As estratégias de cortesia
no Rio de Janeiro Setecentista
as cartas do Marquês do Lavradio
Leonardo Lennertz Marcotulio (UFRJ)
Apresentação
O presente trabalho orienta-se para o estudo das formas nominais e pronominais de tratamento encontradas em cartas pessoais escritas pelo Marquês do Lavradio, no Rio de Janeiro, de 1769 a 1776, e a posterior comparação dos resultados encontrados com as formas de tratamento encontradas nas cartas da Bahia, de 1768 a 1769.
D. Luís de Almeida Portugal Soares Alarcão Eça Melo Silva e Mascarenhas, militar e administrador colonial português, 11° Vice-Rei do Brasil, 3° com residência no Rio de Janeiro, 2° Marquês do Lavradio e 5° Conde de Avintes, nasceu em Ribaldeira em 27 de junho de 1729 e faleceu em Lisboa em 2 de maio de 1790, três anos após o seu regresso a Portugal.
Tinha o posto de Brigadeiro do exército português ao ser nomeado Governador e Capitão-General da Bahia, cargo que empossou em 19 de abril de 1768, passando a Vice-Rei e Capitão-General de Mar e Terra do Estado do Brasil, com residência no Rio de Janeiro, onde dá início as suas funções administrativas.
As cartas de amizade do Marquês do Lavradio constituem uma rica correspondência sobre assuntos administrativos e pessoais. Na correspondência particular para o Reino, queixa-se muito de mazelas e as atribui à terra em que se instala.
Parte-se de uma análise quantitativa de natureza variacionista (Labov, 1994) e qualitativa de natureza sócio-pragmática (Bravo & Briz, 2004) na tentativa de controlar as situações interativas interpessoais entre remetente e destinatários. Alguns princípios funcionais sobre o fenômeno da gramaticalização discutidos por Hopper (1991) serão levados em conta para explicar o processo evolutivo de Vossa Mercê para você. Pretende-se ainda:
a) identificar os contextos lingüísticos e extralingüísticos que condicionam os usos das formas de tratamento;
b) verificar se as estratégias de tratamento utilizadas nas cartas são as mesmas localizadas em corpora diversificados dos séculos XVIII e XIX (peças de teatro popular brasileiras e portuguesas e cartas oficiais e não-oficiais escritas), segundo os trabalhos de Lopes & Duarte (2003), Silvia & Barcia (2002) e Machado (2003) demonstraram;
c) evidenciar se o sincretismo entre a segunda e a terceira pessoas, que acaba por se estabelecer em português, já ocorria nas cartas setecentistas escritas por um português residente no Rio de Janeiro, como observado por Machado (2003) para uma amostra de cartas do século XIX.
Análise dos resultados
Foram identificadas
Formas de tratamento |
Tu |
Você |
Vós |
V. Mcê |
V. Sª |
V. Exª |
Total |
|
Número de ocorrências - Freqüência |
Bahia |
47-24% |
36-19% |
4-2% |
- |
- |
105-55% |
192-100% |
Rio de Janeiro |
51-31% |
28-17% |
6-4% |
1-1% |
1-1% |
75-46% |
162-100% |
|
Total |
98-28% |
64-18% |
10-3% |
1-0% |
1-0% |
180-51% |
354-100% |
Tabela I: Formas nominais e pronominais de tratamento utilizadas nas cartas do Marquês do Lavradio: todos os dados
Observa-se, a partir da análise da tabela I, que há um emprego significativo de Vossa Excelência, tanto na Bahia (55%), como no Rio de Janeiro (46%), forma de tratamento cortês, que se opõe a outras formas de tratamento. Em um primeiro momento, parece não haver variação significativa entre as duas localidades investigadas. Observem-se alguns exemplos das diferentes estratégias localizadas nas cartas:
(1) Meu irmão, amigo e senhor do meu coração ainda que já estarás enfadado de tantas cartas minhas, tem paciência, que eu não devo deixar de partir dêste pôrto sem que por eles faça chegar à tua presença, esta prova mais da minha amizade.
(Carta 53, ao irmão, Conde de São
Vicente, em 8 de março de 1769.)
(2) Meu irmão, e senhor do meu coração, sem embargo de não ter ainda recebido carta nenhuma de você depois que me acho neste Governo que fazem já oito meses que não quero deixar de segurar a você o meu amor e a minha saudade. Estimarei que você tenha sempre passado como eu lhe desejo, e que já costumado aos rigores da Província não tenha nela continuado a experimentar nenhuma moléstia.
