Gênero
textual:
uma jornada a partir de bakhtin
Cleide Emília Faye Pedrosa (UFS)
Introdução
Hoje em dia, tornou-se relativamente comum entre nós partir das idéias de Bakhtin para o estudo dos gêneros textuais. No entanto, antes de percorrer essa via e abordar a teoria dos gêneros de Bakhtin, são imprescindíveis algumas reflexões sobre seu posicionamento no contexto dos estudos lingüísticos.
Linguagem: uma atividade interativa
Para Bakhtin, a linguagem permeia toda a vida social, exercendo um papel central na formação sociopolítica e nos sistemas ideológicos. Entre as categorias centrais na obra bakhtiniana estão as noções de linguagem, interação, dialogismo e ideologia. Principalmente na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem (BAKHTIN, 1997), a posição bakhtiniana é clara ao rebater a noção de língua sustentada no objetivismo ou no subjetivismo.
A linguagem é de natureza socioideológica e tudo “que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo” (BAKHTIN, 1997: 31, destaque do autor). A ideologia é um reflexo das estruturas sociais e entre linguagem e sociedade existem relações dinâmicas e complexas que se materializam nos discursos ou, melhor, nos gêneros do discurso.
Bakhtin critica o objetivismo abstrato de Saussure e o subjetivismo idealista de Humboldt nos estudos lingüísticos, na medida em que não aceita a língua como simples código nem a primazia do sujeito como indivíduo, pois, argumenta, sempre falamos ou escrevemos para alguém em alguma circunstância social mais ampla, de caráter comunicativo.
Em oposição ao objetivismo abstrato, ele defende explicitamente que “a palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial” (BAKHTIN, 1997: 95, destaque do autor) e observa que um dos erros mais grosseiros desse objetivismo é separar a língua de seu conteúdo ideológico.
O subjetivismo individualista, como ponto de partida para a reflexão sobre a língua, apóia-se na enunciação monológica. Rebatendo essa postura romântica, Bakhtin (1997) assevera que, na realidade, as palavras devem ser vistas com duas faces, uma vez que resultam da interação entre locutor e ouvinte. Ele reconhece que “o subjetivismo individualista tem toda a razão quando diz que não se pode isolar uma forma lingüística do seu conteúdo ideológico. Toda palavra é ideológica e toda utilização está ligada à evolução ideológica” (BAKHTIN, 1997: 122). Entretanto, segundo o autor, os subjetivistas estão equivocados quando afirmam que esse conteúdo ideológico pode ser deduzido das condições do psiquismo individual.
Em resumo, “a língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema lingüístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes” (BAKHTIN, 1997: 124, destaque do autor). Assim, a língua constitui um processo e, como tal, apresenta uma evolução ininterrupta, que se concretiza como interação verbo-social dos locutores. Por isso é que se pode afirmar que as leis da evolução da língua são leis sociológicas.
Categoria relevante, nesse contexto teórico, é a noção de dialogismo como princípio fundador da linguagem: toda linguagem é dialógica, isto é, todo enunciado é sempre um enunciado de um locutor para seu interlocutor. Daí, a concepção de gênero textual de Bakhtin (2000) como enunciado responsivo, o que está de acordo com a idéia de linguagem como atividade interativa, e não como forma ou sistema.
Gênero textual: visão bakhtiniana
Bakhtin dá início a seu estudo sobre os gêneros de discurso ressaltando que todas as atividades humanas estão relacionadas à utilização da língua e que, portanto, não é de admirar que tenhamos tanta diversidade nesse uso e uma conseqüente variedade de gêneros que se afiguram incalculáveis. Também observa que toda essa atividade se concretiza “[...] em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou outra esfera da atividade humana” (BAKHTIN, 2000: 279).
Essas atividades não são acidentais nem desordenadas, tendo em vista que os enunciados produzidos refletem as condições particulares e os objetivos de cada uma dessas esferas, não somente por seu conteúdo, seu estilo verbal, isto é, pela seleção operada nos recursos da língua (recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais), mas também, e principalmente, por sua construção composicional. Essa formulação veicula um aspecto central da teoria do gênero do discurso segundo a visão bakhtiniana, a de que os gêneros possuem três dimensões constitutivas:
a. conteúdo temático ou aspecto temático – objetos, sentidos, conteúdos, gerados numa esfera discursiva com suas realidades socioculturais;
b. estilo ou aspecto expressivo – seleção lexical, frasal, gramatical, formas de dizer que têm sua compreensão determinada pelo gênero;
c. construção composicional ou aspecto formal do texto – procedimentos, relações, organização, participações que se referem à estruturação e acabamento do texto, levando em conta os participantes.
