A questão leste-timorense
aos olhos de Luís Afonso

Gisele Calgaro (UPM)

 

Considerações iniciaIs

Neste trabalho procuramos apresentar a visão do cartunista português Luís Afonso acerca da situação vivida em Timor-Leste em Setembro de 1999 – período em que o país caminhava para se libertar do domínio indonésio – por meio da análise de um Bartoon – história em quadrinhos criada pelo cartunista, publicada na secção Espaço Público do jornal português Público.

Iniciamos o presente estudo com uma breve contextualização histórica acerca de Timor-Leste necessária para o entendimento do Bartoon. Depois, introduzimos alguns conceitos relacionados à história em quadrinhos, mostrando suas características e sua importância como meio de comunicação. Apresentamos o conceito de ethos, inserido na linha da Análise do Discurso, segundo Maingueneau. Por fim, aplicamos tais conceitos no Bartoon de Luís Afonso.

A análise procurou revelar a voz do Bartoon, uma voz satírica que recria no visual a denúncia discursiva. Além disso, manifesta-se solidária ao sofrimento do leste-timorense e desqualifica seus opressores, deseja persuadir o leitor a indignar-se, a comover-se, a refletir sobre o tema, recorrendo à ironia como elemento provocador desse ato perlocutório.

 

Timor-Leste

A ilha de Timor, desde o século XIII, atraia comerciantes chineses e malaios pela abundância de sândalo, mel e cera. Por volta de 1512, os portugueses chegaram à ilha em busca dos mesmos recursos naturais. Porém, os portugueses não foram os únicos, os holandeses também chegaram à ilha e, só em meados de 1914, com a Sentença Arbitral assinada pelos dois países, as fronteiras foram fixadas e os conflitos entre Portugal e Holanda foram resolvidos.

Durante a Segunda Guerra Mundial, a ilha foi invadida pelos Japoneses. Timor-Leste era considerado um ponto estratégico para as forças japonesas por estar próximo à Austrália. A ocupação durou três anos, e o povo leste-timorense lutou ao lado dos Aliados. Em 1945, com o final da Segunda Grande Guerra, a administração portuguesa foi restaurada.

A revolução de 25 de Abril de 1974 – Revolução dos Cravos – que fez cair a ditadura Salazarista em Portugal, abriu as portas simultaneamente à democracia em Portugal e à autodeterminação e independência para as suas antigas colônias da África e da Ásia. Em 1974 e 1975 foram criados partidos políticos em Timor-Leste. Os dois partidos mais populares eram a União Democrática Timorense (UDT) e a Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente (FRETILIN). Em 28 de novembro de 1975, após uma breve guerra civil, a República Democrática de Timor-Leste foi proclamada. No entanto, apenas alguns dias depois – 7 de dezembro de 1975 – o exército Indonésio invadiu o território. A Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas condenou a invasão Indonésia numa resolução aprovada no dia 12 de dezembro de 1975, porém nada de efetivo foi feito.

Dezesseis anos se passaram sem que o povo leste-timorense fosse lembrado pela Comunidade Internacional até o momento em que jornalistas estrangeiros, presentes em Díli, foram testemunhas do massacre ocorrido no cemitério de Santa Cruz, em 12 de Dezembro 1991. Max Stahl, jornalista britânico, conseguiu trazer à imprensa o horror vivido pela população leste-timorense; as imagens correram o mundo e Timor-Leste voltou a ser tema no Cenário Internacional.

Com a queda do ditador indonésio, General Suharto, em 1998, Portugal e Indonésia iniciaram negociações para a realização de uma consulta popular em Timor-Leste. Em um acordo assinado em Nova Iorque, no dia 5 de Maio de 1999, pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros Indonésio, Ali Alatas, e pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros Português, Jaime Gama, tendo como testemunha o Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, ficou decidido que haveria uma consulta direta por voto secreto no país.

Em 30 de agosto de 1999 a ONU promoveu o referendo. O povo leste-timorense exprimiu sua vontade[1]. Esse foi o seu maior ato de coragem, a manifestação mais clara de que depois de vinte e quatro anos de ocupação, não tinham se deixado intimidar, não tinham deixado que o terrorismo imposto pelos indonésios lhes tirasse o direito à autodeterminação. Desceram das montanhas e desafiaram o medo. Ao votar, tiveram a coragem de vencer, e ao escolherem a independência, tiveram a coragem de optar por um caminho difícil, perigoso, mas que foi o caminho da sua liberdade. Contudo, milícias ligadas ao exército indonésio mataram milhares de civis, saquearam e queimaram prédios públicos e residências. Só pararam com a tardia chegada da Força Internacional para Timor-Leste (INTERFET), em 20 de Setembro de 1999.

