A INTERTEXTUALIDADE EM “MARIA, MARIA”
Fátima Marinho Fabrício Monteiro (UERJ)
Introdução
Os estudos da linguagem, nos meios acadêmicos, têm avançado consideravelmente, e, sendo a intertextualidade um recurso muito utilizado nos diversos meios de comunicação, teve o seu conceito bastante ampliado; o que me autoriza a falar em intertextualidade sob a ótica da Análise do Discurso (doravante AD). Intertextualidade pertence ao léxico atual da teoria da literatura, criada pela semioticista Júlia Kristeva em 1969. Como propriedade constitutiva de qualquer texto, é uma variante de interdiscursividade.
Para ser objetiva, farei a fundamentação teórica destacando considerações de alguns analistas do discurso de linha francesa.
Tratando do verbete “intertextualidade”, P. Charaudeau e D. Maingueneau (2004: 288) consideram que:
Esse termo designa ao mesmo tempo uma propriedade constitutiva de qualquer texto e o conjunto das relações explícitas ou implícitas que um texto ou um grupo de textos determinado mantém com outros textos. Na primeira acepção, é uma variante de interdiscursividade.
Na página seguinte, os dois analistas mencionam que para Maingueneau (1984: 83):
... a intertextualidade do discurso científico não é a mesma que a do discurso teológico. Além disso, elas variam de uma época para outra. Pode-se distinguir uma intertextualidade interna (entre um discurso e aqueles do mesmo campo discursivo) e uma intertextualidade externa (com os discursos de campos discursivos distintos, por exemplo, entre um discurso tecnológico e um discurso científico).
Koch (2003) defende a idéia de que a forma de se estabelecer intertextualidade é bastante variada e, retomando um trabalho editado em 1986, distingue a intertextualidade em: sentido amplo e sentido restrito. Para este trabalho, só o primeiro sentido nos interessa. Koch afirma que:
A intertextualidade em sentido amplo, condição de existência do próprio discurso, pode ser aproximada do que, sob a perspectiva da AD, denomina-se interdiscursividade (ou heterogeneidade constitutiva, segundo Authier, 1982). É nesse sentido que Maingueneau (1976: 39) afirma ser o intertexto um componente decisivo das condi-ções de produção: “um discurso não vem ao mundo numa inocente solitude, mas constrói-se através de um já dito em relação ao qual toma posição.” (2003: 60)
A autora continua citando Pêcheux (1960), Verón (1980), Van Dijk & Kintsch (1983), que ratificam sua teoria de intertextualidade de sentido amplo, e conclui, concordando com Kristeva (1974: 60), quando esta afirma: “Qualquer texto se constrói como um mosaico de citações e é a absorção e transformação de um outro texto”.
Sendo intertextualidade uma variante de interdiscursividade, cabe acrescentar Bakhtin que sempre defendeu a idéia de que não há discurso autônomo. Suportado por toda uma intertextualidade, o discurso porta muitas vozes, geradoras de vários textos que se entrecruzam no tempo e no espaço.
Assim, saber como os discursos funcionam é colocar-se na encruzilhada de um duplo jogo da memória: o da memória institu-cional que estabiliza, cristaliza, e, ao mesmo tempo, o da memória constituída pelo esquecimento que é o que torna possível o diferente, a ruptura, o Outro.
Sendo o sujeito discursivo afetado pela história, a Psicanálise o desloca da noção de homem para a de sujeito, e este se constitui na relação com o simbólico, na história. Afetado pelo real tanto da língua quanto da história, funciona por meio do inconsciente e pela ideologia. Como condição para a constituição do sujeito e dos sentidos, a ideologia e o inconsciente são estruturas-funcionamento.
Sobre o trabalho ideológico, Orlandi (2003: 49) diz:
... é um trabalho da memória e do esquecimento pois é só quando passa para o anonimato que o dizer produz seu efeito de literalidade, a impressão do sentido lá: é justamente quando esquecemos quem disse “colonização” que o sentido de colonização produz seus efeitos.