Os gêneros estão sempre ligados a algum tema e a um estilo, com uma composição própria, e com eles operamos de modo inevitável e incontornável, desde que usemos a língua:
Esses gêneros do discurso nos são dados quase como nos é dada a língua materna, que dominamos com facilidade antes mesmo que lhe estudemos a gramática [...] Aprender a falar é aprender a estruturar enunciados [...] Os gêneros do discurso organizam nossa fala da mesma maneira que a organizam as formas gramaticais. [...] Se não existissem os gêneros do discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível (BAKHTIN, 2000: 301-302).
Uma releitura de Bakhtin revela-nos que os gêneros discursivos não são criados, a cada vez, pelos falantes, porém são transmitidos social e historicamente (MARCUSCHI, 2002a). Não obstante, os falantes contribuem, de forma dinâmica, tanto para sua preservação como para sua permanente transformação e renovação. Essa explicação atende ao critério de criatividade nos usos dos gêneros.
O gênero e o enunciado mantêm uma relação bastante excêntrica, na medida em que o enunciado é não-repetível e individual, enquanto o gênero é relativamente estável, histórico e não-individual. Assim se consolida a já tão conhecida e repetida definição de gênero: “Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso” (BAKTHIN, 2000: 279, destaques do autor).
Bakhtin defende uma relação muito estreita entre os vários processos de formação dos gêneros e as ações humanas, tanto as individuais como as coletivas, o que envolve um historicismo necessário. Língua e vida humana interpenetram-se de tal modo que um gênero não será, nunca, mero ato individual, porém, uma forma de inserção social.
Os gêneros do discurso, em Bakhtin, são formas históricas características de enunciados, e não tipos abstratos e formais de textos. O texto, oral ou escrito, é uma unidade que ocorre na realidade imediata analisável, não no domínio formal da língua. Assim, de certa forma, para Bakhtin, o texto e os gêneros não são objetos da Lingüística, já que essa só se ocupa dos aspectos formais da língua (MARCUSCHI, 2002a).
Podemos apontar, como importantes, os seguintes componentes da construção das bases sócio-interativas, da teoria dos gêneros de Bakhtin (2000):
a. cada esfera de atividade humana elabora “tipos relativamente estáveis” de enunciados, denominados “gêneros do discurso” (BAKHTIN, 2000: 279);
b.os gêneros, numa determinada esfera de comunicação, caracterizam-se pelo conteúdo temático, pelo estilo e pela construção composicional;
c.“a variedade dos gêneros do discurso pressupõe a variedade dos escopos intencionais daquele que fala ou escreve” (BAKHTIN, 2000: 291);
d. os gêneros caracterizam-se como tipos de enunciados particulares, concretos, relacionados a distintas esferas da atividade e da comunicação – esse aspecto indica que os gêneros também são determinados pelos parâmetros de construção dos destinatários;
e. o enunciado é a unidade real da comunicação verbal, a fala só existe na realização concreta dos enunciados de um indivíduo em situação de comunicação, portanto, o “enunciado não é uma unidade convencional, mas uma unidade real, estritamente delimitada pela alternância dos falantes” (BAKHTIN, 2000: 294).
Bakhtin vê os gêneros como resultado de um uso comunicativo da língua em sua realização dialógica, de forma que os indivíduos, quando se comunicam, não trocam orações nem palavras, porém trocam enunciados que se constituem com os recursos formais da língua (gramática e léxico). Um outro fator constitutivo do gênero que tem relevância é a questão de ele não ser decidido ad hoc pelos interlocutores, mas adquirido e investido como uma forma estável. O próprio querer-dizer (intuito discursivo) de um locutor realiza-se, fundamentalmente, na escolha de certo gênero que se acha acessível.
