem o
emprego de proíbo, autorizo e convido;
2. nem todo enunciado na
primeira pessoa do singular do presente do indicativo na forma afirmativa e na
voz ativa é performativo. Eis alguns exemplos: Eu jogo futebol; Eu
corro; Eu estudo inglês. Nesses exemplos, os atos de jogar futebol, correr
e estudar inglês não se realizam ao se enunciar tais sentenças.
Apesar disso, Austin
não abandona, logo de início, a idéia de encontrar um critério gramatical para
definir os enunciados performativos, mas parece que acaba encontrando mais
problemas do que soluções. Um deles é a constatação de que pode haver
enunciados performativos sem nenhuma palavra relacionada ao ato que executam. É
o caso, por exemplo, de enunciados como Curva perigosa e Virei amanhã,
que podem equivaler, respectivamente, a Eu te advirto que a curva é perigosa
e Eu prometo que virei amanhã. É o caso também dos imperativos, como Feche
a porta, cuja performatividade pode ser explicitada em Eu ordeno que
você feche a porta.
Há, porém, uma
diferença entre esses dois tipos de performativo: Eu ordeno que você saia
é uma frase que tem uma indicação muito precisa do ato que realiza: trata-se de
uma ordem e nada mais. Já Saia é vago ou ambíguo: pode ser uma ordem, um
pedido, um conselho etc.
Face a essa constatação,
Austin passa a propor a distinção performativo explícito (para enunciados
com performatividade explícita, como em Eu ordeno que você saia), em
oposição a performativo implícito, ou primário (para enunciados sem
performatividade explícita, como em Saia). O performativo primário seria
uma espécie de forma reduzida do performativo explícito.
A partir dessa
distinção, Austin constata que a denominação “performativo primário” também se
aplica aos enunciados constativos, e acaba admitindo que a distinção
constativo-performativo se desfaz, já que é possível transformar qualquer
enunciado constativo em performativo, bastando antecedê-lo de verbos como declarar,
afirmar, dizer etc. Por exemplo– [Eu afirmo que] A mosca caiu na sopa; [Eu
digo que] vai chover; [Eu afirmo que] A
terra é redonda etc.
Ao concluir que todos os
enunciados são performativos (porque, no momento em que são enunciados,
realizam algum tipo de ação), Austin retoma o problema em novas bases, e
identifica três atos simultâneos que se realizam em cada enunciado: o
locucionário, o ilocucionário e o perlocucionário:
Austin, então,
postula que todo ato de fala é ao mesmo tempo locucionário, ilocucionário e
perlocucionário. Assim, quando se enuncia a frase Eu prometo que estarei em
casa hoje à noite, há o ato de enunciar cada elemento lingüístico que
compõe a frase. É o ato locucionário. Paralelamente, no momento em que se
enuncia essa frase, realiza-se o ato de promessa. É o ato ilocucionário: o ato
que se realiza na linguagem. Quando se enuncia essa frase, o resultado pode ser
de ameaça, de agrado ou de desagrado. Trata-se do ato perlocucionário: um ato
que não se realiza na linguagem, mas pela linguagem.
Todas essas
noções são retomadas e sistematizadas por John Searle, primeiramente em Speech
actos (1969) e depois em Expression and meaning (1979). Searle distingue cinco
grandes categorias de atos de linguagem:
1. os representativos
(mostram a crença do locutor quanto à verdade de uma proposição: afirmar,
asseverar, dizer);
2. os diretivos (tentam
levar o alocutário a fazer algo: ordenar, pedir, mandar);
3. os comissivos
(comprometem o locutor com uma ação futura: prometer, garantir);
4. os expressivos (expressam
sentimentos: desculpar, agradecer, dar boas vindas);
5. e os declarativos
(produzem uma situação externa nova: batizar, demitir, condenar).
Searle postula
que, ao se comunicar uma frase, realizam-se um ato proposicional (que
corresponde à referência e à predicação, isto é, ao conteúdo comunicado ) e um
ato ilocucional (que corresponde ao ato que se realiza na linguagem). Assim,
para Searle, enunciar uma sentença é executar um ato proposicional e um ato
ilocucional.