Em abril de 2002, os leste-timorenses foram novamente às urnas, desta vez para escolher um presidente para o país. As eleições consagraram Xanana Gusmão como o novo presidente, e em 20 de maio de 2002, Timor-Leste tornou-se independente.

 

Aspectos gerais das histórias em quadrinhos

McCloud (2005: 9) define história em quadrinhos como imagens pictóricas e outras justapostas em seqüência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no espectador. Dessa maneira, podemos afirmar que o Bartoon é uma história em quadrinhos.

As histórias em quadrinhos possuem seu vocabulário próprio, baseado na visão, abrangendo ícones pictóricos, que vão da arte representacional realista (fotografia ou desenho realista – ícones que mais se aproximam de seu equivalente real) ao mais simples cartum, e ícones não-pictóricos, totalmente abstrato (palavras).

O cartum, segundo McCloud (2005: 30), é a forma de amplificação através da simplificação, isto é, quanto mais simplificada a representação pictórica do real, mais ampla se torna sua identificação. Em outras palavras, as imagens, quando representadas de maneira simplista, são facilmente reconhecidas e, ao relembrarem uma experiência gravada na memória, evocam a realidade. O cartum deve ser entendido como a representação da realidade mais abstrata possível e é por meio dessa imagem simplificada que nos identificamos mais com as personagens. Dessa maneira, quando você olha pra uma foto ou desenho realista de um rosto você vê isso como o rosto de outra pessoa. Contudo, quando entra no mundo do cartum você vê a si mesmo (McCloud, 2005: 36). As personagens de uma história em quadrinhos podem ser ou mais próximas ao cartum ou a caricatura de algum personagem real, depende muito do tema que está sendo abordado pelo cartunista e do efeito de proximidade que ele quer provocar entre a personagem e seu público leitor.

Nas histórias em quadrinhos, personagens estereotipadas são desenhadas a partir de características físicas comumente reconhecidas, aceitas e associadas a uma profissão, a fim de estabelecer, por meio delas, uma familiaridade com o leitor. Essas personagens tornam-se ícones e são usadas como parte da linguagem na narrativa gráfica (Eisner, 2005: 22).

A forma humana e a linguagem dos seus movimentos corporais tornam-se componentes essenciais dos quadrinhos para expressar emoções. Por meio de posturas ou de gestos humanos universalmente conhecidos retratados nas imagens, as emoções, como a raiva, a surpresa, o medo e a alegria, são imediatamente reconhecidas nos quadrinhos, e a maneira como são empregados modifica e/ou define o significado que se pretende dar às palavras.

O balão de fala é um recurso que tenta captar e tornar visível o som. Sua forma tem uma função que vai além de cercar a fala, pois acrescenta significado e comunica a característica do som à narrativa. Novas variações nas formas são criadas constantemente pela necessidade de representar o som num meio visual.

O espaço é para a história em quadrinhos, o que o tempo é para o cinema.

A habilidade de expressar tempo é decisiva para o sucesso de uma narrativa visual. É essa dimensão da compreensão humana que nos torna capazes de reconhecer e de compartilhar emocionalmente a surpresa, o humor, o terror e todo o âmbito da experiência humana. Nesse teatro da nossa compreensão, o narrador gráfico exercita a sua arte. No cerne do uso seqüencial de imagens com o intuito de expressar tempo está a comunidade da sua percepção. Mas, para expressar o timing, que é o uso dos elementos do tempo para a obtenção de uma mensagem ou emoção específica, os quadrinhos tornam-se um elemento fundamental (EISNER, 2001: 26).

A pausa deliberada, recurso do timing, é feita por meio da inserção de um quadrinho sem palavras, cuja função é a de acrescentar peso e força ao fim da história.

A compreensão de uma imagem requer uma comunidade de experiência (Eisner, 2005: 13). Com efeito, o entendimento de uma história em quadrinhos depende muito do conhecimento de mundo do seu leitor. Nesse tipo de relação marcada, fundamentalmente, pela intertextualidade, caberá ao autor dirigir seus temas e símbolos de acordo com o seu público. Além disso, o autor tem outra tarefa a cumprir para que seu objetivo seja alcançado: chamar a atenção do leitor para a história e conservar sua atenção. Um dos fatores que contribuem para a manutenção dessa espécie de “controle” do leitor é a leitura rápida, proporcionada pela simplificação das imagens.

O meio história em quadrinhos é um comunicador de massa onde vozes individuais podem ser ouvidas e, nesse universo, cada autor constrói seu próprio estilo.

