UM PADRÃO IDEAL DE FALA: VICISSITUDES

Fernando Vieira Peixoto Filho (UFRJ)

 

Norma-padrão: alguns conceitos

Numa comunidade, o ideal lingüístico de correção. (Ferreira 1999: 1.415)

Conjunto de preceitos estabelecidos na seleção do que deve ou não ser usado numa certa língua, levando em conta fatores lingüísticos e não lingüísticos, como tradição e valores socioculturais (prestígio, elegância, estética etc.). Tudo o que é de uso corrente numa língua relativamente estabilizada pelas instituições sociais. (Houaiss, 2001: 2.027)

A norma abrange o que no falar de uma comunidade lingüística é técnica historicamente realizada, o que nesse falar é realização comum e tradicional (...). (Coseriu, 1987: 140)

Lei (do latim lex) contém um sema imperativo: é aquilo que deve ser obedecido, não importando, como acontece algumas vezes, que ela seja arbitrária, iníqua. Regra e norma são, de origem, modelos geométricos. A primeira provém do latim regula, uma “reta materializada que permite criar outras retas” [Alain Rey]. Norma é um latinismo que traduz o grego gnomon “esquadro”, e “desempenha o mesmo papel em relação ao ângulo” [Idem], encontro de retas. Em tempos modernos, os dois termos sinonimizaram-se na “representação do que deve ser realizado”, finalidade com implicação de valor. (Cunha, 1985: 42)

A língua é, muito provavelmente, o principal item na caracterização cultural de um povo. Por conta disso, assim como uma análise social mais ampla precisa considerar aspectos lingüísticos, o inverso também é verdadeiro: uma análise mais profunda no plano lingüístico deve considerar os fatores histórico-sociais. E esses fatores, em toda a sua amplitude, tornam fluidos os conceitos relativos ao homem, incluindo-se o conceito de norma lingüística.

Quando se fala em norma, essa fluidez torna obrigatória a delimitação do prisma pelo qual se olha a questão. Ficando apenas no campo da lingüística, pode-se reconhecer sem muito esforço pelo menos dois sentidos para o termo. O primeiro diz respeito ao conjunto de características lexicais, fonológicas e morfossintáticas que marcam um dialeto e apontam o falante como pertencente a esta e não àquela região: falante mineiro, falante paulista, gaúcho, carioca etc. Tal sentido pode-se perceber na segunda definição (Houaiss) e na definição de Eugenio Coseriu. O segundo sentido, mais abstrato e convencional, depreensível nas definições do dicionário Aurélio e de Celso Cunha, refere-se à escolha de uma dada variedade, que passa então a servir como modelo de bom comportamento lingüístico para os membros da comunidade como um todo. Deste último sentido parece aproximar-se o conceito de padrão, não raro motivado por questões extralingüísticas.

Mais coerente talvez seja dizer que o conceito de padrão se relaciona a questões de simbologia social, até porque, desde as suas origens, o homem constrói eixos simbólicos em torno dos quais sua existência possa transcorrer. Dito de outra forma, as atitudes humanas são oriundas de uma mescla entre formação/imposição social e herança genética, sendo o primeiro componente, diga-se de passagem, muito mais determinante do que o último. A sociedade, por este ponto de vista, é montada a partir de uma hierarquia de valores estabelecidos convencionalmente - os chamados padrões, que regulam comportamentos e ditam a noção de normalidade.

Na tradição lingüística de uma dada sociedade, não obstante todas as questões levantadas pelos cientistas da língua, sempre haverá um padrão de correção, um ideal de boa linguagem, uma meta abstrata perseguida pela maior parte dos cidadãos. Mas é claro que esse padrão não é (nem poderia ser) estanque, já que versa sobre uma entidade que acompanha a dinâmica social, isto é, “os tempos mudam, mudam-se os usos lingüísticos” (MATTOS E SILVA 2000: 23).

Parece residir na distância considerável entre o padrão ideal configurado em alguns compêndios e o que efetivamente se produz na linguagem cotidiana o emaranhado de críticas à tradição gramatical. Ou seja, o padrão ideal proposto pela tradição anda bastante distante das chamadas normas vernáculas, o que gera naturalmente alguns choques lingüísticos.