O sujeito discursivo é pensado como “posição”. Não é uma forma de subjetivação, mas um “lugar” que ocupa para ser sujeito do que diz. Posso falar da posição mãe, esposa, professora... O que disser derivará seu sentido, em relação à formação discursiva (doravante FD) em que inscrever minhas palavras, equivalentemente a outras falas que também o fazem da mesma posição. Pode-se até dizer que não é a mãe quem fala, mas sua posição, e isto significa, atribuindo identidade: a de mãe. O sujeito ocupa seu lugar enquanto posição sem ter acesso direto à exterioridade que o constitui. Segundo Orlandi (2003), “No discurso, só uma parte do dizível é acessível ao sujeito, pois mesmo o que ele não diz (e que muitas vezes ele desconhece) significa em suas palavras”.
Considerando a opacidade da linguagem, a AD discute o “como o texto significa”. A ela não interessa o “o que significa”. Uma vez que o vê como tendo uma materialidade simbólica própria e significativa e uma espessura semântica, o texto é concebido em sua discursividade, não é tratado apenas como ilustração ou documento de algo que já está sabido em outro lugar. Ela visa à compreensão de como um objeto simbólico produz sentidos, como ele está investido de significância para e por sujeitos, indo além do que fica na superfície das evidências.
CONSIDERAÇÕES SOBRE ALGUNS CONCEITOS
DA ANÁLISE DO DISCURSO (AD)
Formação Discursiva (FD)
Para a AD os sentidos são historicamente construídos, e o conceito de FD é o dispositivo que desencadeia o processo de transformação na concepção do objeto de análise da AD. Segundo Foucault (1969), formação discursiva é:
Um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço que definiram em uma época dada, e para uma área social, econômica, geográfica ou lingüística dada, as condições de exercício da função enunciativa.
Formação Ideológica (FI)
Uma FI comporta necessariamente mais de uma posição capaz de se confrontar, contudo, as forças não precisam estar a rigor em confronto. Elas podem estabelecer entre si relações de aliança ou de dominação.
Cada formação ideológica constitui um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem “individuais”, nem “universais” mas relacionam-se mais ou menos diretamente a posições de classe em conflito umas com as outras. (Mussalim, 2003 : 124)
A Heterogeneidade no Discurso
Mussalim (2003:127) também lembra que:
Para Bakhtin, o discurso, cujo dialogismo se orienta para outros discursos e para o Outro da interlocução, instaura-se numa perspectiva plurivalente de sentidos, bem como a própria palavra que, pelo fato de ser atravessada por sentidos constituídos historicamente, não é monológica, não é neutra, mas atravessada pelos discursos nos quais viveu sua existência socialmente sustentada.
Ideologia
Na concepção discursiva, a ideologia não é consciente, é efeito da relação do sujeito com a língua e com a história na relação necessária para que se signifique. Só há língua e história conjugadas pelo efeito ideológico, pela referência ao “(inter) discurso”. Para a AD, o discurso é a conjugação necessária da língua com a história, produzindo a idéia de realidade.
Interdiscurso
O interdiscurso – a memória discursiva – é definido por sua objetividade material contraditória. Esta, como diz Orlandi (2004: 39), retomando M. Pêcheux (1988):
Reside no fato de que algo fala sempre antes, em outro lugar e independentemente, isto é, sob a dominação do complexo das FIs. É isto que fornece a cada sujeito a sua ‘realidade’ enquanto sistema de evidências e de significações percebidas e aceitas experimentadas. Aí se explicita o processo de constituição do discurso: a memória, o domínio do saber, os outros dizeres já ditos ou possíveis que garantem a formação (presentificação) do dizer, sua sustentação.