 

Aspectos gerais do ethos

A noção de ethos, pertencente à retórica aristotélica, foi retomada por Maingueneau que a desenvolveu inscrita no quadro da Análise do Discurso. Entretanto, foram necessários dois deslocamentos do ethos retórico.

Em primeiro lugar, foi preciso recorrer a uma concepção de ethos que não se restringe à eloqüência judiciária ou aos discursos orais, como na retórica antiga, mas é válida para qualquer discurso, seja oral, seja escrito. Em segundo, foi preciso afastar a idéia de que o enunciador, como o autor, desempenharia o papel que escolhesse em função dos efeitos que pretendesse produzir sobre seu público, pois, do ponto de vista da Análise do Discurso, esses efeitos são impostos pela formação discursiva, e não pelo sujeito.

Segundo Maingueneau (2005: 70-92), a noção de ethos permite, além da persuasão por argumentos, refletir sobre o processo de adesão à idéia apresentada num dado discurso. Esse processo fica evidente em discursos publicitários, filosóficos, políticos etc. que não têm por objetivo uma adesão imediata, mas que devem conquistar um público que tem o direito de não aceitá-los ou simplesmente ignorá-los.

A questão essencial é que o ethos está ligado à enunciação e não a um saber extradiscursivo sobre o enunciador. Deste modo, revela-se a personalidade do enunciador por meio da enunciação e não pelo conhecimento prévio da pessoa real; em outras palavras, o ethos se mostra na enunciação.

No âmbito dos estudos da Análise do Discurso, como mencionamos, o ethos não se reserva à eloqüência judiciária ou à oralidade; qualquer discurso, seja qual for seu modo de inscrição material, possui uma vocalidade específica, um tom. A determinação do tom implica uma determinação do corpo do enunciador. Assim, essa concepção de ethos compreende não só a dimensão vocal, mas também o conjunto das determinações físicas e psíquicas ligadas pelas representações coletivas à personagem do enunciador. Maingueneau refere-se à personagem do enunciador como uma instância subjetiva encarnada que exerce o papel de fiador (2005: 72). A esse fiador são atribuídos um caráter e uma corporalidade:

O “caráter” corresponde a este conjunto de traços “psicológicos” que o leitor-ouvinte atribui espontaneamente à figura do enunciador, em função de seu modo de dizer. Para o humanismo devoto, este “caráter” será o de um homem essencialmente comedido e sociável. Bem entendido, não se trata aqui de caracterologia, mas de estereótipos que circulam em uma cultura determinada. Deve-se dizer o mesmo a propósito da “corporalidade”, que remete a uma representação do corpo do enunciador da formação discursiva. Corpo que não é oferecido ao olhar, que não é uma presença plena, mas uma espécie de fantasma induzido pelo destinatário como correlato de sua leitura (Maingueneau, 1997: 47).

O caráter e a corporalidade do fiador apóiam-se, portanto, sobre estereótipos culturais cristalizados que podem ser valorizados ou desvalorizados e sobre os quais se apóia a enunciação que, por sua vez, pode confirmá-los ou não.

O co-enunciador constrói uma figura representativa do fiador, com base em indícios textuais de diversas ordens, e, por intermédio da enunciação, incorpora uma forma específica de se inscrever no mundo, um estilo próprio do enunciador.

A incorporação atua em três registros indissociáveis:

· A enunciação “dá corpo” ao seu enunciador que exerce o papel de fiador – de uma fonte legitimante – permitindo ao co-enunciador construir uma representação dinâmica dele.

· O co-enunciador incorpora, assimila os esquemas característicos desse fiador, sua maneira de habitar seu corpo, de se mover no mundo.

· Esse duplo processo permite a incorporação do co-enunciador à comunidade imaginária dos que comungam na adesão a um mesmo discurso.

A cargo da enunciação está persuadir o co-enunciador para fazê-lo aderir a certo universo de sentido que o discurso impõe tanto pelo ethos quanto pela ideologia e, portanto, as idéias apresentam-se por uma maneira de dizer que remete a uma maneira de ser do enunciador.

Na perspectiva da Análise do Discurso, o ethos é mais que um meio de persuasão; ele é parte constitutiva da cena de enunciação. Segundo Maingueneau (2005), a cena de enunciação integra três cenas: cena englobante, cena genérica e cenografia:

A cena englobante corresponde ao tipo de discurso; ela confere ao discurso seu estatuto pragmático: literário, religioso, filosófico... A cena genérica é a do contrato associado a um gênero, a uma “instituição discursiva”: o editorial, o sermão, o guia turístico, a visita médica... Quanto à cenografia, ela não é imposta pelo gênero, ela é construída pelo próprio texto: um sermão pode ser enunciado por meio de uma cenografia professoral, profética etc. (MAINGUENEAU, 2005: 75).