(Carta 229, escrita para o irmão, Dom
Martinho de Almeida, em 23 de junho de 1770.)
(3) Eu teria interrompido o vosso sossego mais vêzes com as minhas cartas se não temesse o incomodar-vos, agora que vós animais êstes meus desejos, não deixarei de ir à vossa presença sempre que me fôr possível a protestar-vos o meu profundo respeito.
(Carta 77, dirigida ao tio, Conde
de Resende, em 1º de maio de 1769.)
(4) Estimo que V. Mcê continue a passar tão bem como eu lhe desejo, e que a inconstância das estações que houve o ano passado em Europa em nada prejudicasse a boa saúde e disposição de V. Exª.
(Carta 174, escrita para o tio, Sr. Principal
de Almeida, em 20 de fevereiro de 1770.)
(5) A tua carta que recebi por estes navios foi a primeira que me chegou tua às minhas mãos depois que vim para América, nas cartas de nosso amado Prado sempre lhe fazia mil recomendações para os meus amigos, com vocês ajustei que quando escrevesse a um os outros todos tomassem também aquela por sua; é certo que as respostas do Prado me puseram em bastante desconfiança sobre a sua amizade de vocês para comigo, porque sendo as minhas cartas para ele muito compridas para que pudesse caber a cada um quatro ou cinco regras, no caso de quererem brigar pela repartição, vi ir diminuindo as suas respostas de tal forma, que imaginei assim me sucedia com os meus amigos, e como a política de Prado me não queria mostrar quais eram os que de mim se não lembravam, me não resolvi a escrever que aqueles que pelas suas cartas me mostravam que de mim se não esqueciam; tudo isso são umas justificações tão forte que a respeitável prudência de V. Sª não deixará de atende-las com a mais terna piedade.
(Carta 181, destinada ao primo Conde de
São Paio, em 20 de fevereiro de 1770.)
Verificou-se
Destinatário |
Parentesco estabe-lecido |
Bahia |
Rio de Janeiro |
||
Carta |
Forma(s) de tratamento |
Carta |
Forma(s) de tratamento |
||
Condessa de São Vicente |
mãe |
50 |
V. Exª |
383 |
V. Exª |
Principal de Almeida |
tio |
28 |
V. Exª |
174 |
V. Exª / V. Mcê |
Conde de Azambuja |
tio |
22 |
V. Exª |
214 |
V. Exª |
Conde de Resende |
tio |
77 |
V. Exª / Vós / Tu |
268 |
Vós / Tu |
Conde de São Vicente |
irmão |
53 |
Você / Tu |
485 |
Tu |
74 |
V. Exª / Tu |
230 |
Tu |
||
Dom Martinho |
irmão |
31 |
Você / Tu |
229 |
Você |
Antão de Almada |
primo |
2 |
Tu |
165 |
Tu |
Conde de Valadares |
primo |
47 |
V. Exª |
140 |
V. Exª |
Conde de Povolide |
primo |
7 |
V. Exª |
442 |
V. Exª |
Conde do Prado |
primo |
42 |
Você / Tu |
180 |
Tu |
Marquês de Penalva |
primo |
29 |
V. Exª |
373 |
V. Exª |
Conde de São Paio |
primo |
61 |
Tu |
181 |
V. Sª/Você/Tu |
82 |
Você / Tu |
421 |
Você / Tu |
||
Marquês de Angeja |
primo |
81 |
V. Exª |
419 |
V. Exª |
Conde de Tarouca |
filho |
30 |
V. Exª |
517 |
Você / Tu |
Conde de Vila Verde |
filho |
56 |
V. Exª / Você |
518 |
Você |
Tabela II: Formas nominais e pronominais de tratamento
utilizadas em relação a um destinatário específico
As diferentes estratégias
em função das relações interpessoais estabelecidas
A tabela a seguir evidencia as freqüências de uso das formas de tratamento em função do destinatário da carta:
Destina-tário |
Local |
Formas de tratamento |
Total de ocorrên-cias |
|||||
Tu |
Você |
Vós |
V. Mcê |
V. Sª |
V. Exª |
|||
Mãe |
BA |
- |
- |
- |
- |
- |
17-100% |
29 |
RJ |
- |
- |
- |
- |
- |
12-100% |
||
Total |
- |
- |
- |
- |
- |