 

Padrão de fala ideal

Em trabalho anterior, dediquei algumas linhas à diferença entre fala e escrita, afirmando, entre outras proposições, que:

A fala é menos amarrada à estrutura morfossintática porque dispõe de toda uma série de recursos extralingüísticos que a escrita não possui: a entonação, a tessitura, o ritmo; a força dos gestos, as feições da face, a postura física de quem discursa oralmente (...).

Com a língua escrita os fatos são diferentes. Acoplam-se tão-somente a letra e o papel, cabendo ao leitor a descodificação do texto e sua recodificação, aproximando-se, ao máximo, da tentativa de interpretar as reais intenções do emissor, uma pessoa via de regra ausente. (Peixoto Filho, 2001: 18)

Tratando como verdadeiras essa afirmações, pode-se inferir que a fala goza de algumas liberdades geralmente não permitidas no discurso escrito, o que torna mais delicada a tarefa de eleger uma fala padrão, ao menos recorrendo a critérios unicamente lingüísticos. A sociolingüística ensina que não existe língua ou falar superior ao outro. Todas as línguas possuem suas especificidades e são instrumentos perfeitamente legítimos nas comunidades em que servem como principal meio de expressão. No entanto, sabemos que é da índole humana estabelecer hierarquias e padrões, juízos de valor que não atendem necessariamente a parâmetros científicos.

As bases ideológicas a partir das quais se configura uma sociedade interferem nas realizações lingüísticas, o que, ao menos em parte, depõe contra a idéia de que não haveria deficiência lingüística. Não é à toa que Celso Cunha, no clássico A Questão da Norma Culta Brasileira, embora reconheça que “a justificação da norma prescritiva é de caráter nitidamente ideológico” (p. 44), acaba admitindo que o domínio do dialeto de prestígio é, ao menos nas sociedades ocidentais, uma exigência para os que pretendem ascender socialmente:

(...) A verdade, sabemo-la todos. Apesar das razões alegadas por Labov e os sociolingüistas de sua Escola, pelo menos nas sociedades ocidentais, aqueles que não dominam razoavelmente tal dialeto - melhor dizendo: a língua culta - sofrem restrições na progressão social. (p. 47)

Dois congressos, o primeiro realizado em São Paulo (1937) e o segundo em Salvador (1956), debateram sobre qual seria o falar padrão a ser adotado oficialmente no canto, na declamação e no teatro. Com uma ou outra restrição, os encontros concluíram que deveria ser o linguajar carioca o padrão de fala oficial para o país.

Abaixo estão algumas fundamentações listadas pelo Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada (1937):

a) considerando que o estabelecimento e fixação duma língua padrão virá pôr um termo à anormalidade de pronúncia que atualmente se verifica no teatro, na declamação e no canto da língua nacional;

b) considerando que dentro das pronúncias regionais do Brasil faz-se mister escolher uma que apresente ao mesmo tempo as melhores credenciais nacionais, filológicas e artísticas;

c) considerando que a pronúncia “carioca” do Estado da Guanabara apresenta-se como a mais evolucionada dentre as pronúncias regionais do Brasil;

d) considerando ser ela a que mais apresenta “tonalidades próprias de bastante relevo” no dizer do professor Renato Mendonça;

e) considerando ser ela a de maior musicalidade na pronúncia oral ao mesmo tempo que dá menos a impressão do “falar cantado”, na observação do professor Mário Marroquim;

f) considerando ser a pronúncia carioca a mais elegante, a mais essencialmente urbana dentre as nossas pronúncias regionais;

h) considerando ser ela provavelmente, por ter-se fixado na capital do país, um produto inconsciente, uma síntese oriunda das colaborações de todos os brasileiros, e por isso mesmo mais adaptável a todos eles;

g) considerando ser ela, por ser a da capital a que os brasileiros afluem, a mais fácil de ser ouvida e propagada e a que mais probabilidades tem para se generalizar. (Silva Neto, 1979: 526-527)

Serafim da Silva Neto acata essas fundamentações, enfatizando que o fato de ser o Rio de Janeiro, na época, a capital do Brasil traz para a cidade “o que há de mais seleto em outras regiões do país” (p. 527). Ainda nas palavras de Silva Neto, a condição de capital confere ao Rio de Janeiro o privilégio de ser

o ponto onde funciona o Governo (...), onde se localizam os sodalícios e as sociedades sábias, a maior imprensa do país, a Biblioteca Nacional, e numerosas outras instituições culturais. (1979: 527)

Apontam para conclusões semelhantes as considerações de José Liberal de Castro, apresentadas ao Primeiro Congresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro (Salvador, 1956):

Admitindo-se o critério de aceitar-se o tipo de pronúncia majoritária no Brasil e considerados os exemplos que fornecemos, verifica-se que a pronúncia carioca comparece praticamente entre todas as formas vencedoras.

