ESTILO DE
VIRGÍLIO NAS BUCÓLICAS
Márcio Luiz
Moitinha Ribeiro
(UERJ e Seminário São José de
Niterói)
Entre as figuras de harmonia, costuma-se
dar especial atenção às aliterações que consistem na repetição de fonemas em
vocábulos simetricamente dispostos, operando como um apoio rítmico. A
aliteração nasce, algumas vezes, de um desejo de harmonia imitativa, isto é,
pela aliteração, pela repetição de sons das consoantes e vogais, o poeta
procura evocar aquilo que o vocábulo representa semanticamente.
Marouzeau em seu livro Traité de Stylistique Latine assim
afirma ao falar sobre a aliteração em nosso poeta: “Le procédé est constant
chez Virgile.” (Cf. Marouzeau,
1946: 48-9 )
Na aliteração e na assonância, os sons
nos sugerem algo e, por conseguinte, surge a expressividade do verso. Faz-se
mister destacar outro trecho do livro de estilística latina do professor Marouzeau
que comenta a aliteração:
Et l’on notera que la plupart
des exemples d’allitérations qu’on peut relever chez Virgile. (cf. A. Cordier,
L’allitération latine. Le procédé dans
l’Énéide de Virgile. Paris, 1939) sont em même temps des exemples d’harmonie
imitative (cf. ci-dessus, p. 26 et suiv.). Ainsi utilisé, le procedé ne relève
plus seulement de l’esthétique des sons; il rentre dans le cadre de ceux qui
intéressent l’expressivité. (Marouzeau, 1946: 50)
No próximo exemplo, citaremos mais uma
vez a passagem da primeira bucólica
na qual Títiro compara Roma a um cipreste. Vejamos:
Verum haec tantum alias inter caput extulit urbes
quantum lenta solent inter uiburna cupressi (I,24-5)
Mas, esta Roma elevou tanto a cabeça entre as outras
cidades quanto os ciprestes costumam elevá-la entre os arbustos flexíveis.
Virgílio joga aqui com dois mundos: a
natureza representada pelo cipreste; e o mundo artificial, criação do homem,
representado pela cidade. Roma, como o cipreste, se diferencia das cidadezinhas
no tamanho. Há o relevo dado pela imagem do cipreste que se levanta mais alto
do que as outras árvores.
A plasticidade, nestes dois versos
citados, é ressaltada foneticamente pelo –t
reiterado, que vai como que pontilhar a lentidão do crescimento do cipreste, que
cresce lento mais firme. O ritmo é de sílabas que poderíamos chamar sílabas
travadas: “Quam-tam-len-ta.” Esta série de elementos –t está realizando no plano do elemento material da linguagem
(ritmo, estrutura silábica, associação fonética) a mesma coisa que está sendo
sugerida pela imagem do cipreste e seu crescimento sobressalente.
A cadeia fonética do –t quantum
lenta solent inter... contribui também a reforçar a
idéia dos uiburna, que se dobram facilmente
ao vento, porque são flexíveis enquanto o cipreste se mantém firme.
Deste modo, Roma, como o cipreste, se
distingue entre os uiburna, ou seja,
das outras cidades, pela sua altura e pela sua firmeza.
Uma outra passagem de relevo que nos
emociona é o final da primeira bucólica:
et iam summa procul uillarum culmina fumant,
maioresque cadunt altis de montibus umbrae (I,82-3)
e já os mais elevados cumes dos tetos das casas de
campo, à distância, fumegam e maiores sombras caem dos altos montes.
Nestes dois versos, temos doze nasais,
dentre as quais nove são nasais labiais, portanto, mais fortes. Esta série de
nasais abundantes marca a escuridão da fumaça e da sombra que desce
rapidamente.
As sombras poderiam simbolizar, para nós,
as desgraças dos pastores obrigados ao exílio, por isso, caem cada vez maiores,
como se fossem pesadas, cai aquele mundo construído com tanto sacrifício.
