Trajetória do texto
no ensino de língua estrangeira
entre a prática docente
e as orientações institucionais

Rafael dos Santos Lazaro (UERJ)
Cristina Vergnano Junger (UERJ)

 

Introdução

No que se refere à estrutura de organização curricular no Brasil, em busca de convergências no trabalho de ensino-aprendizagem, os governos (federal, estadual e municipal) elaboram e distribuem documentos que têm como objetivo nortear os currículos e seus conteúdos mínimos, como apresenta o Artigo 9º da LDB 9394/96 (Brasil, 1997), e o trabalho docente. O mesmo Artigo afirma, ainda, ser essa uma competência da União em colaboração com os estados, Distritos Federal e Municípios. Dentro dessa perspectiva temos, norteando nossa sala de aula, a LDB e os PCN´s como documentos de abrangência nacional. No município do Rio de Janeiro, temos ainda o Multieducação que, em conjunto com os já citados documentos, propõe e norteia o desenvolvimento de cada disciplina dentro das escolas municipais dessa cidade.

O foco em um trabalho sistemático com o desenvolvimento da habilidade leitora é notável nos dois documentos utilizados na pesquisa que desenvolvemos: PCN´s do Terceiro e Quarto Ciclos do Ensino Fundamental (Brasil, 1998) e Multieducação (Rio de Janeiro, 1996). Neles, essa habilidade lingüística e comunicativa está descrita segundo uma abordagem teórico-metodológica socio-interacional (Brasil, 1998; Rio de Janeiro, 1996; Moita Lopes, 1996). Ou seja, o leitor é um sujeito ativo, que interage com o autor e o texto, lançando mão não apenas do material impresso, mas de seus conhecimentos enciclopédicos. A defesa da leitura como habilidade mínima a ser desenvolvida no processo de ensino-aprendizagem de LE atende ao objetivo de desenvolver o engajamento discursivo dos educandos, de maneira a contribuir para su inserção crítica, autônoma e consciente na sociedade (Brasil, 1998).

Esse destaque à leitura em Língua Estrangeira (LE) observado em diferentes níveis de ensino, bem como crescimento do espanhol como língua estrangeira (E/LE) no Brasil, aumentam o interesse por estudos específicos sobre o funcionamento do ensino-aprendizagem do processo leitor em língua espanhola nas instituições brasileiras. Estes estudos motivam, por sua vez, a criação, adaptação e inserção de novos desenhos metodológicos para o desenvolvimento de pesquisas em lingüística voltadas para o campo específico do ensino-aprendizagem de E/LE.

Tratamos aqui do desenho metodológico de uma pesquisa de caráter qualitativo que aborda o ensino de E/LE nas escolas municipais do Rio de janeiro[1]. Em nosso estudo, além da questão dos documentos institucionais e sua relevância para a atuação docente, buscamos identificar se a forma como o professor de E/LE desenvolve a leitura em sua sala de aula (caso o faça) é influenciada, ou não, pela maneira como a aprendeu em seu curso superior.

Para identificar e discutir o trabalho com leitura em E/LE nas salas de aula da rede pública municipal carioca, percorremos alguns passos e escolhas metodológicas. Neste artigo, propomos um recorte no escopo da pesquisa, cujo propósito é discutir e relacionar criticamente formação universitária e prática docente do professor de Ensino fundamental de espanhol. Optamos por um enfoque na metodologia de investigação. Apresentamos, então, a delimitação de sujeitos e de corpus, a construção de um roteiro de entrevista e tecemos comentários sobre o cruzamento dessas informações para que se trace o perfil do professor de E/LE em um estudo de caso.

 

Delimitando Informantes

O primeiro critério para a escolha dos informantes foi que esses fossem professores do Rio de Janeiro. Este critério baseou-se na representatividade da cidade para o contexto de ensino-aprendizagem do espanhol, em nosso estado, pois apresenta um número significativo de cursos de nível superior formadores de professores de E/LE, somando atualmente 14 . Esse quantitativo, assim como as informações sobre as instituições de ensino superior (IESs) necessárias para o cruzamento dos dados utilizados para traçar o perfil dos professores do Ensino Fundamental em nosso estudo, foram colhidos junto à pesquisa “Leitura e ensino de espanhol como língua estrangeira: uma abordagem integrada quantitativo-qualitativa”, desenvolvida desde julho de 2003, no programa Prociência da UERJ. Nesta, a resposta a questionários com assertivas sobre leitura e ensino de E/LE por docentes universitários de espanhol e a análise dos programas das Universidades que oferecem o curso de formação de professores desse idioma, serviram como base para que se discutisse como o ensino de leitura em espanhol LE se insere nas IES do estado.