Conclui-se, pois, que ela é realmente a média da pronúncia nacional, fato que também poderia ser comprovado com uma série de argumentos de ordem histórico-social (...).

Poderá, pois, a pronúncia carioca servir de base à Língua Nacional Falada no Teatro, desde que se lhe aplique a pronúncia sibilante do s posvocálico nacional e dela se expurguem os inúmeros modismos que não chegam a comprometê-la. (p. 108)

É curioso notar que José Liberal de Castro recomenda a pronúncia carioca desde que se elimine uma de suas principais marcas fonéticas: a pronúncia chiante do s pós-vocálico.

Ruy Affonso, por seu turno, diverge de Castro e propõe uma espécie de “média” das prosódias carioca e paulista:

Segundo penso, devemos mesmo seguir as pegadas do Congresso de 1937, reconhecendo, porém, que a prosódia por ele considerada padrão não foi afinal a carioca, e sim a média das prosódias carioca e paulista, despojadas ambas dos cacoetes que as regionalizam. E, portanto, proponho que se adote conscientemente, como modelo de prosódia para o teatro, a média das referidas prosódias carioca e paulista, eliminando os vícios que as empobrecem. (p. 141)

Como argumentos para sustentar sua tese o autor: a) cita Cândido Jucá, que considerou a prosódia carioca “eivada de alguns defeitos deselegantes” e a paulista “bastante clara em suas vogais, dando ao ouvinte uma percepção de todos os seus sons”; b) afirma que os atores de São Paulo têm “uma elocução bem mais inteligível” do que a dos atores cariocas; c) cita o caso de Portugal, onde se formou uma espécie de padrão-médio entre Lisboa e Coimbra; d) afirma que Rio e São Paulo são “dois vasos comunicantes” (“nossas gírias se cruzam, nossas anedotas são trocadas e nossas companhias teatrais se revezam”).

O Parecer do Congresso, embora reconheça no trabalho de Ruy Affonso “útil, conscienciosa e honesta contribuição de pesquisa”, acaba propondo como modelo a pronúncia carioca, que teria “qualidades de elegância e musicalidade” que pesam a seu favor.

 

Dados atuais

É claro que de meados do século XX aos nossos dias mudou bastante a estrutura social e política do Brasil. Para o nosso assunto, cumpre assinalar que o Rio de Janeiro perdeu, por assim dizer, alguns importantes títulos. A capital do país é hoje Brasília, a hegemonia financeira e populacional é de São Paulo, que hoje responde pela maior concentração industrial do país. Aliás, é interessante notar que, em termos populacionais, a cidade de São Paulo supera a do Rio de Janeiro já no início da década de 60:

 

Tabela 1: Brasil: as dez cidades mais populosas em 1950 e 1960

Cidade

1950

1960

Rio de Janeiro

2.377.451

3.281.908

São Paulo

2.198.096

3.781.446

Recife

524.682

788.336

Salvador

417.235

649.453

Porto Alegre

394.151

635.125

Belo Horizonte

352.724

683.908

Fortaleza

270.169

507.108

Belém

254.949

399.222

Niterói

189.309

243.188

Curitiba

180.575

356.830

Fonte: Coelho, 1996 / IBGE 1984

No início da década de 80, São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte são as três cidades mais populosas do Brasil, com, respectivamente, 8.493.226, 5.090.700 e 1.780.855 habitantes (cf. Coelho, 1996: 326).

