Uma análise de um inédito de Fernando Pessoa
Edson Sendin Magalhães (FEUDUC e FFCLDC)
Fernando Pessoa 15 – 11 – 1.907 AGNOSTICISMO SUPERIOR (inédito)
Foi-se do dogmatismo a dura lei “Nada sei” o agnóstico enfim diz... Eu menos, pois nem sei se nada sei |
Esfera semântica
O agnosticismo, do título, primeira palavra do texto, é um sistema ou uma doutrina que admite uma ordem da realidade como incognoscível. Seu aspecto superior se contextualiza no dito do agnóstico: “Nada sei”; a superioridade consiste em não revelar a irrevelável infinitude da metafísica, nem prometer o inacessível das desconhecidas ou limitadas vias ônticas. Essa perspectiva em Fernando Pessoa assinala a plausível fama de lucidez que se lhe atribui. Há em comum com o seu mestre Alberto Caeiro o “criticismo”, ao qual não se confere mais felicidade ou qualidade de “feliz” do que se vê na referência do determinante do dogmatismo. Só que antes do criticismo na ordem sintagmática aparece o dogmatismo despido da “dura lei”, afinal, ela se foi; sua dureza contém a racionalidade inerente à própria lei: desde a expressão de Kant (século XVIII), a lei é o princípio aceito por todos os seres racionais; corresponde ao imperativo categórico na Fundamentação da Metafísica dos Costumes. E o ser humano não se resume na razão, nem, portanto, na razão do poema. A glória da razão do poema se marca mais sensível nas conotações da razão; esta só conota na emoção, na função lírica da linguagem, indigitada na primeira pessoa, como sei de “nada sei” e o explícito eu, de “eu menos”. E, quando o sujeito lírico se expressa claro e simples – “eu”, reporta-se ao grau máximo da dúvida da sapiência – honestidade cognoscível: “nem sei se nada sei”; duvida da própria dúvida; não sabe sequer que seja dúvida aquilo de que duvida. Difere do racionalista absolutista René Descartes, que colocou na vulgata da razão a esperança e a fé científica de dominar toda a natureza, todos seus fenômenos, seus mistérios; e seu projeto teria fracassado por falta da sua “la morale de la passion” (um tipo de ética apaixonada, e não falta por quem!) pós-escrita.
Ainda, semanticamente, dentre os operadores fônicos do discurso (metro, rima e ritmo), a rima tem a condição de possibilidade metafórica e deitética (de dêixis, de representação) de vincular um verso ao outro, toda a sintagmática, com base na operação comutativa de paradigmas rímicos e semânticos: “lei”/ “sei”; “feliz”/ “diz” (tipos de raras construções de enunciados com rimas soantes ou consoantes e ricas, pois se desenvolve um chamado por Vygotsky, embora em outros contextos analógicos, transversais e interdisciplinares, “desenvolvimento proximal” de classes gramaticais diferentes - a proximidade categórica é o operador fônico da rima, entre outros); em comparação hipotética, simulam-se (reduzem-se em simulacro ou fingidamante, ou seja, no faz de conta ou na conotação do condicional – “se”, ou futuro do pretérito imanente, sem a forma própria) significados recorrentes ou recursivos pela sonoridade coincidente: a coincidência constitui uma das vias de acesso ao significado, como se este fosse um sentido, um vetor direcional com alternativas de mensagens, desvios, sinais de compreensão, na qual entra o imaginário interlocucional, não relegado à pura adivinhação intuitiva, infundada, nem a um fundamento prévio, que é violência! Assim, a alternativa do dogmatismo se efetiva em livrar-se da “dura LEI”; do “eu” lírico ou explícito, como sujeito da negação em nem saber sequer se nada sabe; então, o “eu” explícito sabe menos do que os demais: então, em não saber é que se define no espaço poético a sabedoria, ao lado das denominações e da simbologia do mundo da vida e da linguagem.