A noção de sentido para a AD
Apesar de os sentidos possíveis de um discurso estarem preestabelecidos, eles não são constituídos a priori, isto é, não existem antes do discurso. O sentido não existe em si, ele vai sendo determinado simultaneamente às posições ideológicas que vão sendo colocadas em jogo na relação entre as FDs que compõem o interdiscurso. No espaço de circulação entre a FD e a FI é que reside o sentido. Ele não é o único visto que se dá num espaço de heterogeneidade, pois o Outro atualiza-se, também, por meio da explicação de um duplo (ou múltiplo) sentido das palavras. O sentido, contudo, é necessariamente demarcado.
Uma leitura crítica, uma análise discursiva, requer a interação do leitor com o texto. A interação vai depender dos saberes sobre o mundo, um saber sobre o enunciador e um saber sobre o pano de fundo cultural da sociedade de onde emerge o discurso, entre outros, além do domínio lingüístico. Caso o leitor não tenha essas habilidades, fará uma leitura ingênua, deixando, assim, de se deleitar com o requinte da arte de escrever de que são dotados os nossos bons compositores.
RELIGIOSIDADE MINEIRA
Oh, Deus salve o oratório,
Onde Deus fez a morada,
Oiá, meu Deus
Onde Deus fez a morada, oiá
Onde mora o cálice bento
E a hóstia consagrada (Milton Nascimento)
Na voz dos seresteiros, ou nas mãos dos artesãos anônimos, o traço religioso da cultura mineira está sempre presente. Uma fé que, desde os primeiros tempos da colonização, vem edificando igrejas e esculpindo santos cujo valor documental, qualidade artística, originalidade e quantidade testemunham silenciosamente a religiosidade popular cuja imaginária se destaca. Se na vinda do Papa João Paulo II ao Brasil, ele tivesse dito em Minas o que disse no Rio de Janeiro, leigos teriam retrucado: “Deus é mineiro, aqui fez a sua morada, oiá”.
Segundo o historiador Célio Macedo Alves, a religiosidade mineira foi moldada por contornos populares no início da capitania, com a chegada dos primeiros bandeirantes. Assim, mineradores e escravos chegavam, formando os primeiros núcleos humanos, compostos de pessoas brancas e negras, vivendo em arraiais encravados nos vales entre as montanhas mineiras, onde o culto dedicado aos santos e à Virgem Maria, principalmente este, assume características bastante peculiares.
Roger Bastide, um estudioso do assunto, entende que a religião do colonizador sobressaiu-se à africana, porém, não a substituiu, por isso, criaram-se irmandades, onde brancos, negros e mestiços (entre livres, alforriados e escravos) atendiam à representação social pregada pela Igreja, embora o clero, devido à “preocupação” com o ouro, quase não se dedicasse, em Minas, à Igreja, que foi fortalecida pelos leigos.
As irmandades dos negros, onde a religiosidade da África se juntou e se fundiu com a do branco, adquiriram o direito de resgatar escravos. Isso ganhou força com Nossa Senhora das Mercês, tida pelos irmãos como redentora dos cativos.
Essas confrarias foram as principais promotoras das suntuosas procissões que lotavam as ruas estreitas da localidade. Em 1733, houve a mais expressiva solenidade pública da América Portuguesa – o tríduo (espaço de três dias) – que consistiu na transladação do Santíssimo Sacramento da Igreja de Nossa Senhora do Rosário para a inauguração da nova matriz de Nossa Senhora do Pilar, em Vila Rica. Este tipo de evento costumava promover atenção tanto na esfera sacra como no âmbito profano, algo corriqueiro numa sociedade praticante da religiosidade.
As igrejinhas construídas pelos negros eram sempre dedicadas à Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Onde houvesse escravo minerando, havia um orago ao rosário de Nossa Senhora. Eles tinham uma especial devoção pela santa, por São Benedito e por outros santos de cor.
Hoje, nas cidadezinhas, sempre há procissões pelas ruas e, diariamente, leigos vão à igreja rezar o terço, havendo padre ou não.
Fundamentada a religiosidade, destaco fragmentos de uma entrevista que Milton Nascimento deu à Cliquemusic, durante uma temporada em Hamburgo, em 2004, quando falou do significado de Minas em sua vida.