Virgílio utiliza o verbo cair para o
movimento das sombras ao pôr-do-sol. Normalmente, o verbo cair é usado para
designar o movimento das coisas que têm peso, pois está ligado ao fenômeno de
força de gravidade da terra, Virgílio consegue com isso tornar a imagem mais
forte e dar-lhe mais poder emotivo, portanto, mais realidade poética.
O estribilho
Para Hênio Tavares (Cf. Tavares, 1978: 222), o estribilho é uma
figura de harmonia que consiste na repetição de um ou mais versos no final de
cada estrofe de uma composição poética.
Sabemos que Teócrito
empregou o estribilho abundantemente, sobretudo no segundo idílio, com uma intenção
definida: sugerir um canto passional.
Comenta Albin Lesky
([s/d.]: 757) que o estribilho era utilizado para a recitação e produzia ágil
movimento da ação, com sua harmonia e com sua repetição característica.
Para Cecília Lopes de
Albuquerque (Cf. Albuquerque,
1995: 24), o estribilho, próprio da poesia popular, era também chamado refrão e consta de um ou mais versos
que se intercalam, de vez em quando, repetindo-se no fim de cada estrofe de uma
composição, suspendendo o canto.
Para Croiset (1899: 206-7),
no movimento regular e apressado dos pequenos grupos de palavras, mais
justapostas do que ligadas, sente-se o tremor da paixão e de algum modo os
batimentos do coração. O tema sobre a morte de Dáfnis, no primeiro idílio de
Teócrito, as plantas da feiticeira, no segundo, com seus refrões
incessantemente repetidos são modelos notáveis e expressivos desse ritmo
apaixonado.
Tendo como modelo Teócrito, que em seu
segundo idílio emprega dois refrões, Virgílio, na oitava bucólica, também
trabalha com dois estribilhos que estão simetricamente dispostos no poema. O
primeiro está contido no canto de Damão e retrata a melancolia de um pastor
traído e abandonado pela pastora Nisa (VIII, 18). Ele deseja morrer a fim de
deixar de sofrer por esse amor infeliz (VIII, 20). Damão no estribilho faz uma
invocação não à musa, mas à sua flauta, como um indício de que vai cantar a
melancolia do pastor traído. Eis o primeiro estribilho:
Incipe Maenalios mecum, mea tibia, uersus.
Inicia comigo, ó minha flauta, os versos de Mênalo.
O Mênalo é um monte da Arcádia, pátria
dos pastores e poetas, consagrado a Pã e às musas. Ao mencionar no estribilho
os versos do Mênalo (Maenalios uersus),
Damão quer afirmar que esses versos são arcádicos e bucólicos. Há uma simbiose
da natureza com o homem, participando a natureza do sentimento, do amor e do
problema do pastor traído (VIII,
22-3).
Nos versos anteriores ao 58°, há uma
sucessão de queixumes do pastor indignado, até que ele anuncia, no verso
abaixo, o desejo de morrer:
Omnia uel medium fiat mare^p (VIII, 58)
Que o alto-mar invada todas as coisas.
Nos versos seguintes, o pastor
aparentemente se despede da flauta e o estribilho se modifica:
Desine Maenalios, iam desine, tibia, uersus. (VIII,61)
Deixa, deixa, já, ó flauta, os versos de Mênalo.
Esta peroração
sugere-nos que ele pára de cantar e se dispõe a morrer. O estribilho desta
primeira parte se repete nove vezes, não só para pontuar o canto do pastor, mas
também para oferecer um ritmo bem forte como se este estivesse representando o
próprio sentimento do pastor traído. Além disso, em cada verso1, após o estribilho, há uma renovação de
seus queixumes, de seus sentimentos traídos e de seu desespero a ponto dele
criar uma seqüência de adúnata (VIII,
51-6), isto é, de fatos que jamais aconteceriam na realidade. Desta maneira,
percebemos a maneira que Virgílio encontrou para realçar, como afirma João
Pedro Mendes (1997: 286), quão desesperada e irreversível é a condição do
apaixonado traído, pois este foi vítima de tal perfídia que pouco lhe importa o
desconcerto universal das leis da natureza.