Em suma, o agnosticismo é o sistema superior. No texto, aparece depois do dogmatismo e do criticismo e de nada saber, e é seguido de menos, como uma progressão de perda, de dialética negativa, onde a razão é criticamente dialética, existencialista do tipo humanista, sempre sob a chamada enumeração caótica: do ir-se, no passado “foi-se” até o menos “eu menos”, na derradeira sentença de “nada sei”. O agnosticismo surgiu, na coesão textual, do endóforo, em catáfora da superação da “dura lei” e da ultrapassagem do dogmatismo e do criticismo como igualmente merecedor de um predicador ou qualidade de feliz mitigado ou infeliz, não mais feliz que o dogmatismo. O contexto acresce que no tecido da sua coesão nada sabe, em discurso direto: “nada sei” – é o dito do agnóstico, sincero, autêntico, por isso dito superior.
Esfera heteronímica
São, no mínimo, quatro heterônimos (o dogmático, o crítico, o agnóstico e o eu) na realidade formal do discurso do poema, o maior e mais longo e complexo texto de quatro linhas (a rigor, quatro versos, muito mais do que um aspecto linear somente) da história da literatura universal entre os mais setenta e dois heterônimos possíveis em toda a obra pessoana, além desse poema do Agnosticismo, que é uma das vias das noções existenciais que abalaram o mundo da vida e gerariam a Primeira Guerra mundial. E esta, ante tal expressão humana, seria muito o desabafo de um tumulto gerado pela revolta do humano do que uma capitalização de ordem social de controle, como foi a Segunda Guerra mundial: não foi à toa que esta última precisou da ação dos bancos, especialmente os Bancos Suíços (segundo Maurice Tratemberg) para se afirmar em seus objetivos operacionais de saída, com o triunfo da moeda (política econômica monetarista) – até o homem se reduziria a uma moeda. Esta se ampliou como condição de ístimo das relações, um tipo de conector simbólico estruturado comutativamente como um novo paradigma, o paradigma da pureza no lugar do amor e da paixão, com o desejo do amor e a graça da paixão. Na contemporaneidade essa força de pureza atinge o simulacro de órbita cósmica, como se, aperfeiçoando o que faltava na natureza astrofísica, completasse o cosmos com mais um astro, a moeda, cuja órbita se efetiva mais poderosa do que as demais órbitas subsumidas às noções de universo e relações de corpos em Nicolau Copérnico, porém num corpo híbrido em simulacros e em ambigüidades deitéticas, sem órgãos, pelo menos órgãos com funções plenas (?)
O agnóstico já está implícito no título; depois fica explícito no terceiro verso, o primeiro monóstico, no seu monólogo de discurso direto breve. Logo no primeiro verso, o dogmático contém-se no dogmatismo, ou se livra da dura lei ou no distanciamento da lei aproxima-se ou se habilita ao criticismo; e o eu lírico, onisciente, concludente, após a declaração de nada saber do agnóstico, ele se revela (saber) menos, e a explicação está em não saber sequer se nada sabe, no último verso, quarto e segundo monóstico, o aspecto monológico do eu menos, do lirismo, da primeira pessoa do discurso, numa subjetiva, lírica e poética função da literatura; metalingüisticamente, monta-se o holograma na coesão de todo o texto: neste holograma podem-se figurar mais heterônimos como: - a prosopopéia da lei, o legalista, um tipo ou espécie de dogmático, que se foi; - da felicidade, o felizardo, um tipo de crítico; - o niilista, um tipo ou uma espécie do gênero agnóstico, ou interlocutor interno ou anafórico; - o egófilo, cuja espécie é do niilista, mas na categoria geral de onisciente (tipo o Deus de si mesmo), é a lucidez pessoana que faz prosopopéia da sua própria ausência de sentido, e é precisamente aí que ela ganha vida e humana, é personagem desse humanismo.
Assim, é trocado o legalista pelo niilista; a norma, como saber, cede ao nada. O consenso variaria entre a dialética negativa e a total ausência: nada saber explicaria o saber menos ou o apoiaria, como a apódose explica a pródose, como a catáfora explicaria a anáfora, num jogo de linguagem, no qual vale o agir comunicativo, na comunidade de comunicação, seja real, em Jürgen Habermas, seja ideal, em Karl-Otto Apel, seja na defesa do criticismo em Hans Albert.