A gente tem um ritmo completamente diferente, com todos os tipos, até o tipo de dança, que é uma coisa misturada com a cultura indígena, com a cultura branca, como o cateretê, a catira, estas coisas todas, que as pessoas dançam e só o barulho dos pés ou dos sapatos no chão já é uma coisa. (...) Só o barulho do trem já tem o seu ritmo. Ainda tem o eco das montanhas (...) Eu ficava deliciado em subir em um morro, gritar e ouvir minha voz, sumindo várias vezes naquele mar de montanhas.
Imagine a cena de Milton Nascimento cantando no alto da montanha... É como se ele cantasse acompanhado por um coral formado pela miscigenação que edificou e mantém a religiosidade popular, característica do povo mineiro, que “vivendo” ou “agüentando” mantém-se firme na fé em Maria, a grande mãe protetora que não deixa os filhos desamparados. Quando Milton canta, ecoa das entranhas da Terra (Mulher, Mãe, Maria): “Oiá, meu Deus”.
OS COMPOSITORES DE “MARIA, MARIA”
Os autores da letra são mineiros “da gema”, embora Milton Nascimento tenha nascido no RJ e ido com os pais adotivos para Três Corações com quase dois anos. Fernando Brant é de Poços de Caldas. Na década de 60, conheceram-se, em Belo Horizonte onde foram cursar o Ensino Superior. Na época, formou-se um grupo de talentosos mineiros de famílias tradicionais de classe média. Liderados por Milton, esses jovens tinham grande interesse por assuntos culturais e políticos, temas privilegiados em suas letras. O jornalista e advogado Antônio Lemos Augusto fala da influência da religiosidade mineira na musicalidade barroca dos séculos passados e na grande parte das composições da MPB. Segundo ele, o repertório de Milton Nascimento está repleto da religiosidade mineira popular.
Os compositores retratam, em sua poesia, valores como amizade, esperança, lealdade e fé. Nos anos 70, Milton, teve algumas letras censuradas por conta do regime militar, pois suas letras já exaltavam, além da natureza, o ser humano e o subjetivo da vida.
“Maria, Maria” foi gravada no histórico LP duplo “Clube da Esquina 2”, em 1978. Sem acessar a memória discursiva e contextualizando a letra, ela nos permite outras leituras. Levando em conta, porém, a análise discursiva, a seleção vocabular enfatiza a questão da força, da valentia, da perseverança e da fé, características da Virgem Maria, legadas pela Graça divina às mulheres de sua terra.
ANÁLISE DA LETRA
Retomando Authier-Revuz (1990: 29): “... sempre sob as palavras, ‘outras palavras’ são ditas: é a estrutura material da língua que permite que, na linearidade de uma cadeia, se faça escutar a polifonia não-intencional de todo discurso.”, passo à análise do corpus que é uma belíssima canção.
MARIA, MARIA
(Milton Nascimento)
Maria, Maria
É um dom, uma certa magia
Uma força que nos alerta
Uma mulher que merece viver e amar
Como outra qualquer do planeta
Maria, Maria
É o som, é a cor, é o suor,
É a dose mais forte e lenta
De uma gente que rir quando deve chorar
E não vive apenas agüenta,
Mas é preciso ter força
É preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem trás no corpo a marca
Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria
Mas é preciso ter manha
É preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem trás na pele essa marca
Possui a estranha mania
De ter fé na vida
A AD tem uma proposta de construção de um dispositivo da interpretação. Segundo Orlandi (2003):
Esse dispositivo tem como característica colocar o dito em relação ao não dito, o que o sujeito diz em um lugar com o que é dito em outro lugar, o que é dito de um modo com o que é dito de outro, procurando ouvir, naquilo que o sujeito diz, aquilo que ele não diz mas constitui igualmente os sentidos de suas palavras.