Quanto ao segundo estribilho, contido no
canto de Alfesibeu, retrata o desespero de uma mulher feiticeira que fala, faz
gestos mágicos e cerimônias bizarras para resgatar das regiões subterrâneas o
seu amado Dáfnis. O estribilho dessa segunda parte do poema é:
Ducite ab urbe domum, mea carmina, ducite Daphnim. (VIII,68)
Encantamentos meus, conduzi Dáfnis, conduzi-o da cidade
a minha casa.
O verbo desse estribilho está no modo
imperativo. Dessa maneira podemos concluir que a feiticeira está ordenando duas
vezes aos seus encantamentos que lhe tragam o seu amado Dáfnis de volta a sua
casa. Vale lembrar que uma criança para nascer precisa esperar nove meses no
ventre de sua mãe, por que não refletir que a cada invocação dela patente no
estribilho, ela está de certa maneira gerando, ou melhor, “ressuscitando”
Dáfnis, visto que o estribilho se repete nove vezes, até o final da oitava
bucólica. Na filosofia pitagórica, o número três é o número perfeito, pois
indica o começo, o meio e o fim. Então, por que não multiplicar o número três,
três vezes para fazer Dáfnis voltar à vida?
No término do canto, de repente, as
chamas do altar se reacendem, de modo que a feiticeira consegue um bom augúrio,
o cachorro late já avisando da chegada do seu dono Dáfnis (VIII, 104-107) e
desse modo a mulher cessa os seus encantamentos dizendo:
Parcite, ab urbe uenit,iam parcite, carmina, Daphnis. (VIII,109)
Cessai, cessai já, encantamentos meus: Dáfnis volta da
cidade.
Entre as figuras de
construção por repetição, as mais utilizadas nas Bucólicas são as anáforas, os polissíndetos e os quiasmos.
A anáfora é a repetição da
mesma palavra ou expressão em espaços regulares no início de frases, períodos
ou versos.
Em toda a obra virgiliana,
observamos uma atenção especial do autor em relação aos sons e ao ritmo. A
anáfora se acumula nos versos conferindo-lhes maior expressividade.
As repetições constantes do
advérbio nunc, na passagem que vem a
seguir, enfatizam a participação da natureza, o que é uma característica da
bucólica virgiliana:
Et nunc omnis ager, nunc omnis parturit arbos,
nunc frondent
siluae, nunc formosissimus annus. (III,56-7)
E agora todo campo, agora toda árvore produz brotos, agora os bosques
estão cobertos de folhas, agora o ano está formosíssimo.
As anáforas acima estão no
início dos hemistíquios dos versos e ajudam a insistir na beleza da estação do
ano, formosissimus annus.
Na décima bucólica, encontramos a construção anafórica do adv. hic, numa passagem na qual Galo imagina falar à sua amada sobre a
presença de um lugar belíssimo, desejando ardentemente passar o resto de seus
dias com Licóride:
Hic gelidi fontes, hic mollia prata, Lycori;
hic nemus; hic ipso tecum consumerer aeuo.(...) (X, 42-3)
Aqui, ó
Licóride, há frescas fontes, aqui há tenros prados; aqui há um bosque; aqui
pela própria duração da vida contigo eu estaria consumido. (...)
Os versos latinos supra contêm
sons e ritmos que evocam equilíbrio e harmonia que a natureza pode oferecer a
Galo. Daí, podemos concluir que se confunde a inspiração poética com sensações
suaves e sons musicais.
No exemplo abaixo da sétima
bucólica, Tírsis, utilizando-se do advérbio hic,
diz a Coridão que há uma lareira, tochas, fogueira e pastores que até cuidam
dos frios de Bóreas:
Hic focus et taedae pingues, hic plurimus ignis
semper,
et adsidua postes fuligine nigri;
hic tantum Boreae curamus frigora,
(...) (VII, 49-51)
Aqui há uma
lareira e tochas resinosas, aqui há sempre muito fogo, e as ombreiras são
escuras com constante fuligem; aqui tanto cuidamos dos frios de Bóreas, (...)