Por outro lado, nos planos educacional e cultural, a cidade do Rio de Janeiro consegue manter certa posição de destaque no cenário nacional. Ainda hoje, a Zona Sul do Rio é conhecida por sua concentração de atividades culturais. Além disso, números recentes do IBGE revelam que o Rio possui a menor taxa de analfabetismo do país e que os cariocas estudam, em média, 2,7 anos a mais do que o restante dos brasileiros:


 

Tabela 2: Indicadores educacionais em doze capitais brasileiras

Capitais

Taxa de analfabetismo (% da população de 15 anos ou mais)

Média de anos de estudo (população com mais de 25 anos, em anos)

Menos de quatro anos de estudo (em % de habitantes com mais de 25 anos)

Menos de oito anos de estudo (em % de habitantes com mais de 25 anos)

Mais de onze anos de estudo (em % de habitantes com mais de 25 anos)

Porto
Alegre

3,7

8,6

14,1

40,1

24,80

Rio de
Janeiro

3,4

8,2

16,8

41,1

19,75

Curitiba

3,9

8,1

17,6

44,1

20,40

Brasília

5,9

7,9

20,0

44,1

18,77

Belo
Horizonte

4,9

7,7

18,1

49,1

17,8

Belém

4,4

7,6

20,2

45,9

13,25

São Paulo

4,6

7,4

19,0

49,8

17,3

Salvador

6,7

7,5

22,4

47,0

12,44

Goiânia

6,3

7,2

23,5

51,4

12,83

Manaus

6,6

6,9

24,6

50,1

7,32

Recife

11,0

7,1

25,5

53,4

15,20

Fortaleza

12,8

6,4

30,4

57,2

10,6

Fonte: O Globo, 12.05.01 / IBGE

Talvez seja lícito lembrar que a situação muda de figura quando os dados não se restringem às capitais. Os números do Censo 2000 mostram que o Rio de Janeiro, considerando os cinco estados mais populosos e o Distrito Federal, ocupa apenas a quarta colocação no indicador Taxa de Alfabetização e perde para Brasília no índice que mede os anos de estudo dos chefes de família:

 

Tabela 3: Indicadores educacionais nos cinco estados mais populosos
e no Distrito Federal

Estado

População

Taxa de Alfabetização

Anos de estudo do chefe de família

São Paulo

37.032.403

93,9%

6,8

Minas Gerais

17.891.494

89,1

5,4

Rio de Janeiro

14.391.282

93,7

7,1

Bahia

13.070.250

78,4

4,1

Rio Grande do Sul

10.187.798

93,9

6,4

Distrito Federal

2.051.146

94,8

8,2

Fonte: O Globo, 20.12.01 / IBGE - Censo 2000

 

Hierarquia, disputas

Até meados do século XX, antes da vertiginosa ascensão das pedagogias de cunho sociológico, eram mais explícitos os juízos de valor e menos falseadas as hierarquizações. A leitura de publicações anteriores a 1960 mostra que havia menos pruridos e modalizações na abordagem de questões relativas a tradição, modelos, raça, credo, enfim, assuntos cuja abordagem pudesse ferir o orgulho das pessoas. Como a língua é um fator considerável na malha social, parece que as abordagens lingüísticas percorreram também a mesma trilha sociologizante, principalmente após o surgimento das teorias labovianas. Criaram-se, então, várias modalizações, vários modos de dizer, de tocar em assuntos que mexem com a emotividade. A norma lingüística é um desses assuntos, visto que envolve, muito claramente, julgamentos, conceitos de correção, de superioridade/inferioridade, o ato de valorar uma variedade e conseqüentemente pejorar as demais.

A verdade, contudo, é que o problema da correção da linguagem esteve quase sempre presente nas abordagens lingüísticas. É significativo notar, inclusive, que a primeira descrição lingüística conhecida, a do sânscrito clássico, feita pelo gramático hindu Panini (século IV a.C.), surgiu

no momento em que a língua sânscrita cultivada (bhasha), ameaçada pela invasão das falas populares (prakrits), necessitava ser estabilizada - quanto mais não fosse, pelo menos para assegurar a conservação literal dos textos sagrados e a pronúncia exata das fórmulas de prece. (Ducrot & Todorov, 1998: 125)

Como se vê, da era pré-cristã aos nossos dias, os ventos científicos e filosóficos não têm conseguido apagar as marcas de discriminação e padrões hierárquicos que fazem do homem o que ele sempre foi, em essência. Perduram, deste modo, disputas e escolhas.