Assim, como não há um discurso fechado em si mesmo, posso afirmar que a letra “Maria, Maria” se estabelece na relação com um discurso anterior presente em versículos da bíblia[1]. Para estabelecer a intertextualidade entre os textos, o leitor deve relacionar-se com os diferentes processos de significação que há na letra, os quais são função da historicidade, ou seja, da história do(s) sujeito(s) e do(s) sentido(s) do texto enquanto discurso. A letra é atravessada por diferentes FDs, como: FD social, FD política e FD religiosa. “Sem esquecer que todo dizer discursivamente é um deslocamento nas redes de filiação (históricas) de sentido” Pêcheux (1983).
Os laços semânticos entre sofrimento e libertação; “rir” e “chorar”; “vive” e “agüenta”; “sonho” e “fé”; “força”, “raça” e “gana”; “som”, “cor” e “suor”; “Maria” e “Maria” organizam o domínio de significação da religiosidade popular e as relações da Igreja e/ou irmandades com os movimentos político-sociais. O significado e o peso do nome Maria durante toda a existência dos cativos, desde a colonização e a construção das imagens, autoriza-me a fazer a leitura de uma posição religiosa cristã.
Há na letra um incentivo de libertação através da fé. Segundo Orlandi (2004: 104), “A libertação é condição de fé: pois ‘no Terceiro Mundo (a fé) se confronta com a pobreza como opressão”.
A letra exemplifica o fato de a opção pelos pobres ser um critério de universalidade e de credibilidade para o cristianismo (“Quem trás na pele essa marca / Possui a estranha mania / De ter fé na vida”). A pobreza é vista como opressão, e a revolução é a única saída (“Mas é preciso ter força / É preciso ter raça / É preciso ter gana sempre”).
O fato de mencionar os pobres e o processo de conversão, compreendido como libertação do oprimido dão à letra a mesma especificidade política que há nos versículos.
“Maria,Maria” é uma letra atemporal, em que o interdiscurso fica bem evidente, uma vez que é na própria concepção de pobreza que a história intervém: o pobre não é visto só no presente, mas o é também em um processo de opressão. A situação dos oprimidos é definida, sobretudo, pelo modo como resistem, pela luta de libertação. Esta aparece como manifestação dos devotos que têm fé em seus santos. O pobre é visto da perspectiva de sujeito social do processo histórico. Esse discurso tem suas duplicidades. O discurso opera as relações muito particulares que a letra estabelece entre a religiosidade, o político e a historicidade. A transformação histórica faz parte da “substância” do texto. É nisso que reside sua dimensão de religiosidade mineira sem perder a originalidade política.
Milton, expondo seus ideais, ao escrever a letra, fê-lo em defesa dos oprimidos através de efeitos metafóricos, deixando aflorar a religiosidade mineira, uma vez que Maria, venerada pelos leigos, coloca a questão da relação entre o político e o religioso.
A relação da religião com o político conduz a não situar o oprimido no lugar da resignação. A letra clama por mudanças das condições de vida para o momento da ditadura no Brasil. As citações dos versículos em relação ao político não funcionam como simples epígrafes. Elas não apagam tampouco o sentido do político; estabelecem, nesse discurso, um movimento de interpretação no qual a confrontação da fé com a opressão é salientada. Nos versículos, a discursivização permite a conversão temporal do discurso bíblico, liberando-o do anacronismo que impede qualquer movimento de sentido.
Através de uma clara referência a Maria, mãe de Jesus, a letra pode ser considerada uma homenagem à mulher brasileira que com força, garra e coragem luta por seus ideais, principalmente, àquelas que sobrevivem a tudo. As duas últimas estrofes são um hino de incentivo às menos fortes e, ao mesmo tempo, o reconhecimento de que a mulher não se deixa abater, mesmo nos momentos de dor, deixa a alegria aflorar.
Essa interpretação constitui um discurso de cunho social.
Havendo no texto um interdiscurso, o discurso bíblico nos remete a Maria, mãe de Jesus.