O
polissíndeto
Trata-se da repetição de
conjunções entre orações que se dispõem
Na quarta bucólica, nos versos 50 e 51,
encontramos o uso do polissíndeto, numa passagem em que o poeta fala sobre o
mundo constituído de terra, mar e céu:
Aspice
conuexo nutantem pondere mundum,
terrasque
tractusque maris caelumque profundum; (IV, 50-1)
Vê o
mundo que balança com sua convexa massa e as terras e as extensões do mar e o
elevado céu;
Na quinta bucólica, destacamos a repetição da
conjunção coordenativa aut, dando
origem, assim, ao uso do polissíndeto. A passagem abaixo diz respeito à fala do
pastor Menalcas que ordena a Mopso que
comece a cantar os amores, os louvores ou as contestações:
MENALCAS
Incipe,
Mopse, prior, si quos aut Phyllidis
ignis
aut Alconis habes laudes aut iurgia Codri; (V, 10-1)
MENALCAS
começa,
primeiro Mopso, se tens alguns amores de Fílide ou louvores de Alcão ou
contestações de Codro;
Na quinta, encontramos a repetição da conjunção
enclítica –que:
Ergo
alacris siluas et cetera rura uoluptas
Panaque pastoresque tenet Dryadasque puellas. (V, 58-9)
Logo, o
alegre prazer domina as florestas e os outros campos, e Pã e os pastores e as
meninas Dríades.
Do ponto de vista
estilístico, uso do polissíndeto desponta como recurso à sonoridade dos versos
no realce das idéias, bem como oferece uma movimentação peculiar ao poema.
Uma das principais
características da poesia virgiliana é a
sensibilidade. Ele soube traduzir, em palavras, com simplicidade e arte, os
sons os movimentos, o ritmo e a musicalidade em seus poemas.
O
quiasmo
Guida Nedda Barata Parreiras
Horta (1991, Tomo 2) define quiasmo como uma construção em que se cruzam em X
os elementos componentes de duas frases, membros de frases ou versos, numa
ordem que contraria a esperada simetria paralelística.
Na quarta bucólica, encontramos o quiasmo no
pronome ille e no verbo uidere que se repetem em forma de X. É
uma passagem na qual o poeta afirma que o menino nascituro viverá com os deuses
e heróis:
Ille deum uitam accipiet diuisque uidebit
permixtos
heroas et ipse uidebitur illis
(IV, 15-6)
Ele
aceitará a vida dos deuses e verá os heróis misturados aos deuses e ele próprio
será visto entre eles
Na quinta, o vocábulo Daphnis se repete duas vezes, além dos verbos
conjugados na mesma forma modal, feremus
e amauit, criando-se, dessa maneira,
um quiasmo. O poeta diz de maneira hiperbólica que o nome de Dáfnis será
elevado até aos astros por aqueles que foram amados por Dáfnis:
MENALCAS
Daphnim ad astra feremus: amauit nos
quoque Daphnis. (V, 52)
MENALCAS
levaremos
Dáfnis aos astros: Dáfnis também nos amou.
Nos versos iniciais da sétima
bucólica, encontra-se o quiasmo nos
vocábulos Corydon e Thyrsis que no terceiro verso aparecem
invertidos em Thyrsis e Corydon:
compulerantque greges Corydon et Thyrsis in unum,
Thyrsis ouis, Corydon distentas lacte capellas, (...) (VII,2-3)
Coridão e
Tírsis tinham reunido os seus rebanhos em um único lugar, Tírsis reunira as
ovelhas, Coridão as cabras cheias de leite, (...)
Para Ênio Tavares, as figuras de
pensamento apresentam sua consistência na mente, na emoção ou na paixão que as
palavras ou expressões devam traduzir, podendo ser uma prosopopéia ou
comparação, entre outras coisas.
