Um
Estudo geolingüístico
de
aspectos semântico-lexicais
das
comunidades tradicionais
de Ilhabela,
litoral
norte de
São Paulo
Márcia Regina Teixeira da
Encarnação (USP)
Introdução
Sabe-se
que os
diversos
processos de
padronização
em
curso
em praticamente
todos os
setores da
vida podem
levar ao
desaparecimento de
muitos
falares grupais
como,
por
exemplo, o de
comunidades
caiçaras. É
preciso,
pois,
que se tente
resgatar e
registrar o
mais
rápido
possível a
riqueza
lexical existente nessas
comunidades a
fim de
que se possa
conhecer
um dos
maiores
patrimônios culturais de
um
povo, a
sua
língua. Acreditamos
que é na
linguagem e
pela
linguagem
que a
trajetória
humana
conta a
sua
história e
que a
investigação da
linguagem de
um
determinado
grupo sócio-lingüístico-cultural configura-se
como uma
necessidade de
explicar,
determinar e
designar
realidades
que resultam da filtragem operada
pelo
homem. Essas
são privativas de
cada
grupo,
tanto
quanto o é
também a
operação de
organizar
seus
vários
tipos de
fenômenos. As
realidades transparecem nas diversas
linguagens e,
com
isso, acabam delimitando a
visão de
mundo dos
diferentes
grupos
humanos.
Por
isso, buscamos investigá-la e
ainda compreendê-la
por
meio de
estudos
que têm a
lingüística
como
objeto de
observação,
análise e
explicação.
As
comunidades tradicionais
da
região de Ilhabela
Constatamos
que,
além de
existir
um
isolamento
geográfico, essas
comunidades preservam
suas
tradições,
sua
maneira
peculiar de
vida e
seu
linguajar
característico.
Mas, as transformações e as mudanças socioculturais têm sido uma
constante nas
comunidades
caiçaras a
partir de 1960,
com o
declínio da
agricultura e a
crescente
expulsão de
suas
terras.
Um
contingente
cada
vez
maior passou a
migrar
para
áreas suburbanas
onde passaram a
viver
em
bairros
pobres, verdadeiras
favelas, nas
quais o
modo de
vida tradicional está ameaçado. O
caiçara
que vive no
interstício da
Mata
Atlântica e do
mar,
em
estuários,
mangues,
restingas e
lagunas, usando
recursos
naturais
para a
reprodução de
seu
modo de
vida, construiu
um
território
rico
em
diversidade biológica e cultural,
pois essas
comunidades receberam de
índios e
negros
técnicas
patrimoniais,
mitos e
lendas e
ainda, uma
grande
herança
lingüística.
Assim
como os
quilombolas, vargeiros,
sertanejos, os
caiçaras fazem
parte do
grande
número de
populações brasileiras tradicionais. O
reconhecimento da
existência dessas
sociedades culturalmente diferenciadas representa
um
valor de
suma
importância no
universo da
globalização,
portanto, o
levantamento e o
registro dos
aspectos
lingüísticos dessa
região, inegavelmente
em
vias de
extinção
por
força do
gradativo
desaparecimento do
modo de
vida
caiçara e da
ação
fortemente niveladora dos
atuais
meios de
comunicação, faz-se de
suma
importância.
O
método de
pesquisa geolingüístico
Para a
recolha dos
dados
que constituem o
corpus deste
trabalho utilizamos o
método de
pesquisa geolingüístico.
Com a
aplicação desse
método podemos
conhecer,
identificar,
fazer os
registros dessa
realidade,
analisar a variação
lingüística existente e documentá-la
em
cartas. É
com a
elaboração dos
atlas
lingüísticos
que
serão ressaltados
diversos
fenômenos
que
nos permitirão
compreender
melhor
alguns
fatores da
história da
língua, dando-nos uma
noção de
conjunto.
Resumo dos
dados dos
sujeitos
Nº |
Ponto |
Nome |
Sexo |
Ida de |
Profissão |
Estado
Civil |
Renda (em
salário
mínimo) |
1 |
1 |
M.F.J |
F |
65 |
Roceira |
Casada |
Menos de 1 |
2 |
1 |
P.R.O |
M |
65 |
Pescador |
Casado |
2 |
3 |
2 |
M.J.I.J |
F |
63 |
Do
Lar |
Casada |
Menos de 1 |
4 |
2 |
O.B.J. |
M |
65 |
Pescador
aposentado |
Casado |
3 |
5 |
3 |
I.T.L. |
F |
64 |
Roceira
aposentada |
Viúva |
1 |
6 |
4 |
A.M.O |
F |
61 |
Do
Lar |
Casada |
1 |
Para a
seleção dos
sujeitos empregamos os
critérios utilizados no
Projeto
Atlas
Lingüístico do Brasil - ALiB,
doravante denominado
Projeto ALiB. Os
sujeitos
são
naturais da
localidade
ou
lá residiram
pelo
menos
um
terço 1/3 de
sua
vida
quando
procedente de
outra
região.