O recorte para um trabalho somente com informantes do município do Rio de Janeiro apresenta as seguintes justificativas:

1-       A experiência anterior do pesquisador como bolsista de ID, trabalhando nas escolas municipais cariocas, viabilizou uma melhor definição do problema.

2-       O quantitativo de vagas oferecidas para professores de espanhol nos últimos concursos realizados pela SME, demonstra o crescente interesse da rede em aumentar a oferta do estudo de E/LE entre seus alunos.

3-       O curto espaço de tempo (2 anos) do mestrado não nos permitiria trabalhar com grande número de dados e informantes;

4-       O município do Rio de Janeiro possui com um documento norteador próprio, elaborado a partir das necessidades de sua rede, o já citado Multieducação. Esse documento traz uma seção especial destinada a orientações para o trabalho com LE, que seguem perspectivas semelhantes, em diversos aspectos, aos PCNs.

A experiência anterior nos mostrava as dificuldades em realizar pesquisas com sujeitos (Vergnano Junger, 2005). A rede municipal de ensino do Rio de janeiro possui um quantitativo de 178 escolas que oferecem espanhol[2]. Por motivos já esclarecidos, fazia-se necessário estabelecer mais um recorte entre as escolas e professores participantes da pesquisa. O município está dividido em 10 regiões de ensino, as chamadas CREs. Cada CRE abrange um certo número de bairros cariocas agrupados, de maneira geral, por sua proximidade. Decidimos entrevistar um informante de cada CRE para, desta maneira, estudarmos casos das diferentes realidades de sala de aula do município.

É importante destacar que se trata de uma pesquisa qualitativa, logo seu objetivo não é esgotar os elementos que permitam uma caracterização da cidade em termos de ensino de espanhol. Além disso, essa comparação é ilustrativa de realidades possíveis, não pretendendo dar conta de modelos de ensino-aprendizagem "regionais".

 

Delimitando Corpus

Delimitados os informantes, a próxima etapa foi definir que tipo de material comporia o corpus da pesquisa. Nossa intenção era perceber como os professores ensinam espanhol LE e, dentro desse ensino, se existe e a dimensão do espaço reservado para a leitura, como é recomendado pelos documentos norteadores. Para isso, definimos alguns métodos para recolher informações sobre o trabalho desses professores.

Primeiramente, entramos em contato com os mesmos através de uma carta, que inclui informações sobre o estudo e o consentimento livre e esclarecido. Uma das instruções contidas na carta era que o professor, no dia do encontro com o pesquisador, levasse consigo exemplos de materiais correspondentes a atividades que esse acharia relevantes para mostrar como ocorre seu trabalho de ensino de E/LE em sala de aula. Além disso, era pedido que levassem exemplos de seus planos de aula.

Elegemos, também, alguns materiais que retratam diferentes visões de metodologias de ensino de LE e atividades com texto, para apresentar durante a entrevista a esses professores-informantes. Optamos por materiais de livros didáticos, pois esses circulam amplamente no ensino de LE, mesmo quando não são adotados pela escola, sob a forma de fragmentos em apostilas confeccionadas pelos próprios professores.

Um outro fator que motivou a apresentação desses exercícios é que, geralmente, os livros didáticos assumem uma abordagem de ensino de LE determinada e pretendem que essa escolha se reflita nas atividades que propõem. Como tratamos do 3º e 4º ciclo do Ensino Fundamental, escolhemos trabalhar somente com edições desses materiais que se destinassem ao nível intermediário de ensino. Para essa seleção, foram lidos trabalhos que tratavam de diferentes enfoques e metodologias (Richards & Rogers, 1998) e escolhidos, entre os livros didáticos, exemplos que se enquadrassem às metodologias mais utilizadas para o ensino de E/LE.

Para registrar o encontro com esses professores, escolhemos como procedimento a entrevista. A análise da entrevista-piloto nos mostrou que esse meio de registro, como esperávamos, permitia que os informantes colocassem suas opiniões pessoais e crenças sobre os pontos discutidos na pesquisa de uma forma mais aberta e menos econômica que nos questionários. Assim, nos pusemos em contato com detalhes importantes para o desenvolvimento do estudo qualitativo. A forma como foram cruzadas essas informações, com o objetivo de traçar o perfil dos professores, está disposta no item 5 desse artigo.

 

Entrevistas

Entendemos, no processo de pesquisa acadêmica, a entrevista como um sistema complexo, que exige uma série de reflexões para a construção de um roteiro correspondente aos objetivos traçados pelo pesquisador. Após a etapa de confecção do roteiro da entrevista, outros aspectos devem ser considerados, tanto na interação com o informante, como na escolha e retirada das informações obtidas por meio da entrevista.