Passemos a tecer comentários
acerca desses recursos estilísticos; mais a frente, analisaremos os tropos e as
figuras de transposição, que consideramos mais relevantes e que aparecem com
freqüência no bucolismo Virgiliano.
A
personificação ou prosopopéia:
A personificação ou prosopopéia é uma figura
de pensamento que consiste em atribuir qualidades, atitudes ou impulsos
próprios do homem a seres inanimados.
Na primeira bucólica, encontramos uma passagem na qual Melibeu afirma que os
pinheiros, as fontes e até os arbustos chamavam Títiro. Vejamos:
(...). Ipsae
te, Tityre, pinus,
ipsi te fontes, ipsa haec arbusta uocabant. (I, 38-39)
(...). Ó Títiro, os próprios pinheiros, as próprias
fontes, estes próprios arbustos te chamavam.
Na sexta bucólica, Títiro está fazendo um panegírico a Varo, sucessor de
Polião, no governo da Cisalpina, e diz que até os tamarindos e os bosques
cantarão para ele:
(...)Si quis tamen haec quoque, si quis
captus amore leget, te nostrae, Vare, myricae,
te nemus omne
canet; (...) (VI, 9-11)
(...) Contudo, se alguém, se alguém tomado pelo amor
também ler estas coisas, ó Varo, os nossos tamarindos e todo bosque te
cantarão; (...)
Na oitava, o poeta alude ao Mênalo que
possui um bosque retumbante e pinheiros que falam:
Incipe Maenalios mecum, mea tibia, uersus.
Maenalus argutumque
nemus pinosque loquentis
semper habet;(...) (VIII,
21-3)
Inicia comigo, ó minha flauta, os versos de Mênalo. o
Mênalo tem sempre um barulhento bosque e pinheiros que falam;
A
comparação
Na comparação, existe a
presença de uma partícula comparativa entre dois elementos colocados em
confronto.
O uso da comparação é um
traço característico de Virgílio. Sabemos que ela também era uma constante na
poesia helenística, sobretudo em Teócrito.
Observemos abaixo alguns
exemplos que selecionamos das Bucólicas
de Virgílio. No primeiro, Coridão coteja Galatéia com o timo do Hibla, com os
cisnes e com a alva hera:
CORYDON
Nerine Galatea, thymo mihi dulcior Hyblae,
candidior cycnis,
hedera formosior alba, …
(VII, 37-8)
CORIDÃO
Ó Nereida Galatéia, tu és para mim mais doce do que o
tomilho do Hybla, mais branca do que os cisnes, mais formosa do que a pálida
hera,
Tírsis,
logo após a fala de Coridão, lhe responde, comparando-se às ervas Sardônias, à
gilbarbeira e à alga expelida pelo mar:
THYRSIS
Immo ego Sardoniis uidear tibi amarior herbis,
Horridior rusco,
proiecta uilior alga, (...) (VII, 41-2)
TÍRSIS
Antes, que eu te pareça mais amargo do que as sardônias
ervas, mais espinhoso do que a gilbarbeira, mais vil do que a alga expelida
pelo mar, (...)
Na décima bucólica, Galo diz que se vê andando
sobre as rochas e bosques; outrossim, afirma que se apraz em lançar cidônias
flechas como se tudo isto fosse um remédio para a sua paixão:
Iam mihi per rupes uideor lucosque sonantis
ire; libet Partho torquere Cydonia cornu
spicula; tamquam
haec sit nostri medicina furoris, (...) (X, 58-60)
Eu já me vejo a andar através dos rochedos e dos
sonoros bosques; agrada-me lançar cidônias flechas com o arco Parto; como se este
fosse o remédio da nossa paixão (...)
No final da décima bucólica, Galo afirma que o seu amor
cresce a cada momento da mesma forma que o amieiro verdejante se eleva:
(...): uos haec facietis maxima Gallo,
Gallo, cuius amor tantum
mihi crescit in horas,
quantum uere
nouo uiridis se subicit alnus. (X, 72-4)
(...): vós tornareis melhores estes versos para Galo,
Galo, por quem meu amor cresce tanto com as horas, Quanto, na nova primavera,
se eleva o verde amieiro.