Esfera da linguagem
Os eixos morfossintáticos, superficiais, estariam subordinados ao primado da sonoridade, da literariedade, como fator de estética estruturante do texto, como operadores fônicos (1 – o metro; 2 - a rima; 3 – o ritmo).
1 – operador métrico-estrófico
O universo textual se compõe de quatro estrofes: um dístico, a unidualidade (unidade binária) dogmatismo-criticismo/ dureza da lei-limitação do feliz, do recurso do criticismo ao dogmatismo (princípio recursivo da complexidade), assim, o dístico sugere paralelismo, e tudo que se atribui ao dogmatismo, na condição proposta, tem possibilidade simulada para o criticismo; e dois monósticos; entre si relacionam-se semântica e sintagmaticamente pelo conteúdo do niilismo – fator de coesão entre o mundo da vida e o mundo da linguagem poética, esta, como a vida, se faz breve na forma, sua estrutura significante, é longa e complexa em suas possibilidades, que são qualidades como as rimas que vinculam, interpoladamente, os monósticos em seus monólogos de discurso direto com o dístico da lei e do feliz, com, respectivamente, o que diz (o agnóstico – razão do poema, função nodal barthesiana) e o sei, de “nada sei”, suprema ou superior expressão do niilismo e da ambigüidade. Lembra-se que a ambigüidade foi a maior causa, existencial e suas implicações sociais, da destruição do império da Grécia Antiga.
Os dois monósticos, por conseqüência das vinculações dos operadores fônicos, se põem como se fossem sugestivamente outra parelha de versos. Cada verso, isométrico, diz que a recursividade da linguagem é a mesma, tem a mesmidade de si, semelhante à mesmidade do outro.
Cada verso assinala em decassílabo com acentuação na sexta e décima sílabas o indicativo do ritmo sincrético, numa prosódia de caráter sistólico, sinerético, com elisões e sinalefas, num tecido de rede, numa aproximação hologramática dos seus fios condutores ou versificadores. Esses prosodemas condizem com a tradição do decassílabo na história da literatura de língua portuguesa, se considerarmos a plena versificação de Luís Vaz de Camões, que variava de heróicos, na épica (Os Lusíadas), a jâmbicos e sáficos, até na lírica.
Essa composição de Fernando Pessoa por si já o faria merecedor do predicado de “macro-Camões”, que lhe atribuíra o amigo e poeta Mário de Sá-Carneiro (em suas Cartas, deste para aquele). E essa maneira de tratar a métrica, como estrófica, confere-lhe o “status” de conduzir a elucidação dos demais operadores fônicos ou recursos estilísticos estruturais, internos, no endóforo do discurso do texto.
Operador rímico
“Lei/ sei”; “feliz/diz”, cada par desses termos rimam entre si. Despertam funções gramaticais, lexicalizações com recurso à semântica da língua onde o estilístico e morfossintático da língua pelo discurso textual encontrarão os fenômenos semânticos e universais na linguagem: passa-se do código como estrutura de superfície para o semântico como estrutura de profundidade lingüística. As palavras, em rimas, como símbolos antropofágicos, reumanizam-se ao se diluírem em signos e coisas, sua suprema ambivalência: cada palavra pode servir de oxímoro para si mesma; só precisa do contexto para tanto, e este se põe à dispensa da circunstância. A circunstância, ao ladear ou comutar um eu, desprega-se da situação em mundo da vida, social-complexo, e faz-se contexto na possibilidade de um sujeito lingüístico. O sujeito lingüístico também pode ser ambíguo enquanto palavra, termo da oração, parte da unidade do pensamento e indicador de ação. Com ele, o verbo se relaciona, este em predicado, em construção sintagmática ou construção no eixo sintagmático da língua, numa porção metonímica da linguagem na operação de associação de paradigmas. Os mesmos paradigmas também podem ser trocados, um substituindo até subjetivamente outro. Essa substituição de paradigmas no eixo paradigmático da língua não descarta a porção também figurativa da língua, metafórica no caso, na mesma operação maquinal. A operação figurativa implica sígnicamente o princípio da dialógica. Dialogam entre si a coisa (como exóforo e como endóforo – veja-se Ingedore Grundfeld Villaça Koch, na Coesão Textual, obra de 2.005), o significante e o significado, ora retoma o símbolo, ora arranja o simulacro (subsumido na posterior concepção de Gilles Deleuze)e o valor da criação na representação. No caso, esta se constitui uma arte inextinguível. Nela, encontra-se a finitude com o que não se sabe o que seja. É bem a totalidade do que seja e que vem a ser como a metafísica depois da descoberta do espaço alternativo, aberto, chamado pós-metafísica, na pós-modernidade).