Os
pontos
lingüísticos
Numa
pesquisa dialetológica, denominamos
ponto
lingüístico a
cada uma das
localidades
em
que se recolhem os
dados de
natureza
lingüística.Com a
intenção de
retratar os
falares dos
caiçaras
habitantes das
comunidades tradicionais de Ilhabela, minimizando as
influências
externas, buscamos
pontos,
cujos
habitantes permanecem nas
suas
localidades de
origem
sem
muito
contato
com os turistas,
pelo
fato de residirem
em
praias de
difícil
acesso.
Pontos |
Descrição dos
pontos |
01 |
Praia do Bonete |
02 |
Praia dos
Castelhanos |
03 |
Ilha dos
Búzios |
04 |
Ilha de
Vitória |
O
questionário
lingüístico
Dá-se o
nome de
questionário a
um dos
instrumentos utilizados
para
recolher os
dados
lingüísticos nas
pesquisas de
campo. Recortado
em
áreas
temáticas e
em subáreas, as lexias obtidas
como
respostas dos
sujeitos constituem o
material de
análise
para
nossa
pesquisa. Esta
análise abordará a subárea
Flora,
em
que apresentamos, na
tabela da página seguinte, as
perguntas e
seus
respectivos temas.
A
entrevista (coleta de
dados) e a
transcrição
Essas
entrevistas foram
feitas
com
um
gravador
portátil Sony,
modelo TCM-343 / 16 e armazenadas
em
fitas
cassetes de 60
minutos.
Depois das
entrevistas, ouvimos as
fitas e fizemos
transcrições grafemáticas das
falas dos
sujeitos, tendo-se utilizado os
sinais
definidos
por Marcuschi (1986). Registramos as
variáveis semântico-lexicais,
independente de
suas variações fônicas
ou da
pronúncia
peculiar de
cada
ponto.
SUBÁREA
FLORA |
|
|
Perguntas (Como se
chama (m)) |
Temas |
1 |
...as
frutas
menores
que a
laranja,
que se descascam
com a
mão, e,
normalmente, deixam
um
cheiro na
mão?
Como
elas
são? |
TANGERINA/
MEXERICA |
2 |
... o
grão
coberto
por uma
casquinha
dura,
que se come
assado,
cozido, torrado
ou moído? |
AMENDOIM |
3 |
... umas florezinhas brancas
com
miolo amarelinho,
ou florezinhas
secas
que se compram na
farmácia e servem
para
fazer
um
chá amarelinho,
cheiroso,
bom
para
dor de
barriga de
neném/bebê e
até de
adulto e
também
para
acalmar? (Mostrar) |
CAMOMILA |
4 |
...
cada
parte
que se corta do
cacho da
bananeira
para
pôr
para
madurar? |
PENCA |
5 |
... duas
bananas
que nascem grudadas? |
BANANA
DUPLA |
6 |
... a
ponta
roxa no
cacho da
banana? |
PARTE
TERMINAL DA
INFLORESCÊNCIA DA
BANANEIRA |
O
registro dos
dados e a
análise
Após uma
revisão de
todo o
material coletado, as
respostas dos
sujeitos foram dispostas numa
planilha do
aplicativo Excel da Microsoft a
fim de registrarmos os
dados e gerarmos as
tabelas
que
nos forneceram os
resultados
para os histogramas.
Ao analisarmos as
respostas de
nossos
sujeitos, constatamos
que
eles
não apresentaram
dificuldades
para
responder as
questões,
pois essas estavam
bem formuladas e
em nenhuma delas encontramos
abstenções.
Porém, encontramos uma
série de
variantes
lexicais,
cujo
número de
ocorrências,
em
ordem decrescente, apresentamos na
tabela seguinte:
Perguntas |
Nº de
variantes
lexicais |
4.6... a
ponta
roxa no
cacho da
banana? |
3 |
4.4...
cada
parte
que se corta do
cacho da
bananeira
para
pôr
para
madurar? |
2 |
4.3... umas florezinhas brancas
com
miolo amarelinho,
ou florezinhas
secas
que se compram na
farmácia e servem
para
fazer
um
chá amarelinho(...)
cheiroso,
bom
para
dor de
barriga de
neném/bebê e
até de
adulto e
também
para
acalmar? (Mostrar) |
2 |
4.1...as
frutas
menores
que a
laranja,
que se descascam
com a
mão, e,
normalmente, deixam
um
cheiro na
mão?
Como
elas
são? |
2 |
4.5... duas
bananas
que nascem grudadas? |
1 |
4.2... o
grão
coberto
por uma
casquinha
dura,
que se come
assado,
cozido, torrado
ou moído? |
1 |
Histograma
No
eixo X, das
abscissas, estão
escritos os
números das
perguntas e no
eixo Y, das ordenadas, está a
escala numérica
que determina o
número de
ocorrências.
Num
total de 6 (seis)
sujeitos entrevistados, obtivemos os
seguintes
resultados:
A
pergunta 4.6 “... a
ponta
roxa no
cacho da
banana?” obteve o
maior
número de variações,
ou seja, 3.