A cenografia, assim como o ethos que dela participa, implica um processo de enlaçamento paradoxal: a enunciação supõe uma certa cena enunciativa que se valida progressivamente por essa mesma enunciação; em outras palavras, a cenografia legitima um enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la.


 

Análise do Bartoon – 9 de Setembro de 1999

Caixa de texto: Fonte: Afonso, 9 set. 1999: 12.

A. Contextualização histórica

As milícias, desde sua origem, receberam apoio da Indonésia. Foi o exército indonésio quem organizou, treinou, e forneceu armas e drogas às milícias. O General Wiranto, Ministro da Defesa e Comandante das Forças Armadas, foi quem recriou as milícias civis em toda a Indonésia. Wiranto tinha um objetivo preciso: precaver-se contra as potenciais ameaças ao poder dos militares, que o novo Presidente Indonésio, Bacharuddin Jusuf Habibie, começou a representar; ao mesmo tempo, Timor-Leste serviu de exemplo a uma imensa platéia indonésia, caso algum outro grupo tentasse reivindicar também o direito à autodeterminação.

Assim que o Presidente Habibie anunciou, em Janeiro passado, que a Indonésia estava disposta a reconhecer a independência de Timor, se fosse rejeitada a proposta de autonomia alargada, a tropa tratou de accionar todos os mecanismos, logísticos e financeiros, para que as milícias tomassem posições. Em Jacarta, nos quartéis da tropa especial, a Kopassus, alguns milicianos passaram a receber treino militar. [...] Os primeiros distúrbios, em Fevereiro, foram iniciados pela milícia Darah Merah Puti, dirigidas por Afonso Pinto, treinado em Jacarta. Logo surgiram outros nomes, como João Tavares, Hermínio Costa e Eurico Guterres – todos dependentes do dinheiro da tropa (ROBALO, 11 set. 1999: Política).

As milícias agiam com total liberdade no país. Mesmo depois de 30 de agosto de 1999 (data do referendo no qual 78,5% da população leste-timorense votou pela independência), com a atenção do Mundo voltada para Timor-Leste e consciente da responsabilidade assumida pelo Governo Indonésio no Acordo de Nova Iorque, que delegou ao exército indonésio a manutenção geral da lei e da ordem no território, as milícias (e o próprio exército) continuaram com sua política de terra arrasada.

 

B. Linguagem da história em quadrinhos

No Bartoon em análise, um homem, trajando camisa e gravata, lê o jornal e, atrás do balcão, outro homem, vestindo uniforme, comenta a notícia. As duas personagens são estereotipadas, isto é, foram desenhadas a partir de características físicas comumente reconhecidas, aceitas e associadas a sua posição na sociedade. O primeiro homem, o que lê o jornal, é reconhecido como um cliente do bar, alguém que, provavelmente, trabalha em um escritório ou uma repartição pública; seus traços simplificados, enfatizam ainda mais seu estereótipo de indivíduo comum. O segundo, mesmo por sua localização no cenário, é o barman. A intenção do cartunista é, claramente, aproximar o leitor de suas personagens, para que se identifique com elas e, em conseqüência, com o tema debatido.

O espaço de fundo exerce a mesma função: facilitar a identificação do leitor: um balcão, duas ou três banquetas, e a torneira do barril de chope, símbolos pictóricos que transmitem instantaneamente a imagem de um bar qualquer.

As únicas expressões esboçadas pelas personagens são: o abrir e fechar da boca no ato de fala, e um pequeno gesto do barman, que transmite um significado. A posição da mão do barman expressa a indignação, a dúvida, que corrobora a indagação por ele feita. Entretanto, a linguagem dos seus movimentos corporais não são suficientes para garantir o entendimento da narração, isso quer dizer que as imagens não poderiam ser dissociadas das palavras sem prejuízo da narrativa.

O balão de fala, recurso que tenta capturar e tornar visível o som, é aberto. Considerando-se a localização do Bartoon na edição impressa do jornal (na secção Espaço Público), o significado do balão aberto torna-se ainda mais evidente: a fala das personagens é a fala do público. Com o mesmo objetivo, o autor omitiu o enquadramento, eliminando qualquer delimitação à sua história em quadrinhos.

Cabe, ainda, falar da função do timing, empregado nas falas das personagens, que prolongam a história, utilizando reticências, para indicar que o tempo passa lentamente, e para enfatizar a fala das personagens e seu tom irônico sobre o tema.