De qualquer modo, sob o princípio normativo da convenção consensual com eqüidade (na concepção de John Rawls) a preservar-se, essas rimas semânticas, soantes e ricas indicam a valorização da eufonia dos versos (movimento para trás) estróficos (movimentos intuitivos, com estro, sob inspiração). Para tanto, ultrapassa-se não só a dureza da lei “do dogmatismo” não lingüístico, mas também a “lei” da gramática que prescreve a noção categórica de substantivo, determinado, seguido da classe gramatical de adjetivo, na relação com este, seu determinante. No caso, o adjetivo ou determinante “dura” antepõe-se, no sintagma nominal subjetivo, ao substantivo “lei”, determinado; inverteram-se as posições padronizadas. Desviam-se as posições dos estruturadores do sintagma nominal, em hipérbato, para colocar a idéia de dureza anterior à legalidade; pesa a finalidade de justificativa intrínseca, fator de potência e não só poder da língua. O enriquecimento conotativo da situação sintática de lei como núcleo de um sujeito paciente, de voz passiva sintética, pronominal, portanto, ou “proximal”, custou a inversão da ordem direta, moeda corrente da comunicação comunitária real. E o seu contexto não garante toda a força de um núcleo deteterminado, na unimúltipla relação sintagmática, embora faça parte do primeiro verso ou do destaque anafórico (código inicial), da textualização. “Lei” interpola-se, através do operador fônico da rima, à forma “sei”. “Sei” trata-se de outra classe gramatical, de verbo, em situação sintática de núcleo do predicado “conjuntivo” (do conjunto): faz um conjunto matemático cantoriano (de Cantor) como sintagma operador de uma estrutura de início paratática, “pois nem sei se nada sei”, indicada pela conjunção coordenativa explicativa “pois”. Acoplam-se dois subconjuntos: um funcionalmente híbrido, “pois nem sei”; outro “se nada sei”; o primeiro, pois nem sei acumula três subunidades funcionais ou sintagmas oracionais, numa relação unitrinitária:
1ª.- de Oração Coordenada Sindética Explicativa em relação com a Assindética, “Eu menos” (esta oculta a forma verbal e o verbo em braquilogia de caráter vicário: braquilogicamente há uma comparação latente – sei do que o agnóstico sabe, ou, vicariamente eu menos o faço – menos sei do que o agnóstico o demonstra, ou o revela, por causa de uma questão de assonância, de estética e economia de estrutura estilística funcional);
2ª- de Oração Principal como oração determinante de “se nada sei”, seu objeto direto “oracional”;
3ª.- Oração latente da parataxe contida num indicador preso, conjuntivo aditivo “e”, na forma composta aglutinada “nem”(= e não), que poderia ser lida como duas orações: “pois não sei ... e não sei ou com verbo poder como vicário (não o posso).