O trabalho de Bakhtin, talvez em decorrência de seu pioneirismo, recebe críticas de alguns autores que lhe apontam determinadas limitações. Bronckart (2002), por exemplo, considera o uso da expressão “gênero do discurso”, de certa forma, problemático e, por isso, várias expressões concorrentes foram propostas durante uns trinta anos: “gêneros de texto”, “tipos de discurso”, “tipos de texto” etc. Para Marcuschi (2002a), a idéia bakhtiniana de uma eficácia um tanto determinista dos gêneros é um aspecto teórico preocupante. A afirmação que dá margem ao comentário de Marcuschi é a seguinte: “Se não existissem os gêneros do discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo da fala, se tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível” (BAKHTIN, 2000: 302). Ainda, pode-se acrescentar:
São muitas as pessoas que, dominando magnificamente a língua, sentem-se logo desamparadas em certas esferas da comunicação verbal, precisamente pelo fato de não dominarem, na prática, as formas do gênero de uma dada esfera (BAKHTIN, 2000: 303).
O parecer de Marcuschi (2002a), para essa questão, é que seria mais adequado interpretar os gêneros como necessários para a comunicação bem-sucedida, contudo não como suficientes, tendo em vista que seu simples uso não garante o sucesso comunicativo. Com estas palavras, Marcuschi encerra suas ressalvas à visão de Bakhtin sobre os gêneros textuais[1]:
Por mais frutíferas e instigantes que sejam as idéias de Bakhtin sobre os gêneros do discurso, não se pode deixar de admitir que são ainda vagas para uma atividade de análise. Ele é muito importante e claro para se ter a visão global dos fenômenos discursivos e para se obter uma idéia clara da natureza da linguagem enquanto uma atividade dialógica de caráter sócio-interativo (MARCUSCHI, 2002a: 63).
Gênero textual: outras concepções
Vários trabalhos, no exterior e no Brasil, são desenvolvidos tendo como referência o estudo do gênero textual. Algumas correntes surgiram em decorrência desses estudos, umas desenvolvendo análises ou propondo parâmetros, outras, classificações e tipologias.
Na atualidade, o termo gênero é usado como referência a uma categoria distintiva de discurso seja ele falado ou escrito, com ou sem aspirações literárias (SWALES, 1990). Para Freedman e Medway (1994), o termo “gênero”, em seu novo sentido, interliga o reconhecimento das regularidades das categorias de discursos e a compreensão sociocultural abrangente da língua em uso.
De Swales, temos a seguinte definição de gênero textual:
Um gênero compreende uma classe de eventos comunicativos cujos membros partilham um dado conjunto de propósitos comunicativos. Esses propósitos são reconhecidos pelos “experts” membros da comunidade de discurso e com isso constituem a base lógica para o gênero. Essa base modela a estrutura esquemática do discurso, influencia e condiciona a escolha do conteúdo e do estilo. [...] Em aditamento ao propósito, os exemplares de um gênero exibem vários padrões de similaridade em termos de estrutura, estilo, conteúdo e audiência pretendida. Se todas as expectativas de probabilidade mais altas forem realizadas, o exemplar será visto como prototípico pelos membros da comunidade de discurso. Os nomes dos gêneros herdados e produzidos pelas comunidades de discurso e importados de outras constituem valiosas comunicações etnográficas, mas que tipicamente necessitam de validação posterior (SWALES, 1990: 58, tradução e destaques nossos).
Para a compreensão devida do exposto por Swales (1990), determinados tópicos são essenciais para o que ele entende por gênero definido como “trabalho”:
a. Evento comunicativo:
Evento no qual a língua trabalha com significado e regras. Há um número de situações em que é difícil dizer se a comunicação verbal é uma parte integral da atividade ou não. De qualquer modo, a recorrência é um dos requisitos para que um evento comunicativo seja considerado um gênero.
b.Propósito comunicativo:
Direciona as ações da comunidade discursiva, servindo de critério principal da identidade do gênero, é seu determinante primário. Convém considerar que os gêneros são veículos para a realização de objetivos comunicativos.
c. Exemplares ou instâncias de gêneros variam em sua prototipicidade:
“É possível produzir um pequeno cenário de propriedades simples que são individualmente necessários e cumulativamente suficientes para identificar todos os membros e somente os membros de uma categoria particular de alguma outra coisa no mundo” (SWALES, 1990: 49).
d.A base lógica subjacente de gênero estabelece restrições às contribuições admissíveis em termos de seu conteúdo, posição e forma:
Os membros de uma comunidade discursiva, na realização de seus propósitos, usam gêneros que, necessariamente, para serem admitidos pela própria comunidade, devem ser convencionados e reconhecidos em termos de conteúdo, posição e forma. Os membros necessitam identificar os usos dos gêneros, efetivando seus efeitos particulares, segundo variações de estilo e léxico, bem como estratégias gramaticais, reconhecendo ou estabelecendo, inclusive, os limites para tanto.
e.A terminologia de uma comunidade de discurso para os gêneros é uma fonte importante de instrução (insight):
Uma das conseqüências das atividades dos membros das comunidades discursivas com gênero é o fato de nomearem classes de eventos comunicativos reconhecidos como ações retóricas de suas próprias comunidades.