Searle chama a
atenção ainda para o fato de que não há uma correspondência biunívoca entre
conteúdo proposicional e força ilocutória, dado que um mesmo conteúdo
proposicional pode exprimir diferentes valores ilocutórios. A proposição João,
estude bastante, por exemplo, pode ter força ilocutória de ordem, pedido, conselho etc.
Essa falta de
correspondência biunívoca entre a estrutura sintática dos enunciados
(declarativa, interrogativa, imperativa etc.) e o seu valor ilocucionário (de
asserção, pergunta, ordem, pedido etc.) levou a se estabelecer uma outra
distinção no interior da Teoria dos Atos de Fala: a distinção entre atos de
fala diretos e atos de fala indiretos:
. um ato de fala é direto,
quando realizado por meio de formas lingüísticas especializadas, isto é,
típicas daquele tipo de ato. Há, por exemplo, uma entonação típica para
perguntas; as formas imperativas são tipicamente usadas para dar ordens ou
fazer pedidos; expressões como por favor, por gentileza etc. são
tipicamente usadas para fazer pedidos ou solicitações etc. Eis alguns exemplos:
Que horas são? (ato de perguntar); Saia daqui (ato de ordenar); Por
favor, traga-me um copo d'água (ato de pedir);
. um ato de fala é indireto
(ou derivado), quando realizado indiretamente, isto é, por meio de formas
lingüísticas típicas de outro tipo de ato. Nesse sentido, "dizer é fazer
uma coisa sob a aparência de outra". Eis alguns exemplos:
.Você tem um cigarro? (pedido com aparência de
pergunta) Quem enuncia essa frase não está perguntando se o alocutário tem ou
não um cigarro, mas, sim, pedindo-lhe que ceda um cigarro.
.Como está abafada esta sala! (pedido com aparência de
constatação) Normalmente, quem enuncia essa frase não está simplesmente fazendo
uma constatação sobre a temperatura no interior do recinto, mas sim pedindo que
o alocutário faça algo para amenizar o calor, como abrir as janelas, ligar o
ventilador, o ar-condicionado etc.
.Você pode fechar a porta? (pedido com aparência de
pergunta) Quem enuncia essa frase não está perguntando sobre a (in)capacidade
física do alocutário de fechar a porta, mas sim pedindo-lhe que feche a porta.
Seria estranho se o alocutário pensasse que a pergunta é mera curiosidade e
respondesse simplesmente sim ou não.
Nesses casos, Searle
(1982) denomina de "secundários" os atos de perguntar, constatar etc.
e de "primário" o ato de pedir. No entanto, do ponto de vista da
interpretação, pode-se dizer que o valor de pergunta e constatação é "literal",
e o valor de pedido, "derivado".
O principal
mecanismo interpretativo que intervém na decodificação dos atos de fala
indiretos são as célebres máximas conversacionais do lingüista Paul Grice.
Quanto menos convencionalizado é um ato de fala indireto, mais ele necessita do
contexto para esclarecer seu valor ilocutório.
Antes de
concluir, cumpre salientar que a Teoria dos Atos de Fala trouxe para o foco de
atenção dos estudos lingüísticos os elementos do contexto (quem fala, com quem
se fala, para que se fala, onde se fala, o que se fala etc.), os quais fornecem
importantes pistas para a compreensão dos enunciados. Essa proposta muito tem
influenciado e inspirado os estudos posteriores destinados a aprofundar as
questões que envolvem a análise dos diferentes tipos de discurso. Com efeito,
os atos de fala são, hoje, uma fonte inesgotável de trabalhos tanto na área da
Pragmática, quanto na área da Lingüística em geral, bem como em outras áreas de
estudos lingüísticos.
Para muitos, a
obra de Austin constituiu um verdadeiro marco divisor dos estudos lingüísticos,
inaugurando uma nova concepção de linguagem: uma concepção performativa e
pragmática de uso da linguagem, rompendo, assim, com uma longa tradição de
estudos lingüísticos, caracterizada por uma concepção meramente descritiva da
linguagem.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AUSTIN, John L. How to do things
with words.
SEARLE, John R. Expression and
meaning. Cambridge:
Cambridge University Press, 1979.
SILVA, Gustavo Adolfo
Pinheiro da. Pragmática: a ordem
dêitica do discurso. Rio de Janeiro: ENELIVROS, 2005.