O outro subconjunto, ou o segundo, “se nada sei” funciona com Oração Subordinada Objetiva Direta, como conotação condicional, oferecida pelo elemento “se”, empregado em comutação paradigmática com a conjunção integrante, que seria padronizadamente o “que”; entretanto, já se estava no desvio semântico epistemológico e hermenêutico de tirar “a dura lei” do dogmatismo, sem ter-se nada melhor para colocar no lugar da esfera pública ameaçada, então, mais um desvio morfossintático de efeito estilístico no arranjo de seleção da linguagem seria apenas mais uma nota da presença da criação individual na infração coletiva, em defesa da elegância, do mérito. Com o objeto direto “nada” se anularia o saber pelo significado da forma “sei”, para se acrescentar uma dúvida interna na regência de saber como verbo transitivo direto. Essa regência facultaria a interpretação do poema como um poema da dúvida ou da negação do não que faria recurso, mas negado no real, ao positivo (segundo a noção da Dialética do Entendimento, de Adorno e Horkheimer): trata-se de rimas que induzem a uma filosofia não-positivista ou a uma dialética da negação, mas re-evidencia o fato de nem sempre a negação ser o antônimo do que se nega em gradação sintagmática ou contextual na coesão de todo o texto.
Então, são rimas de termos de classes gramaticais diferentes entre si: ricas – parece, a essa altura, ricas em muitos aspectos. “Lei” e “sei” conjuminam-se, por força de referência, a nada saber: a “dura lei”, que vai, corresponderia, a distância estrófica anafórica-catafórica, enfim endofórica, a um objeto direto oracional com marca condicional (“se” - conjunção condicional, com pré-condição adverbial, no lugar de uma conjunção integrante, introdutora da oração subordinada substantiva) “se nada sei”; são dois pólos da já citada dialética negativa (como aparece em Adorno, Op. cit., da Escola de Frankfurt) dos mundos da vida e do simbólico, respectivamente, da potência do saber e o poder da lei, vontade de saber e vontade de poder, possíveis opostos disjuntivos, para Friedrich Wilhelm Nietzsche (1.844-1.900). Aqui se defende uma tese remetida para outro espaço mais oportuno, para não se distrair nem prejudicar o fulcro dos assuntos e do objetivo deste trabalho, embora bem original. A tese é de que o sujeito não se esgotou ou se embotou; ao contrário, enriqueceu o seu efetivo papel operacional, pragmático. Ao invés de uma só linha de tipologia de sujeito, já podemos contar com uma variedade. Oscila na ambigüidade das interpretações que vão abrindo a obra, como o primeiro objeto de análise do discurso. “A dura lei” é sujeito da voz passiva do verbo ir, empregado na predicação regencial de verbo Transitivo Direto – caso de transformação sem maiores mutações (vai aparecer, em outra estrutura de construção, uma sentença performativa de Gonçalves Dias, no Brasil da literatura romântica octocentista: “Andei longes terras/ lidei cruas guerras/ ...”; só para mostrar o precedente – mesmo sem o pronome “se” - do espírito da língua portuguesa, que sempre uniu o Brasil a Portugal e vice-versa). Mas, como estamos no campo da ambigüidade, cabe registrarem-se as outras possíveis versões, embora implicassem outras realidades interpretativas, outros significados da mensagem, como:
- Primeira hipótese refutada:
como sujeito agente claro e simples, “a dura lei”, posposto, ao verbo “ir-se”, verbo intransitivo, na voz ativa, flexionado pela forma de pretérito perfeito do indicativo “foi-se”; este concordaria na terceira pessoa do singular com o dito sujeito e acoplaria na relação uma forma suplementar presa, sem caráter mutante – “se”; a conseqüência seria parecer completamente pura, normal e banalizada a coloquial ação de se afastar ou anular a dura lei do dogmatismo, como se este, tal sistema fechado e indiscutível, se instalasse sem a cumplicidade e a força de uma tradição cultural a fim de atender a muitos e intrincados interesses, cuja imposição pressiona a sociedade;