Temos, portanto, um bar qualquer, um cliente qualquer, e um garçom qualquer que debatem sobre uma notícia do jornal The Jacarta Post. A fala das personagens está carregada de ironia, tanto em ... a Indonésia tem dado a impressão que apóia as milícias (grifo nosso), quanto em Mas ... onde é que eles foram buscar essa idéia? (grifo nosso), despertando no leitor a indignação, e levando-o a reflexão acerca da relação entre Jacarta e as milícias em Timor-Leste.

 

C. Construção do ethos

No Bartoon apresentado, o enunciador assume o perfil do público leitor do jornal ao assumir a maneira de dizer (irônica, mordaz), que mostra uma maneira de ser (com toda sua indignação e luta pela causa leste-timorense). O ethos que emerge da enunciação, no discurso do Bartoon, é irônico porque o enunciador não busca, apenas, informar o co-enunciador acerca do envolvimento entre a Indonésia e as milícias em Timor-Leste; ele deseja persuadir o co-enunciador a indignar-se, a comover-se, a refletir sobre o tema, e lança mão da ironia para provocar no co-enunciador esse ato perlocutório. O co-enunciador identifica-se com a personalidade assumida pelo enunciador – que, na verdade, é a sua própria – e dá corporalidade e caráter ao fiador, incorporando, em seguida, sua ideologia. Esse duplo processo permite a incorporação do co-enunciador à comunidade imaginária que comunga da mesma ideologia, a comunidade formada pelos leitores do jornal Público.

Quanto à cena de enunciação, em que o ethos é parte constitutiva, podemos dizer que:

·   a cena englobante corresponde ao discurso político, onde o enunciador e o co-enunciador encontram-se reunidos em prol da questão de Timor-Leste;

·   a cena genérica constitui a história em quadrinhos impressa na secção Espaço Público, do jornal Público;

·   a cenografia corresponde ao espaço representativo de um bar.

Podemos dizer ainda que a leitura do jornal e a conversa no bar é uma cena já instalada na memória coletiva como um estereótipo, e portanto, é uma cena validada.

 

Considerações finais

A voz do Bartoon, que emerge na enunciação, mostra um estilo próprio de habitar o mundo, um estilo sarcástico, irônico. Esse ethos que se mostra nas astúcias da construção do Bartoon, toma como alvo direto a Comunidade Internacional, a ONU e os Estados Unidos. É um estilo satírico que constrói no enunciado um corpo de pouca mobilidade, que recria no visual as restrições sofridas pelo povo leste-timorense à própria liberdade, que recria a idéia de que o tempo passa lentamente para os oprimidos de Timor-Leste. O fiador que se manifesta na enunciação do Bartoon é solidário ao sofrimento do povo leste-timorense, mas ataca seus opressores, desqualificando-os como mentirosos e hipócritas.

Assim, podemos afirmar, com efeito, que o Bartoon contribuiu para despertar a reflexão do leitor português acerca da independência de Timor-Leste frente ao domínio indonésio.

A análise apresentada neste trabalho, longe de querer esgotar as possibilidades de leitura do Bartoon, pretendeu, analisando o ethos que emerge na enunciação do discurso, confrontar o discurso da Comunidade Internacional e o discurso do leste-timorense. Além disso, pretendeu penetrar no universo timorense e auxiliar, mesmo que minimamente, na reconstrução da memória da mais nova nação do mundo.


 

Referências bibliográficas

AFONSO, Luís. Bartoon. Público, Lisboa, 9 set. Espaço Público, 1999, p. 12.

CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004.

CORTESÃO, Jaime. Obras completas: os descobrimentos portugueses. Lisboa: Imprensa Nacional, 1990, v. 3.

EISNER, Will. Narrativas gráficas. São Paulo: Devir Livraria, 2005.

–––––. Quadrinhos e Arte Seqüencial. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

JARDINE, Matthew. Timor Leste – genocídio no paraíso. In SANT’ANNA, Sílvio L. (org.). Timor Leste – este país quer ser livre. São Paulo: Martin Claret, 1997.

MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2001.

–––––. Novas tendências em análise do discurso. 3ª ed. São Paulo: Pontes, 1997.

–––––. Ethos, cenografia, incorporação. In AMOSSY, Ruth (org.). Imagens de si no discurso – a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005.

McCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: M. Books, 2005.

ROBALO, Mário. Milícias ao serviço dos interesses dos militares. Expresso. Lisboa, 11 set. Política, 1999.


 

 

[1] 95% dos eleitores registrados votaram, cerca de 430,000 de leste-timorenses (dados da UNTAET). Cf. em: <http://www.un.org/peace/etimor/etimor.htm>. Acesso em: 03 jan. 2006.