Tropos são vocábulos e
expressões que se apresentam em sentido translato e não no próprio.
Selecionamos como exemplos de tropos a metáfora, a metonímia e a sinédoque, que
analisaremos a seguir.
A
metáfora
Ocorrendo quando o vocábulo é
desviado do seu sentido normal, adquirindo um novo significado, a metáfora é
quase uma comparação. Evanildo Bechara (1989: 341) a define como uma translação
de sentido por comparação mental. Há na metáfora também uma relação de
similaridade e esta é o que a define.
Na sexta bucólica, o poeta se utiliza da metáfora prisineiro de amor para elogiar a Varo:
(...) Si
quis tamen haec quoque, si quis
captus amore leget, te nostrae, Vare,
myricae,
te nemus
omne canet; (VI,9-11)
(...) Se alguém, no entanto, se alguém prisioneiro de amor ainda ler
estas coisas, os nossos tamarindos, ó Varo, e todo bosque te cantarão;
Na sétima, o poeta diz que
cada pastor tem os seus afazeres, Tírsis cuida de suas ovelhas e Coridão, de
suas cabras. Ambos são jovens e árcades. A metáfora utilizada pelo poeta, no
verso quatro, é ambo florentes aetatibus,
isto é, ambos que estão florescendo na
idade:
Thyrsis
ouis, Corydon distentas lacte capellas,
Ambo florentes aetatibus, Arcades ambo,
(...) (VII, 3-4)
Tírsis
reunira as ovelhas, Coridão, as cabras cheias de leite; ambos florescendo nas
idades, ambos árcades, (...)
Na nona bucólica,
Méris atribui à primavera a cor da púrpura:
Hic uer purpureum, (...) (IX, 40)
Aqui há
uma primavera purpúrea. (...)
No verso 58, Lícidas cria a
metáfora do sopro, não do homem, mas da brisa que murmura:
(...) uentosi ceciderunt murmuris aurae. (IX,58)
(...) As
brisas do murmúrio do vento se acalmaram.
A
metonímia
Para Hênio Tavares, (1978:
374) a metonímia é a substituição do sentido de uma palavra pelo de outra que
com ela apresenta relação constante.
No segundo verso da primeira
bucólica, Melibeu diz que Títiro modula uma cantilena rústica, empregando a
palavra musa, com a qual se designa a
divindade protetora das artes: siluestrem
musam meditaris; o termo passa a significar, metonimicamente, canto
poético, poema, poesia, cantilena:
MELIBOEVS
Tityre,
tu patulae recubans sub tegmine fagi
Siluestrem tenui musam meditaris auena;
(I,1-2)
MELIBEU
Títiro, tu que estás recostado à sombra da copada faia modulas uma
cantilena rústica na delgada flauta;
Na quarta, a palavra Thetis,
designativa da ninfa do mar, filha de Nereu e Dóris e mãe de Aquiles, está
empregada metonimicamente no sentido de mar.
É uma passagem em que o poeta afirma que subsistirão alguns vestígios da antiga
malícia e estes farão afrontar o mar com navios, cingir as cidades de muros e
abrir na terra os sulcos da lavoura:
Pauca
tamen suberunt priscae uestigia fraudis,
quae
temptare Thetim ratibus, quae
cingere muris
oppida,
quae uibeant telluri infindere sulcos. (IV,
31-3)
Entretanto, poucos vestígios da antiga astúcia estarão presentes, os
quais ordenarão a tocar o mar com naus, a proteger as fortificadas cidades com
muralhas, a abrir sulcos na terra.
Na quinta bucólica, o vocábulo Baccho não será traduzido pelo nome do
deus, mas por vinho. Temos, portanto,
um exemplo de metonímia:
et multo
in primis hilarans conuiuia Baccho,
(...) (V,69)
e
sobretudo alegrando os banquetes com muito vinho, (...)
