O meio ambiente pede a palavra
a análise de textos na construção
e desconstrução de conceitos ecológicos

Cláudia Maria Monteiro de Freitas
(UNIPLI, UNIGRANRIO e FEUDUC)

 

Nunca foi tão discutida, nos meios acadêmicos e mesmo fora deles, a importância da produção escrita, da leitura e da oralidade como sendo imprescindíveis na formação plena do Homem. Os Parâmetros Curriculares Nacionais predizem que o ensino da Língua Portuguesa pode constituir-se em fonte efetiva de autonomia para o sujeito, contribuindo para uma participação social mais consistente e responsável, apontando assim, para a necessidade de expandir práticas que tomem o texto, seja oral ou escrito, em toda sua diversidade, como uma unidade básica de trabalho, de tal forma que as atividades planejadas no ensino da língua tornem possível a análise critica dos discursos e que o aluno possa expor diferentes pontos de vista, valores e visão de mundo.

Por isso, Bonatelli (2002: 170) afirma:

As palavras estão na origem da construção dos saberes, e o professor de Língua e Literatura, no contexto da Escola, não é um ser isolado em sua área de atuação, mas está o tempo todo relacionando-se com outras disciplinas e com a história de seus alunos. Radicalizemos: a competência lingüística do aluno não se constrói somente nas aulas de Língua Portuguesa. Suas compreensões do mundo e das gentes dependem crucialmente das categorias postas em circulação pela Escola como um todo.

O texto pode mesmo ser o elo entre os processos educativos formais e as demais atividades sociais de luta pela qualidade de vida. Conceber o texto como unidade de ensino- aprendizagem é entendê-lo como lugar de entrada para o diálogo com outros textos, que remetem a textos passados e farão surgir textos futuros. São os sentidos socialmente construídos os verdadeiros e principais objetos do processo letivo (GERALDI, 2002: 23).

A partir da problemática ambiental vivida cotidianamente pelas pessoas nos grupos e espaços de convivência e na busca de harmonia pelo ser humano, processa-se a consciência ecológica e opera-se a mudança de mentalidade. Sob a ótica da conjugação entre as questões ambientais e o campo da educação, Rucheinsky (2002) afirma que já é possível visualizar os primeiros contornos de uma ecopedagogia, cuja finalidade seria a reeducação do olhar, desenvolvendo atitudes de observação e a tomada de decisão na preservação do meio ambiente e da vida saudável dos seres que nele atuam.

A aliança entre palavra/texto/escola/meio ambiente se torna reconhecida especialmente pela percepção da importância vital que o sistema de ensino pode fomentar para aprofundar ou difundir perspectivas e políticas ambientais, especialmente na medida em que, neste espaço em particular, pode-se tratar de aspectos relevantes para refinar as representações sociais e as variadas abordagens de meio ambiente.

Tais considerações nos levam a propor pelo presente trabalho uma análise do espaço que o texto (oral e escrito) tem ocupado ou pode vir a ocupar na construção e / ou desconstrução de conceitos ambientais, tornando possível não só que conhecimentos ecológicos sejam assimilados, mas também que ocorram transformações positivas na vida pessoal e em sociedade de cada um dos sujeitos.

Com isso, acreditamos ser possível imprimir às práticas de educação ambiental um caráter transformador da realidade, de modo mais reflexivo e propulsor de intervenções, atrelados a uma concepção mais dialógica da Língua em sua interação social e crendo que “o material privilegiado da comunicação na vida cotidiana é a palavra.” (BAKHTIN, 1992: 37)

 

Que Meio Ambiente? Que Educação Ambiental?
Duas perguntas, muitas respostas

A educação ambiental tem sido realizada ora limitando o conceito de meio ambiente no campo científico, ora enfocando definições do senso comum.

Guimarães (1994), analisa historicamente a educação ambiental no cenário educacional brasileiro, dividindo sua implementação em dois projetos distintos, caracterizados como conservadores (visões de mundo interessadas na manutenção dos modelos vigentes) ou críticos (propostas ambientais voltadas para o avanço da sociedade rumo à justiça social igualitária).