- Segunda hipótese refutada:
o “se” de “foi-se”, expletivo, puramente indicaria como elemento de apoio eufono-sintático, chamado de “partícula expletiva”, o charme prosódico da vocálica e assonante língua portuguesa; o verbo estaria vindo com a predicação de um verbo intransitivo, o “ir” no caso, no passado irreal, não histórico, em que um sujeito agente “a dura lei” teria a autonomia moral de sair do dogmatismo e “ir-se”; tal versão nada tem a ver com tradicionalmente autoritário contexto português a que a língua serve, fiel;
- Terceira hipótese refutada:
“foi-se” seria forma do verbo ser intransitivo, com a partícula expletiva “se”, seguido do Adjunto Adverbial de Origem (lugar de origem: “do dogmatismo”- como no caso das duas hipóteses anteriores), para sugestivamente, numa cultura salvática, dispor-se de uma resolução em avatar semelhante à sintaxe bíblica de Deus: ... e disse: “sede, e vós foste!...”; neste caso, seria acrescentada a interpretação de um sujeito em ordem direta, desfeito o hipérbato ou a sínquise, “a dura lei do dogmatismo” (e ficaria a hipótese do metafísico acidente histórico e social do ente da dura lei do dogmatismo, que teria agido como ente contra si mesma, agora se transformara em paciente do seu próprio ser, o ser do ente lei) agente e paciente, numa voz verbal concordante e média ou semidepoente: o sujeito assim, mesmo caberia discutir a partícula expletiva do verbo ser intransitivo, cuja dispensa implicaria recurso à relevância à próxima e última hipótese, por enquanto, por causa da brevidade do propósito e para não arriscar a implausibilidade da citação;
- Quarta hipótese refutada:
por analogia – a mais ousada versão derridiana (de Jacques Derrida) do transformacionismo sob a concepção de Chomsky - `a estrutura do predicado nominal da oração em apódose da parataxe (segundo verso da parelha ou do dístico), em voz ativa, também, teríamos um predicado nominal, paralelismo sintático já apontador da enumeração caótica, rumo ao nada final e conclusivo, em que o sujeito posposto “a dura lei” estaria identificado com o seu predicativo “do dogmatismo”, preposicionado, para que este evitasse a ambigüidade da função sintática, já que não se poderia contar com a identificação de um sujeito preposicionado, em tais circunstâncias sintáticas.
Enfim, em todas as hipóteses de sujeito médio-passivo se desenvolveria a hipótese de que uma força do acaso teria contribuído ou concorrido para favorecer uma possível força do acaso. E seria concorrente tal agenciação fenomenal ou fenomenológica, porquanto o dogmatismo, em todas as hipóteses lingüísticas, carrega imanente uma fulcral mensagem de despedimento: uma era inteira aposta nesse predomínio semântico, por isso também “superior” como o “agnosticismo” do título e da nossa leitura sistemática.
Operador rítmico
O ritmo tece todos os hologramas, todas as sinestesias de uma culturas, mormente a cultura literária e, ainda especialmente, a poética. Ele define o vygotskyano “desenvolvimento proximal” do entre nós e entre todos de uma relação comunicacional, portanto, social. No seu desenvolvimento hologramático, o ritmo acopla a sinestesia à cinestesia (as sensações à concepção de movimentação, à cinética e, daí, à cinemática da física). Engendra uma nova estética da recepção. A estética da recepção faz recíproca troca de potencialidades na força da psicologia da percepção. Psicologia da percepção e estética da recepção convergem na observação de Luís Costa Lima (A estética da recepção), nas obras de Iuss, Iser e Gumbrecht e na formação da inteligência pela via estruturalista e genética de Jean Piaget, considerado em toda a ética do discurso, especialmente na linha de Habermas.