29-100% |
||
Tios |
BA |
1-4% |
- |
4-16% |
- |
- |
20-80% |
55 |
RJ |
1-3% |
- |
6-20% |
1-3% |
- |
22-74% |
||
Total |
2-4% |
- |
10-18% |
1-2% |
- |
42-76% |
||
Primos |
BA |
21-26% |
9-11% |
- |
- |
- |
50-63% |
167 |
RJ |
39-45% |
6-7% |
- |
- |
1-1% |
41-47% |
||
Total |
60-36% |
15-9% |
- |
- |
1-1% |
91-54% |
||
Irmãos |
BA |
25-63% |
12-30% |
- |
- |
- |
3-7% |
57 |
RJ |
10-59% |
7-41% |
- |
- |
- |
- |
||
Total |
35-62% |
19-33% |
- |
- |
- |
3-5% |
||
Filhos |
BA |
- |
15-50% |
- |
- |
- |
15-50% |
46 |
RJ |
1-6% |
15-94% |
- |
- |
- |
- |
||
Total |
1-2% |
30-65% |
- |
- |
- |
15-33% |
Tabela III: Uso das formas de tratamento em função do destinatário da carta
Observa-se na
Nas
(6) Meu querido filho e senhor do meu coração, a verdadeira amizade que V. Exª há tanto tempo me devia, deve fazer a V. Exª mais um argumento do lugar que terá na minha estimação esta nova aliança, a grande qualidade de V. Exª, as suas nobilíssimas circunstâncias bastariam para o nôvo parentesco com V. Exª, e com a sua Ilma Casa me ser sumamente estimável junte V. Exª a estas razões (que só por si sobejavam) as da amizade, e carinho de que V. Exª já me era devedor; finalmente meu filho eu estou cheio da maior consolação, e maior gôsto com êle lhe dou a você e os recebo também muitos, e muitos parabéns, e não sofrendo já o meu contentamento que eu deixe de tratar a você com aquele carinhoso tratamento do nosso nôvo parentesco, eu me sirvo já dele não só para lhe mostrar o meu amor, mas porque como estas notícias as recebo já a tempo de você ter tido mais liberdade com minha filha, posso tê-la também de o tratar com menos cumprimento.
(Carta 56, escrita para o “filho” Conde de
Vila Verde, em 8 de março de 1769.)
Consoante Santos (2002), o casamento era imprescindível para o funcionamento do mecanismo de formação de alianças, cujo objetivo era aumentar o prestígio político de uma Casa sempre em função de sua sobrevivência e reprodução. Não poderia ser diferente na constituição da rede de interlocutores do Marquês do Lavradio. O entendimento do casamento, como forma de constituição de alianças, deve derivar da aceitação de sua prática como ato eminentemente político. O casamento, visto como uma forma de manutenção do poder político, permaneceu como um negócio familiar, um contrato que construía redes de aliança e solidariedade econômicas, políticas ou sociais entre famílias. Era um acordo legalizado entre famílias, mais do que entre indivíduos. O casamento legal era condição fundamental para a estabilidade econômica, busca de “status”, ascensão social e obtenção, em muitos casos, de posições administrativas.
Nas
Observa-se apenas um dado de Vossa Mercê, numa carta para um tio, e um dado de Vossa Senhoria, numa carta dirigida a um primo. Verifica-se, também,
(7) Meu Tio, meu Amigo e meu Senhor. Uma e mil vezes vos agradeço a generosa compaixão com que me favoreceis, permitindo-me a fortuna e honra de cartas vossas com as quais tenho a gostosa satisfação de saber da vossa boa saúde que não só vo-la desejo sempre, mas igualmente que com ela tenhais na vossa Exmª casa as maiores felicidades (...)
(...) Perdoai-me meu Senhor o ter sido tão extenso e permiti-me em toda a parte as vossas ordens, que executarei sempre com a mais respeitosa amizade.
Deus vos guarde muitos anos.
(Carta 268, escrita para o tio, Conde de
Resende, em 18 de novembro de 1770.)