Pelo estudo de várias definições de diferentes autores, trabalharemos com o conceito traçado por Reigota (1994: 14), que identifica meio ambiente como sendo “o lugar determinado e/ou percebido onde estão em relações dinâmicas e em constante interação os aspectos naturais e sociais.” Dispondo deste conceito sem, no entanto, descartar tantos outros, estamos considerando a importância da dimensão sociológica e da interação que a mesma engendra nas relações ambientais, ampliando a visão que restringe o ambiente aos elementos do ecossistema como ar, terra, água e plantas somente.

Em recente pesquisa por nós implementada em uma Escola da Rede Pública Estadual do município de Duque de Caxias, tivemos a oportunidade de constatar a variedade das representações sociais para o termo meio ambiente. Ao entrevistar alunos do Ensino Médio, com idade entre 16 e 19 anos, a variedade de conceitos que se desdobram a partir do termo, revela a amplitude das visões nele embutidos. Ilustramos com algumas respostas dadas à pergunta: o que é meio ambiente?

Quem deve saber falar bem desse assunto é meu pai, professora, porque ele vive dizendo que tudo quanto é lugar não é ambiente pra mim... Eu tô querendo saber qual é o meu ambiente, então... (G. R.F.- 3.º Ano do Ensino Médio)

A forma irônica com que a jovem define o termo, remete a uma representação bastante comum de ambiente como sendo espaço determinado de convivência, limitado a um lugar específico. Ficou claro que a resposta foi pensada para não atender ao objetivo da pergunta e nos instiga a pensar em que medida a polissemia do termo interfere no conceito do mesmo. A estratégia utilizada pela entrevistada ao incorporar na resposta o discurso do próprio pai é entendida como uma necessidade de romper com o estereótipo, dando a entender que o conceito individual de ambiente, por parte da jovem, é bem diverso e distante do que menciona. No entanto, o que vem à tona é aquele cujo valor quer discutir, ou, por que não dizer, opor. De acordo com Osakabe (2002: 27)

O indivíduo vive sempre esta crise entre uma identidade conferida e estável e as alterações que a experiência acidental e imprevisível lhe proporciona. A educação social, sistemática ou não, tende, por isso mesmo, a apaziguar essa tensão, substituindo sua expressão informulada e individual por um discurso explicativo já formulado.

Em outro depoimento o aluno responde com rapidez à pergunta formulada mas a resposta é evasiva:

Meio ambiente é tudo. Meio ambiente é tudo mesmo. Meio ambiente é muito, muito importante pra gente aqui neste planeta. Meio ambiente é... sei lá... é isso tudo. (J.F.S._ 3.º Ano do Ensino Médio)

Este esvaziamento aparente do discurso que se faz repetitivo, ao mesmo tempo, o realça. É como se a importância do meio ambiente fosse indizível, difícil de mensurar e, da mesma forma, óbvia. Torna-se relevante aqui destacar a vinculação sugerida por Freire (1980) entre a leitura do mundo e a leitura da palavra, pois tomando para análise a palavra “tudo”, da forma como foi empregada pelo entrevistado, reúne ao mesmo tempo função adjetiva e função reiteradora de expressão anterior, sendo que, no discurso do aluno o termo anterior não está expresso na forma verbal, mas sim, subentendido na sua leitura de mundo.

Estas considerações nos fazem crer que, em termos de definição para o termo meio ambiente, as entrelinhas podem dizer mais do que os enunciados e o que se esconde por trás das palavras pode ser tão revelador quanto o que por elas é proferido.

 

A gíria que se apropria do ecossistema:
do “pagar mico” ao “é o bicho”

O uso das palavras pode ser alterado para apresentar uma nova maneira, mais viva, de ver o mundo, de acordo com FIORIN e Platão (2002: 158) “privilegiando novos traços semânticos usualmente deixados de lado.” Disso se entende que , quanto mais uma palavra é utilizada de forma metafórica, tanto maior tende a ser o distanciamento do seu significado original.

Tomamos por exemplo a palavra “mico”, que há algum tempo deixou de significar unicamente o nome comum dado a um tipo de macaco. Se alguém diz “mico” o significado de “vexame” se antepõe ao sentido original do termo.