No que concerne particularmente ao português falado no Brasil, a disputa pela condição de padrão ideal de fala, nas palavras de Leite & Callou (2002: 9-11), girou sempre em torno de três grandes centros: Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador, logicamente devido à importância histórico-social dessas três cidades. Ainda segundo as autoras, o Rio de Janeiro levou sempre vantagem nessa disputa, principalmente por razões extralingüísticas:

O fato de o Rio de Janeiro estar geograficamente no centro de uma polaridade norte/sul, ser o centro político há mais tempo, capital da Colônia desde 1763, e ser uma área cuja linguagem culta tende a apresentar menor número de marcas locais e regionais, com uma tendência universalista, dentro do país. (p. 9-10)

Além do mais:

Costuma-se dizer que o falar carioca é o que mais eqüidistante se encontra do nortista, do nordestino, do oriental, do sulista e do sertanejo, e que o Rio de Janeiro possui condições geográficas, históricas, políticas e, inclusive, lingüísticas, para ser um centro unificador. (p. 10)

Afirmam também as autoras que São Paulo e Salvador perdem terreno na disputa principalmente por suas marcas dialetais: os paulistanos mantêm em sua pronúncia características do chamado “dialeto caipira”, ao passo que os soteropolitanos apresentam na fala certa “entoação descendente” e algumas marcas estigmatizadas, como as vogais pretônicas abertas (pérdão, córagem) e a perda pronunciada do r final (cf. p. 10).

 

Conclusão

Este trabalho pressupõe que se tome uma posição contrária ou favorável à idéia de que o linguajar carioca é o padrão ideal de fala para o Brasil. Chegado o momento de tomar essa posição, devo reconhecer que os ventos filosóficos e científicos citados há pouco, embora não mudem substancialmente a essência do homem, ao menos pressionam, e pressionam bastante. Torna-se então meio delicada a tarefa.

É muito difícil (senão impossível) defender posição favorável a um paradigma ideal de fala, um modelo do que seria o bom falar, tomando-se por base critérios científicos, lingüísticos. Como afirmei no segundo tópico, a sociolingüística já provou satisfatoriamente que não existe um falar superior ou melhor que outro. A escolha de um padrão ideal de fala, assim, terá de recorrer a conveniências e convenções sociais. Quando se afirma que o dialeto carioca possui menos marcas regionais e que por isso estaria habilitado a ser o padrão, é possível argumentar contrariamente: o Rio de Janeiro não é uma cidade homogênea em termos lingüísticos (cf. Callou & Marques 1975, Callou 1987). Além do mais, cientificamente, não há nada nas marcas regionais de uma variedade que a impeça de servir como modelo abstrato de bem falar.

Quanto aos argumentos histórico-sociais, as tabelas apresentadas mostram que os indicadores educacionais representam realmente ponto a favor da capital fluminense, embora o mesmo não se verifique quando se analisam dados do estado como um todo. É relevante o fato de o Rio de Janeiro ser, atualmente, a capital com menor índice de analfabetismo, assim como é também relevante a constatação de que o carioca possui uma escolaridade média de 2,7 anos acima da média nacional (cf. Leite & Callou 2002: 30). Mas talvez o fator que mais conte ponto para o linguajar carioca seja a fundamental importância histórica do Rio de Janeiro, local onde o Brasil começou, finalmente, a ganhar ares de nação depois de três séculos de ruralismo.

Haveria, por outro lado, argumentos favoráveis a São Paulo e Salvador?

Creio que sim.

Em relação a São Paulo, pode-se argumentar que a cidade é hoje o coração político-econômico do Brasil e importante foco irradiador de cultura.

Sobre a capital baiana, pode-se dizer que ela é a cidade onde mais nitidamente se apresentam os traços lingüísticos que caracterizam importante parcela da população brasileira: o contingente negro-mulato.

Finalmente, se é realmente necessário escolher uma variedade lingüística e classificá-la como padrão, as justificativas terão de ser, como já foi dito, simbólicas, convencionais e políticas. Por esse tipo de perspectiva (e só por esse tipo), não há por que não ser o linguajar carioca o nosso padrão idealizado de fala.

 

Referências BIBLIOGRÁFICAS

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