A convergência da psicologia e a estética percebe que a ordenação de móbiles e palavras e símbolos influi nos efeitos de impressões. Na morfossintática da língua portuguesa, a sínquise ou a inversão pessoana da posição das palavras do sujeito em relação ao verbo, em nada a este prejudica concordar com o sujeito não só em número e pessoa, mas com a implicação semântica da plena relação sintática; a inversão do sujeito em relação ao verbo vai corresponder sugestivamente à inversão também do determinante “dura”, em relação ao determinado “lei”, mesmo no sintagma nominal, por motivo de extremar ou insistir no hipérbato, ao expressar uma hipóstase, seja a do verbo em relação com o sujeito, seja a do adjunto adnominal qualificativo (adjetivo, determinante) em relação ao núcleo determinado do sujeito nominal (substantivo); e por essa via de aparência do real, cai-se num processo de indução, que a própria máscara poética do super-autor, o super-poeta ou macro-poeta Fernando Antônio Nogueira Pessoa (Port. 1.888-1.935) faz recurso à ordenação de significados. No específico caso do hipérbato, por exemplo, já no primeiro verso do poema, é próprio da passiva sintética, com pronome apassivador (“Foi-se a dura lei”); só que nessa construção o interceptador adjunto adverbial de lugar, de origem, “do dogmatismo” no afã de assonância, acaba por produzir a aliteração linguodental sonora “d”, na seqüência de força prosódica “do dogmatismo a dura lei”, esta também sonora, mas lateral, quanto ao papel do ponto de articulação plausível ao contexto e, destarte, à coesão do texto do Agnosticismo superior, com linguagem em “d” (dada, talvez alusão ao dadaísmo). Por essas razões de fono-sintaxe-semântica, estaria prejudicada a interpretação de uma possível e inventiva ordem direta “a dura lei do dogmatismo”. E o verbo “ir” teria a efetiva marca lexical de perder-se, liberar-se, abolir-se, despachar-se, trocar-se, relaxar-se, afastar-se, superar-se, abrandar-se, atenuar-se, ultrapassar-se, superar-se, desconsiderar-se, alijar-se, e toda a linha dessas acepções coerentes ao propósito de aproximar cada vez mais sem medo o humano mundo da vida ao mundo da compreensão e da ética, com fundamentos racionais e universais.
E o hipérbato vincula-se bem com a hipóstase entre a ambigüidade dilemática calcada em menos/ mais da dialética (1.960) de Jean Paul Sartre (1.905- 1.980), em que sua razão aparecerá alguns anos depois do falecimento de Pessoa. E se manifesta na contemporaneidade da teoria dialética de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1.770-1.831), na Estética, de 1.832, muito lido na época.
O grau de “feliz” do criticismo copula-se à perda ou ao fracasso ou à mitigação do “dogmatismo”. Escolhe-se como via da mitigação a sintaxe oracional paratática: a conjunção coordenativa aditiva “e” introduz o segundo verso, capital para a homocinésica do dístico. O predicativo é semanticamente uma negação ao se negar todo o sintagma verbal de comparação (indigitada pelo elemento de correlação, embora isolado “mais”, de superioridade, embora também negada circunstancialmente pelo advérbio ou adjunto adverbial de negação “não”, transformador do ser em “não ser”, inclusive por estar no passado, que é um reforço da negação do ser) do predicado “não foi mais feliz”. Esse predicado é guardador de ambigüidade, porque assim se tecem suas premissas:
a) foi, deixou de ser “feliz” ou simplesmente nunca o foi;
b) a ambigüidade corresponde à lucidez ou à marca do racionalismo (exóforo da coesão, conector da coerência textual) modernista do heterônimo identitário ao autor, o Fernando Pessoa “ele mesmo”.
O discurso direto (do agnóstico) se introduz como nota de tom da elocução, faz-se interlocutor auditor-emissor na função conativa do discurso lingüístico-literário e se efetiva na função referencial de expressar quem fala na intercessão do discurso indireto, a fala do agnóstico, personagem principal ou protagonista das funções heteronômicas.
O discurso do eu explícito (indireto-livre, indiferentemente, ou para marcar um tom reflexivo, filosófico de ordem metafísica em relação à infinitude do acaso, e ôntico, na proporção fenomenológica das conceituações) pode assumir o tom e a prolação do discurso indireto-livre, pois há plausibilidade em se admitir a hipótese de que o eu explícito se expressa ou se realiza ao passar para o intercessor-auditor o que rumina na mente consigo mesmo o heterônimo, tipo de personagem imanente à textualidade.