Quando perguntado sobre o significado do termo, meu filho Guilherme, quando tinha 9 anos de idade, nos dá uma explicação bastante criativa para a origem da expressão “pagar mico”:

Mico eu entendo como uma pessoa fazendo uma bobeira. Deve ser porque pagar mico é quando uma pessoa vai na feira e compra um mico pra ficar preso. Aí o mico vai morrer porque não tem graça e a pessoa deu bobeira, perdeu dinheiro. Isso é mico.              

A feira à qual Guilherme se refere é bastante tradicional em Duque de Caxias e de vez em quando figura nos noticiários, denunciada pela prática ilegal de comércio de aves e outros animais silvestres.

A análise lingüística feita por Guilherme, na busca de argumentos que justifiquem a origem da gíria, de forma surpreendente associa a expressão com o animal, sem perder no entanto a ligação com a idéia do constrangimento de levar um prejuízo. De acordo com Bakhtin (1992: 33) “cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra da realidade, mas também um fragmento dessa realidade”.

Há ainda muitos termos e palavras relacionadas ao ecossistema que são usadas como gíria, quase todas com caráter depreciativo ou preconceituoso. Citamos como exemplo algumas delas: “galinha” é menina vulgar ou menino conquistador, “cobra” é uma pessoa falsa, “piranha” é prostituta, “perereca” é o órgão sexual feminino, “vaca” ou “cadela” é uma mulher sem caráter, “fruta” ou “florzinha” é um menino afeminado, “banana" é uma pessoa sem atitude, “rato” é o colega que rouba o material alheio, “macaco” ou “macaca” são pessoas da raça negra... E tantas outras expressões.

Fazer referência ao uso de metáforas relacionadas ao ecossistema não é novidade. Tal terminologia nos parece totalmente arraigada ao falar cotidiano, ainda que, em maior parte, o caráter grotesco das construções pareça ofuscar a riqueza e a criatividade com que a fala delas se utiliza.

O que nos chama atenção, no entanto, é o fato destas construções estarem assumindo o papel principal no grau de significação da fala dos sujeitos, a tal ponto de causar surpresa quando confrontadas com o sentido original de alguns termos, em contextos diferentes.

Assim sendo, a dimensão das vozes que, segundo Bakhtin (In BARROS & FIORIN, 2003: 25), só podem ser registradas por um enfoque translingüístico,

...assume o caráter de visões de mundo ou percepções realizadas através do discurso: as vozes são sociais, são pontos de vista que estabelecem relações entre línguas, dialetos territoriais e sociais, discursos profissionais e científicos, linguagem familiar etc. Cabe à análise do discurso, com sua capacidade interdisciplinar, localizar os recursos lingüísticos e não - lingüísticos da combinação e transmissão das vozes discursivas...

Esta apropriação de termos do meio ambiente como forma de comunicação não existe, portanto, isoladamente e envolve-se em constantes processos de interação e troca com outras formas de comunicação.

Em outras palavras, torna-se vital para o trabalho de educação ambiental através dos textos que os educadores também se apropriem destes usos pejorativos e metafóricos que tramitam pela oralidade dos alunos, e passem a discuti-los, interpretá-los, refletindo sim sobre seu caráter tantas vezes preconceituoso e transgressor, mas acima de tudo, aceitando-os com todas as possibilidades semânticas.

O depoimento abaixo foi colhido de um aluno convidado a discutir ecologia durante um trabalho de pesquisa já citado:

Esse papo de ecologia pra mim é meio sinistro, tá ligado? Na minha área é meio diferente porque cabrito é roubo, animal é um cara legal, papagaio acaba morrendo e meter o bicho é o cão chupando mariola. O bicho pega... (E. J. – 3.º Ano do Ensino Médio)

Um dos sérios problemas que temos é como trabalhar a linguagem oral ou escrita associada ou não à força da imagem, no sentido de efetivar a comunicação que se acha na própria compreensão ou inteligência do mundo. Segundo FREIRE (1997: 133),

Aceitar e respeitar a diferença é uma dessas virtudes sem o que a escuta não pode se dar. (...) Se me sinto superior ao diferente, não importa quem seja, recuso-me a escutá-lo ou escutá-la (...) Se a estrutura do meu pensamento é única, certa, irrepreensível, não posso escutar quem pensa ou elabora seu discurso de outra maneira que não a minha.

