UM ESTUDO SOBRE O LÉXICO
DA “CRÔNICA DE DOM JOÃO I”, DE FERNÃO LOPES,
E SUAS CONEXÕES COM O LATIM VULGAR
E O LATIM MEDIEVAL
[1]

Maria Cristina Martins (UFRGS)

 

INTRODUÇÃO

Sabe-se que o português deve sua origem a duas variedades de latim, tanto do ponto de vista lexical e morfológico, quanto do ponto de vista sintático.

Antes de existirem as línguas românicas, havia os “romances”, fases iniciais das línguas românicas, a qual é bastante variável para cada uma, e abrange um longo período, entre os séculos IX e XVI. Considera-se o primeiro texto em romana língua os Juramentos de Estrasburgo (842), escrito em um francês “vulgar”, que não se sabe com certeza de que região seria. Os primeiros textos em língua portuguesa começam a surgir no século XII. São eles: “Cantiga da Ribeirinha”, do Paay Soares de Taveiroos, o primeiro texto em poesia, e “Notícia de Torto”, de 1211, o primeiro texto em prosa.

Certamente, a história política, cultural e lingüística da Península Ibérica teria sido outra, se não fosse a invasão árabe, e depois o movimento da Reconquista. Os limites políticos de Portugal datam de 1250, quando D. Afonso II concluiu a conquista do Algarve. Mesmo delineado politicamente, a língua falada naquela faixa de terra continuou sendo o galego-português até o século XIV.

Formado com base nos falares de Lisboa e de Coimbra, o português literário não sofreu concorrências dialetais, como no francês, mas teve que formar sua identidade perante o castelhano. Por isso, Gil Vicente (1470-1540) usou em algumas de suas peças as duas línguas, refletindo uma situação em que os limites entre as duas línguas ainda não eram bem claros, o que vai ocorrer com Os Lusíadas (1572), de Camões.

De um modo geral, as línguas românicas assumiram sua feição literária definitiva nos séculos XV e XVI. Lendo-se, por exemplo, a Chanson de Roland dificilmente se reconhece o francês atual. Embora em menor proporção, o mesmo acontece com o castelhano do Cantar Del mio Cid e a Notícia de Torto, do português.

Voltando ao léxico que compõe a língua portuguesa, pode-se dizer, muito brevemente, que foi o léxico herdado do latim vulgar (popular) que lhe deu feição fonética, através dos metaplasmos que lhe são característicos. Esse tesouro lexical restringe-se basicamente a palavras da vida cotidiana, extremamente usuais e concretas: matre (m), patre (m), pane (m), vita (m), etc. Para fins de comparação entre o léxico herdado do latim vulgar e o que foi introduzido, posteriormente, a partir do século XVI, por via erudita, considere-se a palavra latina macula: ela é o ponto de partida para malha e mancha, termos herdados (populares), que sofreram alguns dos processos de evolução fonética característicos do português. Um deles é a síncope da sílaba pós-tônica, que transforma uma palavra proparoxítona do latim em paroxítona. Também são provenientes de macula, as palavras mágoa, semi-erudita, que perdeu uma consoante sonora intervocálica, o /l/, e sonorizou o /c/ para /g/ (também dois metaplasmos característicos do português), e mácula, que não sofreu nenhuma alteração fonética; é uma palavra erudita. Ainda temos alguns tipos de metáteses (mudanças fonéticas), próprias do português, em seu curso de desenvolvimento desde o latim, como a transposição de um /i/ ou /u/ de ditongo crescente para a sílaba precedente tônica, onde passa a constituir um ditongo decrescente: primariu- > primairu > primeiro. Quanto ao léxico proveniente do latim eclesiástico e medieval (dizendo respeito aos tratados de comércio, filosofia, matemática, etc, escritos na Idade Média, e muitas vezes também à literatura pagã), pela temática liga-se à cultura, ao pensamento abstrato, às idéias filosóficas e religiosas e quase não sofreram modificação morfológica na passagem para o português, por isso muitas delas são proparoxítonas. Para se ter uma idéia, no português arcaico, predominavam as palavras paroxítonas. No galego-português as raríssimas proparoxítonas que existiam se tornavam paroxítonas pelo uso. Por exemplo, a forma latina clericu, de origem grega, transformou-se em crelgo. Clérigo é a palavra semi-erudita, introduzida depois da relatinização, com pequena modificação fonética de acordo com o vernáculo. Essa relatinização ocorreu no período do Renascimento ou, segundo alguns, na 2ª fase da língua portuguesa (de 1350 ou 1385 até o séc. XVI, com Camões).

 

A CRÔNICA DE DOM JOÃO I, DE FERNÃO LOPES

Fernão Lopes é comumente considerado o introdutor da prosa literária em Portugal. Verificar-se-á qual é a tendência mais marcante da Crônica de Dom João I, se popular ou erudita, através de uma descrição inicial, de natureza morfológica e semântica, do léxico que a compõe. Não se trata de uma descrição exaustiva, mas cobre boa parte dos tipos lexicais que merecem destaque, sejam pela forma ou pelo sentido que possuem.

Sabe-se que os príncipes da casa de Avis, Dom Duarte, Infante Dom Pedro e Infante Dom Henrique, todos irmãos, são os primeiros contribuidores, no segundo quartel do século XV, para o surgimento da prosa literária em língua portuguesa. Todos liam e escreviam em latim, assim, introduziam palavras latinas ao português, acomodando-as à pronúncia da época. Fernão Lopes, por sua vez, foi o primeiro cronista-mor do reino português, encarregado pelo rei Dom Duarte de “poer em coronyca as estoryas dos Reys que antigamente em Portugal foram” (Prólogo da Crônica de Dom João I).

Não se pode esquecer, que as línguas românicas começaram a ganhar importância e a concorrer mais fortemente com o latim, somente a partir do século XVI. Como a Crônica de Dom João I foi escrita no século XV, possivelmente haverá ainda uma forte influência arcaica, com um grande número de variantes escritas para uma mesma palavra, já que o processo de regulamentação da escrita e eliminação de variantes foi lento. As primeiras gramáticas foram as de Fernão de Oliveira (1536) e João de Barros (1540), as quais procederam à sistematização das normas, eliminado variantes que, por sua vez, tinham sido manejadas e enriquecidas pelo trabalho artístico dos escritores Renascentistas.

 

Descrição parcial dos itens lexicais

Em termos gerais, quanto ao léxico, pode-se dizer que: 1) algumas palavras tornaram-se desusadas; 2) algumas mantiveram-se; 3) algumas acusam mudança de significado. Os dados foram divididos em dois grandes blocos, por apresentarem peculiaridades semânticas ou morfológicas. Citou-se ainda uma pequena amostra da sintaxe do texto.

 

Semântica

● Verbo ser no sentido de existir, ou estar

O verbo esse, em latim clássico, poderia significar “ser, “existir”, “estar”, “ficar”.

Na seguinte frase “ (...) não hera bem ir maes adiante” (p.15), percebe-se que o sentido do verbo ser aí empregado conserva uma das acepções clássicas, como se disséssemos “não ficava bem ir mais adiante”.

Em (...) “eram prestes de defender” (p. 8), o sentido é de “estavam prestes de defender”.

 

● Verbo espargir em um uso comum de “espalhar”, “derramar”

O verbo espargir atualmente tem um uso muito restrito; limita-se a algumas fórmulas ou receituários, cujo emprego é, sem dúvida erudito. A Igreja, em alguns de seus rituais, como as benções ou o batismo, também usa este verbo. No texto, os homens, como conseqüência de um ferimento, estão “esparjendo muito do seu sangue.” (p. 8).

 

● Verbo fazer causativo

Fernão Rõiz fez comendador mor (p.4), no sentido de fez-se ou tornou-se;

 

● Verbo estar como “estar de pé”

O verbo “estar”, em latim clássico - sto, -as, -avi, -are -, significava “estar de pé”, em oposição a sedeo,- es, ere, “estar sentado”.

Em “que fazemos estando” (p.27 ) parece que estamos diante de um emprego clássico.

 

● O verbo entender, na ocorrência entendes de partir (p.26) significa ‘pretender’, ‘ter a pretensão de’, como em latim –intendo,, -es, -tendi, -tentum -, e não de ‘compreender’, sentido atual.

 

Morfologia

● Processos de formação de palavras que se perderam

● Substantivos em –mento , -ança (lat. -antia) , -ença (lat. –entia)

razoamento (p. 4 = razão, pensamento)

avysamento (= prudência, cautela)

contradizemento (p. 9) (= contradição)

sombrançarias (p. 7|) (= tristezas)

usança (p. 17) (=costume)

folgança (p. 23) (=folga)

Os sufixos–oso e –ança, atualmente são pejorativos, contrariamente ao português arcaico.

avondança (=abundância)

Repare-se, nesta palavra popular, que havia flutuação entre /b/ e /v/, tão comum tanto no latim como em português. Abundância é uma forma erudita (lat.abundantia), refeita a partir do Renascimento.

Os substantivos em –mento, -ança e –ença formavam-se de temas verbais no infinitivo e davam idéia de ação. São comuns nos autores dos séculos XV e XVI. Começaram a cair em desuso com o influxo do latim no Renascimento, que substituiu ou refez muitas palavras populares por formas eruditas oriundas do latim. No entanto, conservaram-se: mudança, andança, folgança, governança, temperança, parecença, doença, ordenança, entre outras.

● Uso do verbo leixar

leixando (p.4), leixae

Existiam, em latim vulgar, duas variantes do verbo “deixar”: laxare e daxare. De laxare, temos o derivado “leixar”, usado até o século XV, que depois arcaizou-se. Deste verbo conservam-se em português os derivados desleixado e desleixo, de leixar + o prefixo des ou dis (de de+ ex). De laxare, temos laxante e laxativo, por exemplo, vocábulos eruditos, pois a forma que prevaleceu na fala foi daxare, donde o português deixar e o cast. dejar. Já em italiano, francês e romeno, o que se manteve foi laxare, conforme vemos em laisser, lasciare e a lasa, respectivamente.

 

● Palavras que existem no português atual, mas com outra forma:

defemssão (p.8) (=defesa)

ajudador (p9) (=ajudante)

conteúdas (p.10) (= contidas)

ledice (p.14) (= alegria)

Palavras que existem no português atual, com a mesma forma, mas com sentido diferente:

 

● Advérbios em –mente que se não sobreviveram

compridamente (P.1), semelhavellmente (p.11)

 

● Adjetivos em –vel e al

Convynhavel (=conveniente), Humanal (=humano), Comunall (=comum)

Os adjetivos terminados em –vel, do português, provêm do latim – bǐl (e). Esta formação era bastante produtiva no português arcaico; hoje em dia restam-nos alguns poucos, tais como: cobrável, vendível, amável, estável, móvel, razoável, exeqüível. Repare-se que no substantivo exeqüibilidade volta-se à raiz latina, o que demonstra tratar-se de uma criação erudita. Com a terminação –al, correntes até hoje, são: espiritual e temporal; em –vel amável, estável (arc. stávil), móvel (arc. movil), razoável (arc. razoavil). Este sufixo ainda é produtivo na formação de adjetivos; vejam-se: vulnerável, desejável, remediável, suportável.

No século XVI, houve a introdução de adjetivos eruditos em –il: ágil, fácil, fértil, affábil, implicábil, terribil, volubil.

 

● Formação de demonstrativos com a partícula de reforço -accu

naquesta (p.11)

Uma das grandes revoluções no sistema da língua latina vulgar, em contraposição à clássica, está na reorganização do sistema demonstrativo. O conjunto dos demonstrativos é reforçado pela adjunção do prefixo adverbial ecce, eccu ou accu:

Iste (e reforçado: ecc´iste, eccu´iste ou accu´iste): este.

Ipse (e reforçado: ecc´ipse, eccu´ipse ou accu´ipse): esse

Ille (e refoçado: ecc´ille, eccu´ille ou accu´ille): aquele

No português arcaico, ainda se tem o uso de toda a série de demonstrativos reforçados, como é o caso do exemplo naquesta (em + aquesta = em+ accu+ esta).

Ao lado da forma de reforço *accu, origem de aquele (accu + ille) no português, os demonstrativos da língua vulgar foram também reforçados pelo antigo advérbio ecce (também chamado de partícula epidítica) ou eccu (m) formado do advérbio ecce com o demonstrativo hic no acusativo = (h)un (c). Na România temos, em linhas gerais, a seguinte distribuição das partículas de reforço: a Ibéria e a Dácia têm *accu e a Gália do norte ecce (cf.francês ecce+ille>cil>celui-ci / ecce+iste> ciste>cet/cette).

 

● Ausência de vogais que desfazem hiatos (morfo-fonética)

No texto, existem inúmeras palavras do tipo alhea (=alheia), em que há ausência da vogal usada para desfazer um hiato que se formou em decorrência da queda de uma consoante sonora intervocálica (no caso em questão /n/ - lat. aliena). Esta é uma característica do português arcaico, que se configura como uma fase intermediária entre o latim e o português moderno.

 

● Ditongos provenientes da queda de consoantes sonoras intervocálicas (morfo-fonética)

Muitos ditongos do português arcaico são resultantes da queda de uma consoante sonora intervocálica do latim. Nesse estágio do português, ainda não havia ocorrido a crase das vogais.

Exemplos; pee < pede (p.24);

 

Sintaxe

● Influência erudita na sintaxe

Finalmente, gostaríamos de dizer que a influência culta na prosa de Fernão Lopes é, sobretudo, na sintaxe. A ordem de palavras não segue um padrão mais ou menos fixo (suj.-verbo-compl.), mas se mostra variável, com bastantes inversões e uma tendência a apresentar o verbo no final da frase.

Para darmos uma idéia da forma de registro do texto, e da sintaxe de colocação, considere-se o seguinte parágrafo:

 (...) Todalas naaoos que erã no rio, muito cedo pola menhaã, [foram] apendoadas <e> de bamdeiras e de estamdartes, e postos muitos verdes ramos em certos loguares omde huũ emtendia que lhe milhor podia parecer; hos bateẽis delas amdavaõ todos emrramados, com trombetas e pemdoẽs devamte e de ree, ffornidos de homeẽs que os bem remavaõ, delles em camisas com sombreiros de rosas, outros de livres de ramos e de flores, segundo de cada hŭ milhor correger podiaõ. (Op. Cit. , Cap. VIII, p.19).

Na primeira frase, temos o verbo ser com o sentido de estar ou haver, do latim, a que já nos referimos anteriormente; mas, sintaticamente, mais adiante, o adjetivo antepõe-se ao substantivo – muitos verdes ramos; a locução verbal correger podiaõ termina o período, bem ao gosto do latim (clássico), e ainda apresenta a ordem infinitivo + verbo conjugado, tipicamente clássica.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa intenção aqui foi mostrar os resultados preliminares da descrição e análise, ainda que em estágio inicial, do vocabulário empregado na Crônica de Dom João I. Interessava-nos fazer a correlação entre o latim vulgar (popular), que deu origem às palavras herdadas da língua portuguesa, através dos metaplasmos característicos, e o latim medieval (continuação do clássico), sobretudo em sua modalidade eclesiástica, como fonte das palavras eruditas.

Do ponto de vista lexical, encontramos basicamente palavras herdadas, muitas delas numa fase de evolução intermediária entre o latim e o português. Vimos também que um certo número de palavras desapareceram da língua, ou foram refeitas com base no latim clássico, ou outras, ainda, sobreviveram com outro sentido.

Embora nossa descrição não seja exaustiva, esperamos ter contribuído para um melhor entendimento das raízes da nossa língua. Apenas quando se recua às fases mais antigas da língua e também ao latim, consegue-se explicar determinados usos, tendências da língua e palavras estranhas, aparentemente sem vínculos com outras atuais, como é o caso de “desleixo” e “desleixado”. Além disso, às vezes, as formas “erradas” que o povo usa, são uma continuidade de formas populares que, na verdade, nunca deixaram de existir. Sem dúvida, a língua foi-se organizando e se regulamentando, progressivamente, conforme normas determinadas pelo uso. Porém, os gramáticos e literatos procederam à sistematização das normas, eliminando grande parte das variantes.

Sabemos que deixamos de comentar inúmeros aspectos lexicais, mas, conforme salientamos mais acima, esta pesquisa está em andamento. Pretendemos ainda não só dar continuidade aos aspectos relativos ao étimo das palavras, mas também avançar em outras direções da gramática, pois o trabalho com o léxico nos leva a isso.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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SPINA, Segismundo. História da língua portuguesa III: segunda metade do séc. XVI e século XVII. São Paulo: Ática, 1987.


 


 

[1] A análise da obraCrônica de Dom João I”, de Fernão Lopes, é parte integrante de uma pesquisa maior, cujo objetivo é descrever historicamente a formação do léxico do português. Trata-se aqui do início da descrição e análise do léxico da obra Crônica de Dom João I, havendo ainda muito a ser examinado quantitativamente e qualitativamente. No entanto, a partir do que já foi lido, separamos alguns exemplos que julgamos serem reveladores das tendências gerais ou mais marcantes do texto.