A complexidade aqui considerada pode ser ilustrada pela problematização do tema, desenvolvida em três tópicos por Rocha (1998). No primeiro, destaca-se a preparação da entrevista. Nesse momento, são considerados os saberes que possuímos sobre outro (informante) relacionados aos objetivos do estudo. Isso orienta o pesquisador na construção de um roteiro que conduzirá uma interação antecipada (id. ibid.). No trabalho que desenvolvemos, as perguntas do roteiro foram formuladas com base em algumas hipóteses que tínhamos sobre a leitura no ensino de E/LE. Essas hipóteses poderão ser claramente verificadas no quadro em anexo, onde apresentamos detalhadamente a relação entre as perguntas do roteiro seus objetivos, problemas e hipóteses de pesquisa.

O segundo ponto é a interação entrevistador-entrevistado no momento da realização da entrevista, quando aparecerão textos já produzidos anteriormente por ambos em diferentes situações de enunciação (id.ibid). No caso de nossa pesquisa, esses textos correspondem aos que são construídos pela vivência do professor na sua sala de aula. Igualmente se consideram aqueles produzidos em outras situações relativas ao trabalho docente. Admitimos que, por exemplo, a maneira como o professor se relaciona com os documentos institucionais (PCN´s e Multieducação) e suas escolhas por certas tendências metodológicas podem aparecer na entrevista sob forma de “textos”, que já existiam. O que fazemos é recuperar, com a entrevista, essa “massa de textos”, essa polifonia e interdiscursividade, sobre a qual não temos acesso imediato (id. ibid.).

O terceiro ponto corresponde ao momento que segue à entrevista, quando o entrevistador decide sobre o corpus que analisará. Cabe destacar que, segundo a perspectiva dos estudos enunciativos de Rocha (1998), diante de todos os dados obtidos pela entrevista, existe uma “priorização” de determinados fragmentos em detrimento de outros. Isso nos mostra uma concepção de entrevista não como um corpus de análise, “mas sim como um campo de circulação de determinados discursos, campo esse que será recortado conforme os objetivos da pesquisa” (Rocha., 1998).

A elaboração do roteiro de nossa entrevista foi precedido por um questionário. Por meio deste, coletamos informações iniciais para identificação do informante: nome, IES onde se formou na graduação e a existência ou não de cursos de pós-graduação, além de especificações sobre estes. Utilizamos um roteiro de entrevista com perguntas sobre os diferentes subtemas das pesquisa. Por essas características, definimos nossa entrevista, segundo Casanova (1995: 22) como:

1. Semi-Dirigida[3], pois colocamos perguntas que servem como ponto de referência para que os informantes falem sobre suas crenças e experiências.

2. Fechada[4], pois já tínhamos algumas hipóteses sobre o ensino de E/LE e queríamos verificá-las.

Nessas entrevistas, pedimos aos professores que falassem sobre o porquê da escolha dos materiais que nos trouxeram como exemplo de seu trabalho em sala de aula. Depois, lhes oferecemos nossa seleção de materiais e pedimos que escolhessem, dentre eles, quais usariam em sua sala de aula. Além disso, perguntamos sobre o conhecimento dos docentes sobre os PCN´s de 3º e 4º ciclos e o Multieducação e a influência desses documentos em suas práticas. Nossa análise partiu do cruzamento dessas informações.

A partir dessas reflexões, construímos o quadro (em anexo) que abrange objetivo, problema, hipótese e pergunta do roteiro[5]. Cada linha representa uma pergunta. Na primeira coluna, tratamos dos objetivos que queremos alcançar com cada pergunta. Na segunda, tratamos dos problemas específicos da pesquisa que procuramos solucionar com as questões construídas para o roteiro. A terceira coluna trata das hipóteses. Na quarta e última coluna, encontramos as perguntas que fazem parte do roteiro de entrevista. Além das perguntas, acrescentamos ao roteiro alguns tópicos como possíveis temas que esperamos encontrar nas respostas dos informantes.


 

Análise: O cruzamento de informações

No planejamento metodológico da pesquisa, a etapa de comparação das escolhas e respostas de cada professor permite traçar o perfil da visão de ensino de LE desses profissionais. Retomando, então, alguns procedimentos da coleta de dados a partir do piloto, destacamos sua importância para o processo de análise e elaboração de conclusões:

a)            Os materiais que os informantes trouxeram demonstram, pelos métodos utilizados nas atividades, a visão que esses guardam sobre ensino de LE. O fato de falarem sobre a escolha dos materiais na entrevista, permitiu comprovar ou rejeitar os pressupostos que tínhamos somente observando o material apresentado, sem a opinião dos informantes.

b)           Para fins de comprovação e para evitar vieses quando traçamos o perfil dos docentes, levamos materiais selecionados a partir diferentes concepções de ensino e línguas e pedimos, novamente, que esses profissionais escolhessem os mais compatíveis com sua prática e falassem sobre essas escolhas.