Cabe aos educadores dar voz a estes sujeitos cuja representação de meio ambiente assume novos significados. Isso quer dizer ir além de meramente entendê-los como diferentes no falar. Incorporar novas formas do discurso e tentar explicitá-las deve ser também tarefa da educação ecológica contemporânea.

Caso contrário é “pagar mico”. Em outras palavras “o bicho pega. Tá ligado?”

 

O uso de cartazes e os apelos da linguagem conativa
no controle das ações ambientais:

“Sorria, você está sendo filmado”

Dando continuidade ao presente trabalho, recorremos à análise do uso de cartazes em linguagem apelativa no controle de ações ambientais e/ou que se utilizam da linguagem conativa para tentar influenciar o comportamento dos leitores aos quais se destinam, como, por exemplo, o que figura no popular cartaz: “Sorria, você está sendo filmado.”

Em inúmeros lugares por onde transitamos encontramos o cartaz com a frase acima citada, e ainda: “Proibido fumar.” ou “Não pise na grama.”

A linguagem que emprega a função conativa procura influenciar o receptor por meio de pedidos. Para Silva & Bertolin (2002: 18)

A linguagem apelativa, também chamada de conativa, coloca ênfase no receptor, (alocutário, ouvinte, interlocutor, leitor). Recorre ao imperativo, velado ou explícito, com intenção de persuadir, convencer, mandar, aconselhar, sugerir, pedir, exortar, enfim, influenciar o comportamento de quem recebe a mensagem.

Um dos cartazes que ora trazemos para análise foi estudado no lócus de nossa pesquisa e nele figura uma frase simples, manuscrita em letras escuras:

“Não jogue papel de bala no chão.”

Nosso objeto de estudo se dá por conta da expressão adnominal “de bala”, o que deixa subentendido que para outros tipos de papel a recomendação seja inválida, ou seja, que exclusivamente o papel “de bala” não deve ser jogado no chão.

Entrevistamos uma das serventes responsáveis pela limpeza e varredura das salas de aula onde figura o respectivo cartaz, perguntando se ela sentia que o cartaz influenciava o comportamento dos alunos, diminuindo a incidência de papel de bala no chão. Ela respondeu que achava que sim, porque o papel de bala estava concentrado no peitoril das janelas, enquanto os pacotes de biscoito e as folhas de caderno inutilizadas estavam, estas sim, no chão.

Em outras palavras ela ironizou o fato do cartaz estar sendo atendido em seu apelo, porém, “não jogar no chão” não significa para os alunos, necessariamente “jogar no lixo” e sim, em qualquer outro lugar mais próximo e cômodo, embora inadequado.

Apoiados nos preceitos teóricos do desconstrucionismo, concordamos com Derrida (1973: 17) ao afirmar que “não há signo lingüístico antes da escritura”, sendo que o significado se sobrepõe ao significante, o inteligível age sobre o sensível e que, portanto, a matéria do texto ocupa novo lugar.

É o que nossa análise permite ao nos deparamos com o depoimento seguinte:

Na minha escola o texto que eu mais leio para incentivar um ambiente limpo é um cartaz muito conhecido, colado pela escola toda, onde aparece um desenho de um porco com a seguinte frase: ‘Olha a cara de quem joga lixo no chão.’ Acho engraçado esse desenho com essa frase... Mais engraçado ainda é que quase todo dia tem uma ou duas folhas dessas que descolam da parede e caem no chão... todo mundo pisa e ninguém recolhe, nem eu !!! (...) Acho que foi a Diretora que tirou xerox do cartaz e mandou a servente colar.(...) Toda semana a servente deve jogar fora uma porção destes papéis (...) A diretora? Sei lá... Acho que ela nem percebe que caiu tudo no chão. Se sabe ela manda colar tudo de novo. (A, 8.ª série do Ensino Fundamental)

É uma estratégia de interpretação que nos parece respaldada pelo que advoga Derrida (1995) no sentido de que o texto escrito não tem que refletir o mundo nem formular respostas a ele, mas representar um questionamento sempre reformulado, como se fosse uma mentira que diz a verdade: um jogo de linguagem que se vale de suas próprias contradições.