O discurso direto se introduz cataforicamente (na posterioridade do endóforo da coesão textual), de modo incomum para a época de Fernando Pessoa, a geração de Orfeu em Portugal. Pessoa consegue no sistema do lirismo, no gênero de estilo poético, um subjetivismo epistemológico e ôntico, que soa no “enfim” um traço prosódico conclusivo.
Conclui com o “eu”, e a retomada da seriação de elipses e zeugmas, estes anteriores, e até, no terceiro verso a braquilogia em reticências de “diz”, que seria que nada sabe, para reafirmar e grifar, no caso, o niilismo do agnóstico e o do eu-lírico, explícito e elítico, no sentido do ambiente epistemológico que se teceu.
A seriação elítica (“Nada sei... Eu menos – sei, por braquilogia -, pois nem sei se nada sei”) não danou a compreensão, porquanto veio apoiada ou ajudada pela Oração Coordenada Sindética Explicativa (“pois nem sei”), que precisou, com a conjunção coordenativa explicativa “pois”, o efeito final ou também conclusivo do eu explícito não saber sequer se nada sabe, formalizado e gramaticalizado em primeira pessoa do discurso. Como T. Todorov observara (na Gramática da narrativa), a propriedade da primeira pessoa real e histórica, denota o lirismo, que para Pessoa é despedimento, guardador de espaço de reflexão. E fica provado que o espaço poético se presta para tal prática, na ação do poeta, situado entre o fingimento, o real do discurso lingüístico e do mundo não-lingüístico (externo ou biossocial) e o texto.
Esfera da conclusão
Conclui-se o exame do texto de Fernando Pessoa, o inédito intitulado Agnosticismo Superior, de 1.907, por quatro básicos heterônimos, que fazem função própria no discurso: o dogmático, o crítico, o agnóstico, e o eu-lírico explícito (sujeito claro e simples, ora com peso ativo – de agente, ora com peso passivo – de paciente, ora com peso misto ativo e passivo – médio, da voz semidepoente, na imanência do discurso). Essas tipologias do sujeito em Fernando Pessoa, nas possíveis variações da vozes verbais, são objeto de uma análise bem interpretativa, que faremos noutra oportunidade, para que não nos distraiamos do ponto central do objetivo deste tema do agnosticismo, por enquanto, do poema em questão, como texto inédito, até então.
No holograma do tecido textual dos quatro versos dispostos em três estrofes, temos o eixo da estrofe dística ou parelha, dos versos decassílabos emparelhados em acentuação tônica, da seqüência de força prosódica, na sexta e décima sílabas. E desta acentuação de que depende toda a base arquitetônica da estética pessoana, no caso, emergem os dois últimos versos, os dois monósticos tão anatemáticos, que chegam a imprimir discurso direto e indireto-livre, na matéria poética. Esse fenômeno lingüístico-literário, para a época de Pessoa, em tal contexto não se esbarra em qualquer precedente análogo. Da estruturação paratática da parelha, passamos aos períodos mistos, em que a hipotaxe fundamenta por dentro as figurações e preserva a coerência do texto, dentro da sua sistemática proposta de um Agnosticismo superior.
A oração assindética com braquilogia do verbo tem nesta um caráter linda e, no estilo, economicamente vicário. Segue a oração assindética a questionável coordenada sindética explicativa, introduzida pela conjunção coordenativa explicativa “pois”, a fim de conclusão e de fecho mesmo do texto, reassegurando um assumido nada saber como objeto direto oracional de (hipotaxe na complexidade da estrutura a serviço da complexidade da mensagem e do tema) não saber, sob uma condição unibinária ou “unidual” (“se”), face ao nada saber. A unidualidade do ser humano, “sapiens- demens” reflete-se na sua obra: aprecia-o com essa terminologia o pensador Edgar Morin, na sua teoria da complexidade e que ajuda a compreender autores complexos como o nosso Fernando Pessoa.
SEM REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS