Entre a norma padrão
e a norma culta escrita
uma análise dos usos lingüísticos
em Luiz Fernando Veríssimo
Jorge de Azevedo Moreira (UFRJ)
Norma culta e norma padrão
Atualmente, o ensino de gramática transcende os limites da sala de aula, sendo divulgado de vários modos: além dos tradicionais livros de correção gramatical, temos lições desse tipo em colunas de jornais e até em veículos midiáticos mais modernos, caso de cd-roms. Tais obras, no entanto, costumam ser criticadas nos meios acadêmicos por apresentarem uma visão bastante dogmática, na medida em que se propõem regras e modelos tradicionais que, em face da língua viva, parecem inusitados. Exclui-se de certa forma, assim, a visão da língua como um instrumento em constante evolução e que abarca inúmeras variações em seu interior. Ademais, não é raro se encontrar nessas obras certo teor preconceituoso, ao se condenarem as variantes ditas de menor prestígio.
Por outro lado, como numa espécie de movimento em sentido contrário, não faltaram nos últimos vinte anos trabalhos que visassem a uma reflexão criteriosa sobre a matéria, mesmo por parte de eminentes autores de obras normativas, caso de Celso Luft com o seu Língua e Liberdade (1985) e Evanildo Bechara, com Ensino da Gramática. Opressão? Liberdade (1988). Essa perspectiva crítica se mostra avultada por teóricos das mais variadas correntes, como Mario Perini, Marcos Bagno, Sirio Possenti e Maria Marta Scherre, embora geralmente se invoque a questão da variação lingüística, particularmente cara à sociolingüística.
Fazendo-se uma apreciação panorâmica de tais trabalhos, percebe-se que não há exatamente o objetivo de eliminar o ensino de uma norma padrão, mas sim de adequá-la aos reais hábitos lingüísticos brasileiros. Essa adequação se mostra necessária pelo fato de que nossas prescrições gramaticais remontam a modelos do português europeu do século XIX, o que explica a defasagem entre as regras ministradas e o emprego efetivo da língua.
Uma justificativa para essa revisão gramatical pode ser dada através da análise de textos escritos por pessoas estimadas como "cultas" pela sociedade, isto é, aquelas detentoras de nível superior: mesmo entre elas, não se costuma notar uma observância completa às regras gramaticais. Esse hiato entre o que se prescreve e o que se produz na escrita dá ensejo para que se diferenciem conceitos tomados como sinônimos, que são as noções de "norma padrão" e "norma culta". A primeira, de caráter idealizado, deve se referir às regras transmitidas pelas obras normativas, enquanto a segunda engloba na verdade uma série de realizações concretas por parte de indivíduos de certo status social – advogados, professores, jornalistas.
A pesquisa em textos escritos por tais pessoas já basta para verificar a diferença entre a norma padrão, idealizada, e a norma culta, objetiva. Isso não quer dizer, contudo, que ambas sejam radicalmente diferentes: muito do que se ensina tradicionalmente na escola ecoa na produção escrita, embora, provavelmente, muito mais por assimilação de uma certa modalidade lingüística por intermédio da leitura do que pela memorização, até certo ponto artificial, de regras.
A fim de demonstrar essa separação entre norma padrão e norma culta efetiva, propomos o exame de certos usos lingüísticos encontrados nos textos de Luis Fernando Veríssimo. A escolha desse autor tem dupla motivação: primeiramente, por se tratar de um dos mais lidos escritores da atualidade, cuja obra se reparte ecleticamente entre artigos jornalísticos de opinião, crônicas, contos e até romances. Em segundo lugar, ao iniciar seu livro Língua e Liberdade, Celso Luft evoca a crônica "O gigolô das palavras", escrita justamente por Verissmo, na qual se discute a real necessidade da gramática para escrever bem. O autor, falando de si mesmo, conclui que só se serve da gramática para evitar os desvios considerados mais estigmatizados; de resto, o artista deve se preocupar muito mais com a criatividade do que com a obediência normativa.
Certamente Veríssimo tem uma postura bem longe do purismo lingüístico, o que não quer dizer, em absoluto, que ele se desvincule totalmente de certos elementos da norma padrão. Mostra-se interessante, portanto, avaliar em quais âmbitos Veríssimo se aproxima dessa norma padrão, mostrando-se mais conservador, e em quais se distancia, assumindo uma posição mais inovadora.
Para esse fim, examinamos três obras suas: Sexo na cabeça (2002), seleção de crônicas; O opositor (2004), romance; e Internacional: autobiografia de uma paixão (2004), narrativa em que trata da história do clube porto-alegrense associando-a a sua vida.
Não buscamos um tratamento estatístico nesses textos, senão alguns exemplos que ilustrem a diferença entre norma padrão e norma culta, procedimento que julgamos suficiente para tecer uma estudo reflexivo sobre a gramática. Tampouco pretendemos chegar a conclusões definitivas sobre o estilo e a linguagem da obra completa de Veríssimo, uma vez que faltaria um recorte mais amplo e aprofundado.
Comecemos por avaliar os elementos mais conservadores, do ponto de vista da norma padrão, encontrados nos textos de Veríssimo.
Aspectos conservadores
de Luis Fernando Veríssimo
Altíssima incidência de clíticos acusativos
De acordo com vários estudos sociolingüísticos, um dos itens gramaticais em que mais evidenciam, na fala, as diferenças entre o português europeu (PE) e o português do Brasil (PB) é o uso dos clíticos acusativos.
No PB falado, é comum que os clíticos acusativos de terceira pessoa sejam substituídos por um pronome tônico (“ele”, “ela”), por uma categoria vazia ou ainda pela repetição do item lexical; na escrita, porém, essa tendência costuma não se confirmar, pois o uso do clítico se mostra a estratégia mais comum para veicular o objeto direto anafórico. Nos textos de Luís Fernando Veríssimo, esse recurso se mostra quase categórico:
E o Matinhos não estava fingindo. O susto quase o matara. Fizeram exames, tudo bem, a mulher pediu para o Matinhos nunca mais assustá-la daquela maneira, e o Matinhos começou a pensar na importância do pensamento contingencial. Sua mulher o teria flagrado não só com a vizinha na cama mas sem uma história pronta. (Veríssimo, 2004b: 51)
A lista de exemplos é imensa, o que deixa às outras estratégias de expressão do objeto direto um número de ocorrências relativamente reduzido. Assim, o apagamento não se mostra muito freqüente, sendo em geral usado em contextos nos quais já se lançou mão de um clítico retomando o mesmo referente, como se nota na passagem abaixo:
O corpo passou a ser definitivamente uma posse: você não apenas o tem como pode mostrar [Æ] à fartura. (Veríssimo, 2002: 33)
Em outros contextos, ao retratar o diálogo de alguns personagens, Veríssimo às vezes evita o clítico, que soaria artificial, e se vale da repetição do item lexical:
– Vai ler o teu livro, vai. Você não disse que era o seu favorito?
– Mas já li o livro várias vezes. (Veríssimo, 2002: 119)
Embora freqüente na fala, pouquíssimas foram as ocorrências de pronome tônico em função acusativa nos textos examinados. Acreditamos que construções como “vi ele”, “escutei ela” e “encontrei eles” são consideradas marcadas, seja em relação à escolaridade ou ao registro, embora se mostrem plenamente naturais na fala das pessoas cultas. No imaginário social, entretanto, estruturas sintáticas dessa natureza na fala de um personagem tendem ainda a ser interpretadas como a indicação de uma norma lingüística menos culta. Em Veríssimo, encontramos essa estratégia sobretudo com verbos causativos e sensitivos. No exemplo seguinte, seria possível haver o uso de duas formas tônicas no último período, mas apenas no sujeito acusativo do verbo "beijar" se verifica esse recurso:
Cheiro de leite morno, era isso. Com um inexplicável toque de baunilha. Quente, cheirosa, apetitosa e emburrada. Nem deixava ele beijá-la na boca. (Veríssimo, 2002: 15)
Um outro ponto interessante a comentar diz respeito à natureza dos clíticos. É verdade que Luis Fernando Veríssimo utiliza-os sobejamente; contudo, o uso anafórico desses clíticos se refere quase que exclusivamente a itens lexicais, conforme os exemplos acima. A utilização do clítico para retomar um predicativo (“Ele o é”), encontrada em escritores do século XIX, inexiste nos textos de Veríssimo que apreciamos. Quanto à anáfora de proposições por parte do clítico, recurso igualmente pouco comum na escrita atual em razão da preferência dada ao demonstrativo "isso", encontramos alguns exemplos esparsos em suas obras:
Se tivesse os polegares, poderia estrangulá-lo. Ele não a vira na igreja nos dias anteriores, mas ela estava lá. Se quisesse atacá-lo de surpresa, o faria. (Veríssimo, 2004a: 67)
Usos pronominais canônicos
Atualmente, a extrema freqüência do forma “você” no PB já lhe garante o status de um verdadeiro pronome de tratamento de segunda pessoa, concorrendo com o “tu”.
Numa linguagem que se pretenda mais próxima da norma padrão, a escolha do “você” se mostra a mais natural, já que o “tu” parece apresentar algumas peculiaridades: com sua concordância padrão, o “tu” afetaria um certo regionalismo por estar muito associado, no imaginário social, ao dialeto do Rio Grande do Sul, embora essa marca morfossintática não se cumpra categoricamente lá; por outro lado, com a concordância de terceira pessoa, como muitas vezes ocorre no Rio de Janeiro, passaria a expressar uma certa coloquialidade, já que em casos assim costuma indicar intimidade entre os falantes.
Em dialetos como o do Rio de Janeiro, é comum que se misturem clíticos, possessivos e formas imperativas próprias do “tu” ao pronome “você”: “Eu já te disse que eu gosto de você e de tua família”, “Me fala onde você mora” etc. Segundo a professora Maria Marta Scherre, em grande parte do país, precisamente nas regiões sul, sudeste e centro-oeste, o imperativo se expressa por formas associadas ao indicativo – e, portanto, próximas às desinências padrão do “tu” – ainda que o pronome mais usado seja o “você”. (Scherre, 2005: 101)
Nos textos de Luis Fernando Veríssimo, contudo, as formas gramaticais associadas a “você” aparecem de modo homogêneo:
– Você não toma notas? Tome notas. Escreva esta história. Faça um livro. Você não se dá conta do que eu estou lhe dando? (Veríssimo, 2004a: 45)
– De quem são [esses sapatos]?
– Como, de quem são? São os seus. Você acabou de tirar. (Veríssimo, 2002: .97)
Em alguns casos, no entanto, a fala dos personagens apresenta a mistura de tratamento, o que é mais de acordo com os reais hábitos lingüísticos de certas regiões:
– Vão pra casa.
– Vai tu. (Veríssimo, 2002: 130)
Preferência de “haver” sobre “ter”, com valor existencial:
É bastante antiga, em nossa idioma, a concorrência entre os verbos “haver” e “ter” com sentido existencial. Entretanto, só é recomendada pela gramática normativa a primeira forma, nesse contexto. Ainda assim, o uso do “ter” existencial já é bem significativo em alguns veículos midiáticos.
Nos textos de Veríssimo opta-se na maioria das vezes pela variante padrão, ou seja, as construções com o verbo “haver”:
Lembro que um dia fui a um circo onde havia um jogo de futebol entre cachorros. (Veríssimo, 2004b: 29)
Há uma foto tirada no quintal de minha casa, em 1977. (Veríssimo, 2004b: 102)
Em poucas situações o autor recorre ao verbo “ter” com esse sentido. Em alguns desses casos, o verbo aparece adjacente à palavra “gente”, formando uma espécie de expressão idiomática:
No futebol, como no sexo, tem gente que se benze antes de entrar e sempre sai ofegante. (Veríssimo, 2002: 46)
De fato, o uso da regra padrão no exemplo acima implicaria o sintagma “há gente”, incomum na fala do PB; a opção mais conveniente seria, então, “Há pessoas”, o que talvez afetasse um ar muito formal para o espírito da crônica em questão.
Passemos agora aos traços mais inovadores, do ponto de vista lingüístico, dos textos de Luis Fernando Veríssimo. Observe-se, contudo, que tais inovações só podem ser assim consideradas em relação à escrita, uma vez que já são normais na língua falada.
Aspectos inovadores de Luis Fernando Veríssimo
Colocação pronominal proclítica
A preferência da colocação pronominal, no que tange ao PB, recai sobre a próclise. Essa tendência resulta em sérios problemas na observância da norma padrão, que é baseada no falar português, essencialmente enclítico, diferença que rende acirrados debates desde o século XIX.
Em razão dessas dificuldades, a regra mais propalada no que diz respeito à colocação pronominal se refere à não-utilização de pronomes átonos iniciando período. Entretanto, Veríssimo, na maioria das vezes, não segue tal recomendação, independente se retrata a fala de um personagem ou se trabalha a voz narrativa:
– Me chame um táxi, por favor. (Veríssimo, 2004b: 88)
Nos aproximamos da mesa. Não havia dúvida. O Polaco estava morto. (Veríssimo, 2004b: 140)
Se mandavam recados pelo alto-falante da quermesse. (Veríssimo, 2002: 85)
É importante salientar que essa possibilidade de início de períodos com clíticos não é irrestrita no PB: de fato, ela não se cumpre com clíticos como “o” e “a” – que, afinal, são cada vez menos usados no Brasil – e não é freqüente com o reflexivo "se", a despeito do exemplo acima. Sintomaticamente, as ocorrências em início de período de “nos” e “se” foram isoladas, mas cabe uma distinção: os pronomes átonos de primeira pessoa do plural aparecem bem menos que o pronome “se”. Este figura, preferencialmente, em posição enclítica:
Especulava-se sobre a preferência clubística de cada um e duvidava-se da honestidade de todos. (Veríssimo, 2004a: 39)
Quanto à posição dos pronomes nas locuções verbais, a gramática tradicional aconselha a ênclise ao verbo auxiliar, o que implicaria o uso do hífen ("Tinha-lhe dito"). Modernamente, no entanto, aceita-se a próclise ao verbo auxiliar ("Tinha lhe dito"), o que está mais de acordo com nossa fala. Com efeito, essa é a forma mais encontrada em Veríssimo:
Vamos nos casar. (Veríssimo, 2002: 88)
Talvez pressentindo que corria perigo, que aquele enorme homem ruivo poderia lhe fazer mal antes que chegassem os seguranças. (Veríssimo, 2004b: 88)
Por outro lado, a próclise provocada pelas chamadas "palavras atrativas", nem sempre se cumpre na escrita do PB, no qual se verifica uma maior liberdade de colocação que no PE. Segue um exemplo de Veríssimo em que se verifica a adoção de uma ênclise, contrariando as prescrições gramaticais:
Quem lembra uma linha de um verso ao se barbear experimenta esse arrepio, essa ‘romaharsa’, ou ‘horripilação’ como a que acometeu Arjuna no Bhagavad Gita quando deparou-se com a epifania de Krishna. (Veríssimo, 2002: 82).
No exemplo acima, a gramática recomendaria a próclise do pronome “se” em relação à forma verbal “deparou”, por se tratar de uma oração subordinada; nesse caso, teoricamente a conjunção “quando” funcionaria como palavra atrativa. No PB, entretanto, próclise e ênclise seriam indiferentes aí.
Utilização não-normativa da partícula "se"
Questões sobre o uso “apropriado” do pronome “se” são freqüentes em livros didáticos e em concursos públicos. Não obstante tais esforços normativos, que propõem que tal pronome seja considerado uma partícula apassivadora em orações com verbos transitivos diretos, uma grande parcela de falantes o encara como um índice de indeterminação do sujeito.
Até certo ponto, tal distinção é pouco significativa, pois no âmbito semântico o elemento responsável pelo processo verbal é ocultado. É apenas no âmbito morfossintático que surgem discrepâncias, e mesmo assim só quando argumento interno ao verbo se encontra no plural. É essa circunstância que os exercícios de gramática costumam explorar, lançando mão de tarefas como a de assinalar a concordância recomendada pela norma padrão. Frases do tipo “Aluga-se apartamentos” e “Alugam-se apartamentos” constituem pares no quais se testa a habilidade do aluno em reconhecer a forma normativamente correta.
Todavia, mesmo na escrita brasileira mais cuidada, as formas com verbo no plural (interpretação do “se” como apassivador) e no singular (interpretação do “se” como indeterminador) se mostram em acirrada concorrência.
Isso explica por que nos textos de Luis Fernando Veríssimo se encontram os dois tipos de construção:
Mais importante, descobriram-se soluções químicas para problemas que antes só eram resolvidos com bruxaria ou prótese, como a impotência. (Veríssimo, 2004a: 133)
Vivia-se um “milagre econômico” mas tinha-se notícias de prisões e torturas. (Veríssimo, 2004b: 90)
No primeiro trecho, o “se” recebe uma clara interpretação de apassivador, o que faz do sintagma “soluções químicas”, argumento interno do verbo “descobrir”, seu sujeito. Por conseguinte, essa verbo deve se apresentar no plural. No segundo trecho temos dois usos da partícula “se”. A interpretação dada à segunda ocorrência, contrariando a norma padrão, é a de indeterminador do sujeito. Nesse caso, o argumento interno do verbo, “notícias de prisões e torturas” é tomado por objeto direto.
E como analisar o primeiro “se” (em “Vivia-se”)? A gramática recomenda que ele seja considerado como uma partícula apassivadora, já que o verbo “viver”, nesse caso, seria transitivo direto. Porém, em face das possibilidades levantadas acima, sobretudo a partir do exemplo que se encontra no próprio trecho selecionado, a classificação do “se” como indeterminador seria lingüisticamente possível.
Numa visão não-normativa, talvez uma proposta interessante seja a de considerar essa partícula como “indeterminadora de agente”, pois num nível semântico é a isso que ela se presta.
Essa tendência de interpretar o “se” como indeterminador do sujeito, ou mesmo como um autêntico sujeito indeterminado, provavelmente explica construções nas quais esse pronome se anexa a verbos no infinitivo. Em Veríssimo, ao lado de construções sintáticas admitidas pela norma padrão, se encontram alguns exemplos em que o “se”figura anexado a infinitivos:
Mas existem outras vinte maneiras de se matar alguém só com as mãos. (Veríssimo, 2004b: 130)
Para os normativistas, o infinitivo já possui um valor semântico que oscila entre o sentido impessoal e o passivo, razão por que consideram errôneo esse uso. Segundo eles, o "se" não exerceria uma função sintática que justificasse sua presença.
Uso de "você" como indeterminador
Estratégia de indeterminação de agente muito usada na língua falada, o uso do pronome “você” encontra sérias restrições na língua escrita, que prefere outras formas, como os pronomes “se” ou “nós”. O escritor gaúcho, no entanto, serve-se bastante desse recurso lingüístico.
Mesmo em seu livro Internacional: autobiografia de uma paixão, em que esperávamos um Luis Fernando Veríssimo mais afeito à norma padrão, dado o valor documental dessa obra, é abundante o uso do “você” indeterminador:
Vendo o Figueroa jogar totó como se valesse a vida, você entendia as vitórias do Inter. (Veríssimo, 2002: 103)
Nas crônicas, tal expediente também aparece com elevada freqüência. O exemplo abaixo apresenta uma sutil diferença morfossintática com implicações semânticas, ao contrapor o singular e o plural desse pronome. O singular se refere aos homens em geral; o plural, aos casais, também genericamente:
– Isso. Sabia de cor. Claro que aquilo ajudava. Aproximava vocês. Você mostrava que era um cara sensível e que ela se convencia de que, gostando dos mesmos versos, vocês eram feitos um para o outro. (Veríssimo, 2002: 90-91)
Veríssimo naturalmente também se serve muito do pronome “se” para indeterminar o agente; não notamos o mesmo com o pronome “nós”, que talvez seja mais próprio de trabalhos acadêmicos e científicos, ou ainda de redações escolares.
À guisa de conclusão, podemos verificar, a partir dos exemplos tirados de Luis Fernando Veríssimo, que as efetivas tendências escritas do PB não se confundem inteiramente nem com a norma padrão, idealizada e muito mais ligada ao PE, nem às inúmeras variantes da língua falada. Os textos escritos representam uma modalidade própria, permanentemente ladeada pelas coerções normativas e pela evolução própria do sistema lingüístico. O aprendizado da gramática na produção textual é sempre questionado, mas acreditamos que, se for direcionado por um ponto de vista reflexivo, em que se leve em conta não só a teoria mas também o uso, poderá dar ao aluno um visão enriquecida da língua, instrumento privilegiado de comunicação.
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