A
sinédoque
Para Hênio Tavares, (1978: 375-6)
a sinédoque é tratada como um desvio, ou seja, toma-se a parte pelo todo e
vice-versa (lar, em vez de casa e família) ou o gênero pela espécie ou o indivíduo pela classe.
Definimos a sinédoque como
uma figura que se baseia em uma relação de contigüidade, de proximidade entre
dois seres, sendo o nome de um deles empregado para designar o outro. Quando
dizemos “a mão que toca o violão se for preciso vai à guerra”, o vocábulo mão substitui as palavras homem ou mulher. Outrossim, podemos afirmar que a parte é a mão e o todo, o próprio indivíduo.
A seguir, selecionamos três
exemplos de sinédoque, patentes nas Bucólicas
de Virgílio.
Na primeira bucólica,
encontramos a palavra auena que
significa cana, caniço, mas que no verso abaixo significa o objeto flauta
pastoril. Há, portanto, no exemplo abaixo uma sinédoque da matéria auena da qual se origina o objeto.
MELIBOEVS
Tityre,
tu patulae recubans sub tegmine fagi
siluestrem
tenui musam meditaris auena;
(I,1-2)
MELIBEU
Ó Títiro, tu que estás deitado à sombra de uma copada faia, compões um
poema rústico na tênue flauta pastoril.
Na primeira bucólica, encontramos um outro exemplo
de sinédoque do todo que é tomado como parte. Os pastores achavam que todos os
africanos passavam sede e Melibeu diz que ele e seus colegas sairão de suas
terras e alguns irão para junto dos sequiosos africanos:
MELIBOEVS
At nos
hinc alii sitientis ibimus Afros,
pars
Scythiam et rapidum cretae ueniemus Oaxen
et
penitus toto diuisos orbe Britannos.
(I, 64-66)
Mas, nós iremos, deste lugar, uns aos sequiosos africanos, uma parte
de nós irá para a Cítia, e chegaremos ao veloz Oaxe de greda e aos bretões
completamente separados de toda a terra.
Na quarta bucólica, Virgílio, por motivos métricos
e estilísticos, usa os vocábulos nautica
pinus para designar a nau; o pinheiro
náutico é o material com o qual se constrói o navio, como sabemos, de modo
que vemos neste exemplo mais uma sinédoque:
Hinc, ubi
iam firmata uirum te fecerit aetas,
cedet et
ipse mari uector, nec nautica pinus
mutabit
merces; (IV,
37-9)
E, em seguida, quando a idade já fortalecida tiver feito de ti um
homem até o próprio navegante se retirará do mar, e o pinheiro náutico não
mudará as mercadorias;
Hênio Tavares (1978: 339)
define a figura de transposição, anástrofe, como um hipérbato atenuado em que a
inversão se dá não entre orações, mas entre palavras relacionadas entre si.
Na terceira bucólica, o pronome ego e os complementos verbais aparecem no verso 29 e o verbo, no
verso 31. Daí, se configura um exemplo de anástrofe:
(...)?Ego hanc uitulam (ne forte recuses,
bis uenit ad mulctram, binos alit
ubere fetus)
depono:
(III,29-31)
(...)? Eu
aposto esta novilha (para que eventualmente não recuses, ela vem duas vezes ao
tarro, alimenta duas crias com seu úbere):
Nos versos iniciais da nona bucólica, veremos um texto impregnado da
viva emoção que domina o pastor Méris, emoção que se traduz pela anteposição do
adjetivo uiui, pela anástrofe da
conjunção ut e ainda pela violenta
disjunção que ocorre nostri... agelli.
A passagem que vem a seguir
diz respeito às expropriações de terras que acarretaram a revolta e veemente
protestos dos proprietários rurais:
MOERIS
O Lycida,
uiui peruenimus, aduena nostri
(quod
nunquam ueriti sumus) ut possessor
agelli
diceret: “Haec mea sunt; ueteres
migrate coloni.”