Embora Swales (1990) mencione vários parâmetros em relação ao gênero, tais como complexidade dos propósitos retóricos, grau de propósito necessário para sua produção, natureza do meio de transmissão, tecnologia utilizada, audiência pretendida, deixa de fora um parâmetro de grande importância, seu caráter sócio-interativo, transmitindo, assim, uma visão de estaticidade para o conceito de gênero (MARCUSCHI, 2002a).
Swales desenvolve seu estudo sobre gênero baseado na categoria de trabalho. Já Carolyn Miller (1994)[2], por seu lado, concebe-o como ação social. Sua proposta apresenta duplo objetivo: desenvolver uma teoria dos gêneros considerando a produção já existente e mostrar como uma dada compreensão de gênero pode dar conta de como encontramos, interpretamos, reagimos e criamos textos particulares. Assim, a autora, representante da escola americana, defende que “uma definição teoricamente sólida de gênero centraliza-se não na substância nem na forma do discurso, mas na ação em que é usado e atua” (MILLER, 1994: 24, tradução e destaque nossos).
Considerando que a semiótica abona caminhos para a interpretação dos discursos pela forma (sintaxe), pela substância (semântica) e pela ação (pragmática), presume-se que a interpretação dos gêneros melhor se representaria na ação retórica, instituída nos motivos e na situação de produção discursiva, tendo em vista o fato de todo e qualquer discurso só ser interpretável em situações e contextos, se forem considerados, também, seus motivos.
Os gêneros fundam-se na recorrência de ações e situações, pois, todos os dias, fazemos as mesmas coisas diante de situações análogas. Assim, os discursos, como gêneros consolidados, vão-se firmando em convenções sociais recorrentes, sempre reproduzidas e até ritualizadas, que produzem os mesmos efeitos, quando as situações são similares. Ao que tudo indica, a própria noção de recorrência está ligada a características de nossa maneira de construir a percepção. O que recorre não são os aspectos individuais, que são únicos e não admitem repetição, mas os fenômenos intersubjetivos e sociais.
Os gêneros retóricos, como a autora os vê, são baseados em práticas retóricas, em convenções discursivas situadas pela sociedade para a ação conjunta. Por isso, o gênero é sempre relativo a cada sociedade e cultura.
Da escola sistêmico-funcional, trazemos, para este estudo, as idéias de Ruqaiya Hasan. Os dois pontos-chave dessa escola, criada por Halliday, são: “texto é uma linguagem funcional [...] funcional é a linguagem ao realizar algo em algum contexto de situação” (HALLIDAY apud HASAN, 1989: 52). Isso faz com que a autora aceite texto e contexto como intimamente interligados, de tal modo que não se admite pensar em um sem o outro. Por seu lado, como categoria, o texto é tomado como uma unidade, seja unidade de estrutura seja unidade de textura, independentemente de suas qualidades, do mais específico, como o literário, ao mais trivial dos textos conversacionais.
De acordo com Hasan, do mesmo modo como a situação dá aos participantes uma variada quantidade de informações sobre as significações que estão sendo construídas no contexto interacional, agem também os significados produzidos lingüisticamente na interação, dando aos participantes muitas informações sobre o tipo de situação em que se encontram. Essa relação de “mão-dupla” entre situação e linguagem é bastante destacada por Hasan. A questão que se lhe afigura é seguinte: como a estrutura textual é afetada pelo contexto?
A fim de responder a essa indagação, Hasan (1989) parte dos termos já introduzidos por Halliday, na tentativa de construir um modelo de contexto:
a. Campo (“field”) – Confere ao texto sua função ideacional, a manutenção do sistema de crenças institucionalizado, religião, costumes, enfim, da cultura e de situações em geral.
b. Relações (“tenor”) – Relacionada à autoria (e autoridade) e à audiência (presente ou não), diz respeito ao status e ao papel das relações dos participantes envolvidos, a função interpessoal do texto.
c. Modo (“mode”) – Refere-se aos canais retóricos adotados (escrito, falado, lido) que resultam na função textual. Envolve também os atos retóricos praticados.