c)            O perfil desses professores foi comparado com as propostas de ensino de LE encontradas nos PCN´s e no Multieducação, somando-se à discussão sobre foco ou não do processo de ensino-aprendizagem de E/LE na leitura

d)           Um dos critérios ao escolher dentre a população alvo os sujeitos que fazem parte de nossa pesquisa foi sua formação. Tento em mãos as IES de origem desse sujeito, a pesquisa partiu para o estágio de cruzamento de informações. As entrevistas, assim como as propostas de atividades, foram analisadas, buscando, como já foi dito, encontrar a visão sobre ensino de LE que o professor possui. O resultado dessa análise foi cruzado com as informações sobre como (e se) a IES de origem desse informante trabalha o ensino de leitura de espanhol LE.


 

Considerações finais

Destacamos, neste trabalho, a importância da sistematização de um desenho metodológico para uma pesquisa lingüística. No caso específico da pesquisa que desenvolvemos, observamos algumas nuances da metodologia desenvolvida para um estudo qualitativo e de caso. Falamos dos critérios utilizados para a delimitação dos sujeitos informantes da pesquisa, da escolha e delimitação do corpus, assim como da entrevista como uma forma de coleta de dados. No procedimento de coleta de dados, explicitamos aspectos do quadro construído com o objetivo de orientar o pesquisador e seu leitor, sobre o processo de construção do roteiro de entrevista. Além disso, expusemos alguns critérios de análise que foram utilizados e de como foi realizado o cruzamento das informações dos corpora (relatos das entrevistas, materiais didáticos escolhidos/fornecidos pelos professores, características do curso universitário de sua formação inicial e documentos institucionais).

Como optamos neste artigo pelo foco na metodologia de uma pesquisa lingüística, não apresentamos detalhes dos resultados encontrados. Cabe ressaltar, no entanto, que os procedimentos empregados no piloto demonstraram ser eficazes para os objetivos do estudo, favoreceram os ajustes no roteiro da entrevista, seleção e apresentação dos materiais apresentados aos informantes. Também pudemos constatar a coerência de nossas hipóteses, no que se refere à associação possível entre escolha de materiais e concepção de ensino-aprendizagem de E/LE, manifestadas no discurso do informante piloto. Um aspecto que ainda necessitará análise mais profunda é a relação entre as crenças e práticas dos professores e os insumos recebidos durante suas formação acadêmica inicial. Ainda assim, tal perspectiva parece favorável, em função do material já coletado até o momento.

 


 

Referências Bibliográficas

BRASIL. Lei de diretrizes e bases da educação nacional. Minas Gerais: Delegacia do MEC, 1997.

––––––. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental – Língua Estrangeira. Brasília. Secretaria de Educação Fundamental/MEC, 1998.

CASANOVA, Maria Antonia. Metodología para la recogida de información. Madrid: La Muralla, 1995.

DAHER, M. del C.F.G. Quando informar é gerenciar conflitos: a entrevista como estratégia metodológica. In: The ESPecialist. vol 19, nº especial, São Paulo:Educ, 1998, pp.287-304

RICHARDS, J; RODGERS, T.S. Enfoques y métodos en la enseñanza de idiomas. Cambridge: CUP, 1998.

RIO DE JANEIRO, Multieducação: núcleo curricular básico. Rio de Janeiro: SME, 1996.

ROCHA, D.; DAHER, M. C. F. G.; SANT'ANNA, V.L. A. A entrevista em situação de pesquisa acadêmica: reflexões numa perspectiva discursiva. In: Revista Polifonia 8. Cuiabá: EdUFMT, 2004, p. 161-180.

VERGNANO JUNGER, Cristina. Investigación lingüística sobre comprensión lectora: una propuesta de diseño metodológico. In: La Habana, 2005 – IV conferencia Internacional de Lingüística. La Habana: Instituto de Literatura y Lingüística, 2005. Publicación electrónica en CD-ROM.


 


 

[1] A pesquisa citada é  Leitura em E/LE: uma comparação entre o nível fundamenta e superior de ensino vinculada ao programa de pós-graduação em Letras (subárea de concentração em lingüística) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

[2] Dado correspondente ao início da pesquisa, outubro de 2004.

[3] Casanova (1995) faz uma oposição entre essa definição e a de livre e dirigida. Na primeira, o entrevistador de abstém de fazer perguntas com objetivo de reorientar a pesquisa. Na segunda, o discurso da pessoa entrevistada constitui-se exclusivamente de respostas  a questões preparadas antecipadamente.

[4] Casanova (1995) opõe esse tipo de entrevista à aberta, que tem função de fazer surgir hipóteses.

[5] Quadro baseado no exemplo retirado de Daher ( 1998)