Nunc
uicti, tristes, quoniam fors omnia uersat,
Hos illi (quod nec uertat bene!)
mittimus haedos. (IX, 2-6)
MÉRIS
Ó Lícidas, chegamos vivos para que um proprietário estrangeiro do
nosso pequeno campo nos dissesse ( o que nós nunca tememos): “Estes lugares são
meus, velhos agricultores, ide-vos embora. Agora, vencidos e tristes, porque a
fortuna muda todas as coisas, Nós lhe mandamos estes cabritos” (que isto não
lhe seja para bem!).
Na décima, os vocábulos sollicitos Galli estão antepostos ao
acusativo plural amores. Daí, se
configura mais um exemplo de anástrofe. O poeta afirma que os amores de Galo
são inquietos:
(...) sollicitos Galli dicamos amores, (X,6)
(...)
digamos os amores solícitos de Galo.
O
hipérbato
Figura que consiste no
deslocamento brusco de termos na oração ou de orações no período.
Nos versos 77 e 78 da
primeira bucólica, os complementos verbais em acusativo se antepõem aos verbos
transitivos diretos de modo que o hipérbato está patente na fala abaixo de
Melibeu:
MELIBOEVS
carmina nulla canam; non, me pascente,
capellae,
florentem cytisum et salices carpetis
amaras. (I,
77-8)
MELIBEU
nenhuma poema cantarei; estando eu apascentando, vós não arrancareis,
ó cabras, o codesso que floresce e nem os amargos salgueiros.
Galo, na passagem a seguir,
diz que o seu corpo se repousaria, se a flauta dos árcades dissesse os amores
do poeta. Há no verso latino um afastamento do vocábulo uestra que concorda com fistula
e meos com amores:
Tristis
at ille: “Tamen cantabitis, Arcades, inquit,
montibus
haec uestris, soli cantare periti
Arcades.
O mihi tum quam molliter ossa quiescant,
uestra meos olim si fistula
dicat amores! (X, 31-4)
mas, ele disse entristecido: “ó árcades, apesar de tudo, vós cantareis
estas coisas aos vossos montes, só vós sois, ó árcades, hábeis no cantar. Oh,
então quão suavemente repousem os meus ossos, se um dia a vossa flauta disser
os meus amores!
No verso 50 da décima bucólica, a oração relativa quae sunt mihi condita antecede o vocábulo
carmina e nesta inversão da oração no
período, caracteriza-se o hipérbato:
Ibo et
Chalcidico quae sunt mihi condita
uersu
carmina pastoris Siculi modulabor
auena. (X,50-1)
Irei e
cantarei em calcídico verso os poemas que foram compostos por mim na flauta do
siciliano pastor.
O hipérbato, do ponto de
vista da língua, é convencional, mas na linguagem poética, é motivado, ou seja,
justificado para dar relevo à idéia poética.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ARAÚJO, Cecília Lopes de Albuquerque. A poesia bucólica
BECHARA,
Evanildo. Moderna gramática portuguesa. Cursos
de 1o e 2o graus. Rio de Janeiro: Cia. Ed. Nacional,
1989.
CROISET, Alfred. Histoire
de la littérature grecque.
HORTA,
Guida Nedda Barata Parreiras. Curso de
iniciação à cultura helênica. Rio de Janeiro: Di Giorgio, 1983.
LESKY, Albin. História
de la literatura griega. Versión española de José Maria Diaz Regañon y
Beatriz Romero. Madrid: Gredos, [s/d.?].
MAROUZEAU,
J. Traité de stylistique latine.
MENDES, João Pedro. Construção e arte das Bucólicas de Virgílio. Coimbra: Almedina,
1997.
TAVARES,
Hênio. Teoria literária. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1978.
1 O verso etimologicamente significa
linha, fileira, por sua vez ele provém do verbo uertere o qual indica voltar, fazer girar. Daí podemos concluir o
motivo pelo qual o estribilho se repete várias vezes, pois é uma forma de verso
que reforça o escopo do pastor em querer cantar os seus sentimentos.