Vêm crescendo os esforços no sentido de comprovar que a Virgem Maria teve, de fato, valor bem mais expressivo que o que lhe vem sendo atribuído através dos tempos. Mesmo sendo silenciosa, a sua participação é muito significativa na história cristã. Mulher questionadora e muito ousada, ao dizer o sim ao enviado de Deus (Lc 1, 38), revelou-se receptiva ao projeto de salvação e não temeu a possibilidade de ser considerada uma mulher adúltera, uma vez que era comprometida com José.
Nas duas primeiras estrofes da canção, Maria é evocada duas vezes, Maria mulher e Maria mãe, o carisma da nova Eva, forte e libertadora. É como se Nossa Senhora fosse louvada, evidenciando tamanha fé de seus devotos. Nas duas últimas estrofes, fica claro que não basta crer, por mais que a Santa seja poderosa. É preciso seguir os exemplos dela, pois diante do sofrimento extremo e da opressão, além da fé, tem que ser muito forte, como Maria, mãe de Jesus.
Maria “é um dom” porque foi a escolhida por Deus e, “uma certa magia”, pois gerou um filho sem ter contato com um homem. “O Espírito Santo descerá sobre ti, e a força do Altíssimo te envolverá com a sua sombra. Por isso o ente santo que nascer de ti será chamado filho de Deus” (Lc 1, 35).
“Maria é uma força que nos alerta”. Nas bodas de Caná, ela alertou Jesus para transformar água em vinho. A força e autoridade dela O fizeram realizar o primeiro milagre. “Façam o que Ele mandar” (Jo 2, 5), alertou Maria aos serventes e o milagre pôde ser efetivado.
Força, raça e gana foi o que Maria demonstrou na passagem ao pé da cruz. (Jo 19, 25). “Quem traz no corpo a marca” de ser Maria, ser Mulher, ser Mãe “Mistura a dor e a alegria”.
Nesses versos, há a mistura da Santa e da Mãe, cujo filho, como Filho de Deus, morreu para a salvação da humanidade. Foi a fé de Maria que possibilitou a vinda de Jesus ao mundo.
“Uma mulher que merece viver e amar como outra qualquer do planeta.” Maria, mulher judia – etnia que simboliza uma estirpe, uma linhagem, ícone tanto de nobreza quanto de gênese, matriz da descendência das demais mulheres do planeta –, que sempre se doou em benefício do próximo e dizia-se a humilde serva de Deus.
Diante desta análise, fica claro o significado do nome Maria na letra: mulher de fibra, de qualquer classe social, Mãe, que com FÉ “Mistura a dor e a alegria”.
CONCLUSÃO
A análise da letra, cuja elaboração evidenciou um apurado trabalho com a linguagem, e que se refere tanto à construção das frases quanto ao emprego das palavras, comprovou a eficiência da AD, segundo seus conceitos, num trabalho de reflexão e interpretação.
Há na canção um jogo de vozes e perspectivas que podem ser analisadas de diversas formas, já que é possível ler tanto a restrição quanto a multiplicidade de sentidos que se dispersão e não são evidentes.
Em “Maria, Maria”, percebe-se o funcionamento de noções como: o político, a conversão e a opressão, em suas relações com o modo particular de definir a fé e fazer intervir a história na religiosidade. Através da história, da memória discursiva, evidencia-se um diálogo aberto da letra com os versículos da bíblia, o que, entretanto, requer do leitor um saber enciclopédico para que ele possa identificar a intertextualidade existente, compreender e apreciar a riqueza nas várias possibilidades de leitura que o texto nos oferece.
Este artigo não esgota de forma alguma as questões que são colocadas na letra, que tem como foco a força, perseverança, coragem, valentia e fé de Maria mulher, Maria mãe; propõe-se apenas a oferecer ao leitor alguns subsídios para que ele possa despertar para a polifonia que há nos textos e perceber o quanto é interessante um trabalho intertextual.