A
pergunta 4.1“...as
frutas
menores
que a
laranja,
que se descascam
com a
mão, e,
normalmente, deixam
um
cheiro na
mão?
Como
elas
são?, a 4.3 “ ... umas florezinhas brancas
com
miolo amarelinho,
ou florezinhas
secas
que se compram na
farmácia e servem
para
fazer
um
chá amarelinho,
cheiroso,
bom
para
dor de
barriga de
neném/bebê e
até de
adulto e
também
para
acalmar? e a
pergunta 4.4 “...
cada
parte
que se corta do
cacho da
bananeira
para
pôr
para
madurar?” obtiveram,
respectivamente, 2 variações
lexicais.
A
pergunta 4.2 “... o
grão
coberto
por uma
casquinha
dura,
que se come
assado,
cozido, torrado
ou moído?” e a 4.5 “... duas
bananas
que nascem grudadas?” obtiveram
apenas uma
única variação.
A
análise do
número de variações
lexicais será
feita
em
função dos
intervalos das
ocorrências.
Os
intervalos dos
números de variações
lexicais do histograma 1
são os
seguintes: 0-1; >1-2; >2-3.
A
graduação foi
determinada
pelo
número de variações obtidas.
No
intervalo de 0-1 estão as
questões 4.2 e 4.5; no
intervalo >1-2 estão as 4.1, 4.3, 4.4 e no
intervalo de >2-3, a 4.6. As
porcentagens obtidas
são as
seguintes: 0-1: 33.34%; >1-2: 50 %; >2-3: 16.67% do
total de 6
perguntas.Para
melhor
visualização, os
dados obtidos estão registrados na
seguinte
tabela:
Intervalo dos
números de variações
lexicais |
Perguntas |
Número de
perguntas situadas
nos
intervalos |
% |
0-1 |
4.2 e 4.5 |
2 |
33.34% |
>1-2 |
4.1, 4.3, 4.4 |
3 |
50,00% |
>2-3 |
4.6 |
1 |
16.67% |
Cartas
temáticas
lexicais
A
carta
temática
lexical é a
representação
similar ao
mapa,
mas de
caráter especializado, construída
com a
finalidade
específica de
registrar a
distribuição das lexias, obtidas
como
respostas dos
sujeitos
nos
pontos estudados.Foram preparadas
individualmente a
fim de
registrar as lexias
que se referiam a uma
mesma
pergunta. Registramos
aqui
apenas a
referente à
pergunta 6: “como se
chama... a
ponta
roxa no
cacho da
banana?”

Símbolo |
Lexia |
Sexo |
Freqüência
relativa |
Freqüência
absoluta |
Pontos |

|
Umbigo |
M/F |
66,67% |
4 |
1; 2 |

|
Engaço |
M/F |
16,67% |
1 |
4 |

|
Taiá |
M/F |
16,67% |
1 |
3 |
|
abstenção |
|
0,00% |
0 |
1; 2; 3; 4 |
|
TOTAL |
|
100,00% |
6 |
1; 2; 3; 4 |
Obtivemos
apenas lexias
simples
em todas as
respostas, sendo
que “umbigo” foi a de
maior
freqüência e atingiu 66,67%, tendo aparecido
em
dois dos
pontos abordados. O
tema sugerido
pelo
Projeto ALiB ‘parte
terminal da
inflorescência da
bananeira’
não aparece nas
respostas de
nossos
sujeitos,
mas as lexias utilizadas na
fala dos
sujeitos faz
referência a essa
parte do
cacho da
banana.
Em
vista disso, consideramos
que
eles entenderam a
pergunta.
Considerações
finais
A
análise semântico-lexical levou-nos a
concluir
que a
língua,
por
estar inserida
em
um
contexto sócio-cultural, imprime aos
falantes as
marcas dessa
sociedade,
que singularizam
seu
falar
em
relação a outras
comunidades
lingüísticas. No
decorrer dessa
pesquisa, percebemos
que o
tema é
fonte
inesgotável
para
vários
outros
estudos. Pretendemos,
em
trabalhos
futuros,
utilizar o QSL
integralmente, abordando todas subáreas e analisando-as. A
intenção é
deixar registrado
material
que possa
ser cotejado
com
outros
falares, de outras
regiões do
País,
ou
ainda, compará-lo
com
dados colhidos
futuramente nessa
mesma
região, se essas
comunidades
ainda existirem,
pois o
resultado da
limitação de
uso dos
recursos e dos
espaços
naturais foi
especialmente danoso
para essa
população. A
preocupação
com as transformações da
língua tem impulsionado os
estudos
lingüísticos e influenciado
um
elevado
número de
lingüistas, embasados no
método geolingüístico ao
registro dos
falares
em
cartas
lexicais, de
modo a
garantir
seu
registro
para
estudos
posteriores. Utilizamos
esse
método,
pois permite
que se conheça e registre as
diferentes
formas de
falar de uma
comunidade de uma
forma
única,
baseado
em
um
questionário
padronizado
que
nos permite comparações precisas
com
outros
trabalhos.
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