Essas três categorias da estrutura semiótica da situação social agem sobre a linguagem, formando o que a autora nomeou de “configuração contextual” (CC). Desse modo, se dissermos que certa linguagem (um discurso) realiza alguma tarefa num dado contexto, logo, não passa de uma expressão verbal de uma ação social e é a CC que dá conta dos atributos significantes dessa atividade social. Isso quer dizer que a identidade do gênero não advém apenas de sua forma, mas, também, de sua CC (uma situação tipo, uma estrutura e uma significação).
Com base em uma perspectiva histórico-social, Bronckart (2002) reforça a idéia bakhtiniana de que toda produção verbal requer, essencialmente, que a pessoa “adote” um modelo textual preexistente e “adapte” esse modelo às condições específicas da ação verbal em curso. O modelo do gênero compõe, portanto, um quadro que baliza a organização interna do texto efetivamente produzida, porém, deixando ao agente produtor uma importante margem de liberdade:
O agente dispõe de uma liberdade total quanto à planificação geral do conteúdo temático e quanto às modalidades da articulação dos tipos de discursos possíveis; ele dispõe de uma liberdade relativa (porque limitada pela estrutura efetiva dos paradigmas na língua) quanto à escolha das unidades lexicais [...] e quanto à escolha das unidades morfossintáticas (BRONCKART, 2002: 139).
Percebe-se, facilmente, com base nessa explicação de Bronckart, que o texto concreto produzido apresentará dimensões sempre únicas, que são conseqüências das escolhas feitas pelo agente ou, ainda, que resultam de requeridas adaptações de um modelo geral a uma situação de interação verbal particular, bem como do “estilo pessoal” que o usuário quer conferir à interação.
Gêneros textuais: contexto nacional
Quanto aos estudiosos brasileiros, apontamos Antônia Araújo, que concebe o gênero como ação social, enfatizando “[...] as situações sociais recorrentes, práticas da vida cotidiana e seu uso para atingir propósitos retóricos particulares” (ARAÚJO, 2000: 187). Os gêneros, para ela, refletem a repetição de determinados traços discursivos que são institucionalizados por certa sociedade, sendo os textos produzidos e percebidos em função da norma fundada por essa codificação.
Os gêneros textuais são identificados como processos dinâmicos, logo, mutáveis; por isso, são considerados como estratégias de responder a contextos sociais. Assim como o propósito comunicativo, o contexto social é, também, um traço definidor do gênero. O conceito de gênero também se liga ao de textualidade. Sabemos que as práticas sociais são corporificadas por meios verbais “[...] e que tais práticas são tipificadas. Essas ‘tipificações’ ou ‘convenções textuais’ revelam as regularidades de estrutura, lexicais e gramaticais de que resultam as práticas discursivas” (ARAÚJO, 2000: 187, destaques da autora).
São interessantes as justificativas de Brandão para um fato histórico, o de o conceito de gênero ligar-se, inicialmente, à Poética e à Retórica, e não à Lingüística. A razão apresentada tem dupla explicação: “primeiro porque, enquanto uma ciência específica da linguagem, a Lingüística é recente e depois porque sua preocupação inicial foi com as unidades menores que o texto” (BRANDÃO, 2001a: 259). As explicações têm certo mérito, no entanto, não revelam o porquê de a Lingüística passar tanto tempo estudando as unidades menores que o texto, seguindo estritamente a linha estruturalista saussuriana e esquecendo a proposta bakhtiniana.
Brandão (2001b: 288-289) destaca dois aspectos da proposta de Bakhtin. O primeiro é o de que os gêneros têm características específicas, contudo, não devem ser considerados como formas impostas aos usuários. Além disso, por mais que os vejamos “estáveis”, não podemos ignorar que a “estabilidade”, no caso, é sujeita a forças de caráter sociocultural e individual, verificando-se, assim, uma tensão entre estabilidade e variabilidade. O segundo aspecto é o da dimensão dialogal intra e intergenérica que um texto forma com outro no espaço textual:
A dimensão dialogal intragenérica seria o diálogo interdiscursivo que se estabelece entre diferentes manifestações textuais pertencentes a um mesmo gênero [...]. Por dimensão dialogal intergenérica entendo que, na prática, em geral, os discursos/textos não se caracterizam por uma pureza, homogeneidade, mas apresentam diferentes modos de combinação de tipos de discurso e de seqüências textuais [...]. Na prática, portanto, os gêneros são marcados pela heterogeneidade e pela interdiscursividade (BRANDÃO, 2001b: 289).
Meurer (2000) afirma que há tantos gêneros textuais quantas são as situações sociais convencionadas em que são utilizados em suas funções também convencionadas. Um gênero é um exemplar específico com função também específica, usado em contextos sociais únicos, estabelecendo processos e ações sociais peculiares e, conseqüentemente, práticas sociais únicas. Os gêneros textuais que os seres humanos produzem, consomem e a eles se expõem lhes determinam, em grande parte, os conhecimentos, a identidade, os relacionamentos sociais, a cultura e até a própria vida que experimentam.
O pesquisador destaca que, por causa da existência de diferentes estruturas de dominação, legitimação e significados, diferentes gêneros textuais são necessários para a condução de atividades sociais distintas, e que os textos adquirem formas e significados mais ou menos exclusivos, dependendo da estrutura social em que se realizam.
Vejamos, por último, a visão de Marcuschi (2001), para quem os gêneros são condicionados por alguns fatores: semióticos – convenções léxicas; sistêmicos – regras gramaticais; comunicativos – sistemas sócio-interativos; cognitivos – processamentos informacionais. Mesmo sendo condicionado por esses fatores, o gênero pode variar quanto a seu uso, de acordo com os contextos discursivos. Por outro lado, esses fatores não são apenas responsáveis pelo condicionamento dos gêneros. Eles podem, em sua variação, conduzir à formação do gênero ou produzir outro gênero. Podem, ainda, motivar alteração de função de um gênero, subvertendo-o.
Marcuschi aponta o gênero como resultado do trabalho coletivo, o que contribui para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas diárias. Por isso, são entidades sócio-discursivas e formas de ação social incontornáveis em situação comunicativa qualquer. Os gêneros apresentam-se sobremaneira maleáveis, dinâmicos e plásticos. Sua plasticidade se evidencia, já, em sua própria determinação, pelo predomínio da função sobre a forma. Também comprova que os gêneros textuais surgem, se situam e se integram, funcionalmente, nas culturas em que ocorrem (MARCUSCHI, 2002c).
Sustentando-se em posição de Marcuschi (2001, 2002b, 2002c e 2003), é relevante, em relação aos gêneros, a seguinte topicalização:
a. são tipos “relativamente estáveis” de enunciados;
b. operam em certos contextos;
c. são reflexos de estruturas sociais recorrentes e típicas de cada cultura;
d. são definidos por seus propósitos, funções, intenções, interesses;
e. “são ecológicos, no sentido de que desenvolvem nichos ou ambientes de realização mais adequados” (MARCUSCHI, 2003, p. 3);
f. são condicionados pelos fatores semióticos, sistêmicos, comunicativos e cognitivos;
g. são variáveis em contextos discursivos;
h. estão ancorados em alguma situação concreta;
i. estabelecem relações de poder;
j. refletem estruturas de autoridade;
l.são frutos de complexas relações entre um meio, um uso e a linguagem.
Uma das concepções sobre gênero para o lingüista está na seguinte formulação: “os gêneros são formas verbais de ação social relativamente estáveis realizadas em textos situados em comunidades de práticas sociais e em domínios discursivos específicos” (MARCUSCHI, 2002c: 25).
Conclusão
A concepção de gênero textual, instaurada pelo filósofo da linguagem e teórico literário, Bakhtin, foi trabalhada aqui de forma a despertar o investigador que se interessa por novos rumos em sua pesquisas, principalmente, aquelas que consideram o texto como uma prática discursiva que responde a uma prática social.
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[1] É importante considerar, em relação aos aspectos vagos na obra bakhtiniana, que o texto “Os gêneros do discurso” (BAKHTIN, 2000), oriundo de arquivo (1952-1953), além de não ter sido revisto pelo autor, é fragmento de projeto de estudo mais amplo, que não foi desenvolvido.
[2] Obra publicada em 1984 e reeditada em 1994.