Ao entrar em contato com os conceitos que embasam a AD, fica evidente que a definição de todos eles se fundamentam em uma característica comum: a constitutividade. O discurso, o sentido, o sujeito, as condições de produção vão se constituindo no processo de enunciação, revelando a religiosidade mineira na canção que apresenta uma forte FI, pois “a palavra está sempre carregada de um conteúdo ideológico, vivencial, porque a língua, em seu uso prático, é inseparável do seu conteúdo de vida” (Décio Rocha, 2003: 245).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bíblia Sagrada. São Paulo: Ave Maria, 1992.
MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise de discurso. Campinas: Pontes, 2002.
––––––. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2001.
MUSSALIM, Fernanda. BENTES, Anna Christina.. Análise do Discurso. In: –––. Introdução à lingüística 2. São Paulo: Cortez, 2002.
ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: Princípios & Procedimentos. Campinas: Pontes, 2003.
––––––. Interpretação: Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Campinas: Pontes, 2004.
ROCHA, Décio. GURGEL, M. Cristina. Leitura em sala de aula: Polifonia e Interação. In: –––. Pistas e Travessias II. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003.
VALENTE, André. Intertextualidade: Aspecto da textualidade e fator de coerência. In: HENRIQUES, Claudio Cezar & PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves (orgs.). São Paulo: Contexto, 2002.
ANEXOS
Versículos
“No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um homem que se chamava José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria” (Lc 1, 26-27).
O anjo disse-lhe: “Não temas, Maria, pois encontraste graça diante de Deus. Eis que conceberás e darás à luz um filho, e lhe porás o nome de Jesus. Ele será grande e chamar-se-á Filho do Altíssimo e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi; e reinará eternamente na casa de Jacó; e o seu reino não terá fim.” Maria perguntou ao anjo: ‘Como se fará isso, pois não conheço homem?”. Respondeu-lhe o anjo: “O Espírito Santo descerá sobre ti, e a força do Altíssimo te envolverá com a sua sombra. Por isso o ente santo que nascer de ti será chamado Filho de Deus” (Lc 1, 30-35). (...) Então disse Maria: “Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra.” E o anjo afastou-se dela (Lc 1, 38).
E Maria disse:“Minha alma glorifica ao Senhor, meu espírito exulta de alegria” em Deus, meu Salvador, porque olhou para sua pobre serva. Por isto, desde agora, me proclamarão bem-aventurada todas as gerações, porque realizou em mim maravilhas aquele que é poderoso e cujo nome é Santo. Sua misericórdia se estende, de geração em geração, sobre os que o temem” (Lc 1, 46-50).
“Estando eles ali, completaram-se os dias dela. E deu à luz seu filho primogênito e, envolvendo-o em faixas, reclinou-o num presépio; porque não havia lugar para eles na hospedaria” (Lc 2, 6-7).
“Depois que os anjos os deixaram e voltaram para o céu, falaram os pastores uns com os outros: ‘Vamos até Belém, e vejamos o que se realizou e o que o Senhor nos manifestou’. Foram com grande pressa e acharam Maria com José, e o menino deitado na manjedoura. Vendo-o, contaram o que se lhes havia dito a respeito deste menino. Todos os que ouviam admiravam-se das coisas que lhes contavam os pastores. Maria conservava todas estas palavras, meditando-as no seu coração” (Lc 2, 15-19). “Três dias depois, celebravam-se bodas em Caná da Galiléia, e achava-se ali a mãe de Jesus. Também foram convidados Jesus e os seus discípulos. Como viesse a faltar vinho, a mãe de Jesus disse-lhe: ‘Eles já não têm vinho’. Respondeu-lhe Jesus: ‘ Mulher, isso nos compete a nós? Minha hora ainda não chegou’. Disse, então, sua mãe aos serventes: ‘Fazei o que ele vos disser.’ Ora, achavam-se ali seis talhas de pedra para as purificações dos judeus, que continham cada qual duas ou três medidas. Jesus ordena-lhes: “Enchei as talhas de água.” (Jo 2, 1-7).
“Junto à cruz de Jesus estavam de pé sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Cléofas e Maria Madalena” (Jo 19, 25).