Se o texto, como dissemos, precisa ser pensado como um espaço de interação social, acreditamos que a partir da análise, produção, construção e desconstrução da palavra oral e escrita, novas e positivas ações ecológicas possam acontecer, promovendo, pelo uso dialógico da Língua Portuguesa, uma melhor compreensão de nós mesmos e do meio ambiente no qual interagimos.

 

O texto publicitário em questão: ecologicamente corretos?

Como pressuposto teórico que respaldou nossa análise presente, baseamo-nos em Reigota (2002) quando aponta para certa negligência da educação quanto á força política, social, cultural dos discursos visuais, em preferência aos estudos e atividades centradas tradicionalmente em formas de expressão oral e escrita. De acordo com o autor:

Ao contrário da rapidez com que as imagens são consumidas através dos meios de comunicação de massa, no processo educativo elas adquirem um outro tempo, objetivo e significado. Em vez de serem descartadas após um rápido consumo, passam a ter o papel de material pedagógico que permite a dialogicidade entre os atores sociais. (REIGOTA, 2002: 115)

Para aprofundamento de nossa investigação selecionamos o anúncio de uma agência automobilística da Ford em que, no centro do anúncio, destaca-se a fotografia de uma caminhonete Ranger, movimentando-se sobre água limpa e intensamente azul, sugerindo, pela transparência, total limpidez. Na parte superior apresenta-se o texto publicitário: “Água e Ford. Indispensáveis.”

A interpretação inicial do referido anúncio, pareceu aos entrevistados, cumprir a intenção que postula no sentido de reiterar que “a água é indispensável.”

Tal observação reforça o fenômeno apontado por Bakthin (1992) como a polifonia do discurso em que o sujeito reconhece mais de uma voz na enunciação. O slogan toma ,assim, a proporção de uma verdade universal: não é o fabricante que “fala” que a água é indispensável; somos nós, sujeitos leitores, que reconhecemos muitas vozes por trás dessa fala. O anunciante é o porta-voz da nossa própria voz.

Provocamos então, os sujeitos investigados para a pretensão de se colocar a “indispensabilidade" de um carro na mesma proporção de que a água. Dito de outra forma, sondamos a possibilidade do reconhecimento de outra voz no discurso do anunciante quando coloca “água” e “Ford” indispensáveis.

As estratégias de interpretação incorporam novas possibilidades de entendimento do texto, colocando em jogo outros mecanismos de argumentação:

Professora, quem tem dinheiro pra comprar um carrão desse não precisa se preocupar com água. Sempre vai ter água. Se tem dinheiro pra comprar esse carro, pode encher uma cisterna e comprar quantos carros- pipa quiser. Eu, se tivesse esse carro não tava nem aí pra água... (W. J. S. – 3.º Ano do Ensino Médio)

O apelo do consumo parece falar mais alto que a conscientização e o dinheiro figura como o elemento “que compra”, e, portanto, resolve tudo.

Provocamos a discussão através da pergunta: “é mais fácil viver sem água ou viver sem um carro Ford?”

Análise do anúncio feita pelo aluno W. nos coloca diante do que a sociolingüística define como um “entremeio” ou seja, o sujeito lança mão de um mecanismo de interpretação que o leva a não pensar o que pode (e, neste caso, precisa) ser pensado, em função do afastamento da realidade, por ser a primeira opção mais cômoda ou desejável.

De acordo com Orlandi (1983: 31)

A sociolingüística se coloca na correlação da linguagem e da sociedade, administrando o social (sujeito e situação) no interior desta redução do lingüístico. O social, para análise do discurso não é correlato, ele é constitutivo (...) . A ideologia, por sua vez, é interpretação de sentido em certa direção, direção determinada pela relação da linguagem com a história em seus mecanismos imaginários. A ideologia não é pois, ocultação, mas função da relação necessária entre linguagem e o mundo.

No entanto, a visão de W. não é para o grupo de indivíduos sondados. O aluno P., em discurso diferenciado afirma:

É isso que eles querem: que a gente compre tudo e esqueça de pensar nas coisas mais importantes... Carro não é tão indispensável como água. Claro que não. Nem o carro anda se não tiver água... quanto mais a gente. Eles fazem a gente esquecer disso. (P. G. S. – 3.º Ano do Ensino Médio)

Segundo Morin (2002: 100) a compreensão pode ser favorecida pelo “bem- pensar” e “este é o modo que permite apreender em conjunto o texto e o contexto, o ser e o seu meio ambiente, o local e o global, multidimensional, em suma, o complexo, isto é, as condições objetivas e subjetivas.”

Reiteramos assim que a interpretação nunca será única e sim marcada pelas histórias de vida, pelas expectativas e até rupturas dos sujeitos com o objeto interpretável. A posse do carro para o jovem W., representa o poder de sobreviver até mesmo sem água.

Ainda de acordo com Orlandi (1998), quando o sujeito fala, ele está em plena atividade interpretativa, está atribuindo sentido ás suas próprias palavras em condições específicas, “mas ele o faz como se os sentidos estivessem nas palavras.” (ORLANDI, 1998: 65).

Desta forma, o que a propaganda enuncia é tanto pelo dito quanto pelo não dito, apontando para interpretações em alguns momentos mais aceitáveis pelos leitores do que outras.

Apoiados no que pressupõe a teoria desconstrucionista de Jacques Derrida (1973), concluímos que a linguagem não pode expressar conceitos concretos a respeito do mundo de um modo objetivo e, portanto, as intenções do autor de um texto são secundárias e levam a diferentes interpretações, igualmente válidas ou igualmente destituídas de significado, que dependem assim, do ponto de vista de quem o analisa.

Decorre disso que o texto escrito não tem que refletir o mundo, nem que reestruturar respostas a este, mas representar um questionamento sempre novo, como se fosse uma falácia com fundo de verdade, um jogo de linguagem que se vale de suas oscilações e nuances.

Se o texto precise ser pensado como um espaço de interação social, acreditamos que ele pode ser pretexto para uma melhor compreensão dos seres a respeito de si mesmos e do meio ambiente no qual se inserem e interagem.


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992.

––––––. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

BARROS, Diana Luz Pessoa; FIORIN, José Luiz. Dialogismo, Polifonia e Intertextualidade em torno de Bakhtin: Ensaios de Cultura. Edusp, 2003.

BONATELLI, Invanhoé Robson Marques; CITELLI, Beatriz Helena. A Escrita na Sala de Aula: Vivências e possibilidades. In: CHIAPPINI, Lígia (Coord.). Aprender e ensinar com textos de alunos. 4ª ed., São Paulo: Cortez, 2002.

DERRIDA, Jacques. Da gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1973.

FREIRE, Paulo. Conscientização, teoria e prática da libertação. São Paulo: Cortez e Moraes, 1980.

GERALDI, João Wanderley. O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 2002.

GUIMARÃES, Mauro. Educação ambiental: no consenso um embate? São Paulo: Papirus, 1994.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 6ª ed., São Paulo: Cortez, 2002.

OSAKABE, Haquira. Ensino de gramática e ensino de literatura. In: GERALDI, João Wanderlei (Org.) O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 2002.

REIGOTA, Marcos. O que é educação ambiental. São Paulo: Brasiliense, 1994.

––––––. Meio Ambiente e Representação Social. São Paulo: Cortez, 1999.

––––––. A Floresta e a Escola: por uma educação ambiental pós- moderna.São Paulo: Cortez, 2002.

RUSCHEINSKY, Aloísio (Org.). Educação Ambiental – Abordagens Múltiplas. Porto Alegre: Artmed, 2002.

SILVA, Antônio de Siqueira; BERTOLIN, Rafael. Curso completo de português São Paulo: IBEP, 2002.