A
Tipo de |
Local |
Formas de tratamento |
Total de |
|||||
Tu |
Você |
Vós |
V. Mcê |
V. Sª |
V. Exª |
|||
De superior |
BA |
- |
15-50% |
- |
- |
- |
15-50% |
46 |
RJ |
1-6% |
15-94% |
- |
- |
- |
- |
||
Total |
1-2% |
30-65% |
- |
- |
- |
15-33% |
||
Deinferior |
BA |
1-2% |
- |
4-10% |
- |
- |
37-88% |
84 |
RJ |
1-2% |
- |
6-14% |
1-3% |
- |
34-81% |
||
Total |
2-2% |
- |
10-12% |
1-1% |
- |
71-85% |
||
Entre |
BA |
46-38% |
21-18% |
- |
- |
- |
53-44% |
224 |
RJ |
49-47% |
13-13% |
- |
- |
1-1% |
41-39% |
||
Total |
95-42% |
34-15% |
- |
- |
1-1% |
94-42% |
Tabela IV: Uso das formas de tratamento
em função das relações hierárquicas emissor-destinatário
Os
Observa-se
Os
Conforme discutido
Examinando os
Através desse princípio, pode-se analisar o fenômeno do sincretismo entre formas de 2ª e 3ª pessoas, isto é, a possibilidade de a forma você se combinar com formas de 2ª pessoa, como te/teu/tua, uma vez que deixa de ser exclusivamente um nome e passa a se comportar, de certo modo, como uma forma pronominal.
Machado (2003), estudando esse mesmo fenômeno, verifica a presença desse tipo de combinação em uma amostra de cartas brasileiras da segunda metade do século XIX. Marcotulio (2005), analisando uma amostra de cartas do Marquês do Lavradio escritas no Rio de Janeiro, não detectou a combinação de formas de 2ª pessoa com a forma em gramaticalização você. Entretanto, neste trabalho, com a seleção de outras cartas escritas no Rio de Janeiro e de cartas da Bahia, pôde-se observar, ainda que em pequeno número (quatro dados no total) a presença do sincretismo entre P2 e P3. Sabemos que não se podem fazer generalizações a respeito do assunto, mas já dispomos de indícios, e dessa vez, comprovados por meio de exemplos, que o fenômeno já ocorria na segunda metade do século XVIII, como mostra a tabela abaixo e os exemplos que a seguem:
Local |
Carta |
Parentesco |
Forma de |
Possessivo |
Complemento |
||
P2 |
P3 |
P2 (te) |
P3 (o/lhe) |
||||
BA |
42 |
primo (Conde do Prado) |
Tu |
3 |
- |
7 |
- |
Você |
1 |
- |
1 |
1 |
|||
31 |
irmão (Dom Martinho) |
Você |
- |
3 |
2 |
2 |
Tabela V: Sincretismo entre P2 e P3
(8) De tôda a minha comitiva aceite você mil recomendações, e de mim a grandíssima vontade com que sempre te darei gosto. Deus te guarde muitos anos.
(Carta 31, destinada ao irmão, Dom Martinho,
em 15 de dezembro de 1768.)
(9) Meu
(
A
O
É interessante
Essa “
Através dos resultados obtidos, pode-se demonstrar, com o intuito de entender, discutir e desmistificar o preconceito lingüístico que se construiu ao redor do tema, que apesar de ainda ser condenada pelo ensino tradicional, a combinação de você com formas de 2ª pessoa era comum no início do seu processo de pronominalização.
Dessa
carta |
destinatário |
parentesco |
forma de |
forma de |
contexto |
motivação |
31 |
Dom Martinho de Almeida |
irmão |
você |
tu |
[+ inovador] |
- |
42 |
Conde do Prado |
primo |
tu |
você |
[+ conservador] |
ameaça, |
Tabela VI: tipo de contexto e motivação pragmática
por carta com sincretismo entre P2 e P3
Em síntese, observa-se
Considerações finais
Verificou-se
Nas
Nas
Há o
Em
Verificou-se
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HOPPER, P. On some principles of grammaticization. In: TRAUGOTT, Elizabeth Closs & HEINE, Bernd. (eds.). Approaches to grammaticalization, volume I, Amsterdam / Philadelphia: John Benjamins Company, 1991.
LABOV, W. Principles of Linguistic Change: Internal Factors. Oxford: Blackwell, 1994.
LAVRADIO, M. Cartas do Rio de Janeiro (1769-1776). Rio de Janeiro: Instituto Estadual do Livro, 1978.
––––––. Cartas da Bahia (1768-1769). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1972.
LOPES & DUARTE, Maria Eugênia Lamoglia. Notícias sobre o tratamento em cartas escritas no Brasil dos séculos XVIII e XIX. Rio de Janeiro, 2003 [mimeo].
MACHADO, Ana Carolina Morito. A variação entre você e tu no século XIX: o comportamento inovador das mulheres. São Paulo, Versão preliminar do trabalho apresentado no LI GEL, [no prelo].
MARCOTULIO, L. L. A estrutura familiar e a interação social no condicionamento das formas de tratamento: textos epistolares escritos no Rio de Janeiro do séc. XVIII. In: SANTOS, Deize V. dos (org.). Inicia – Revista da Graduação em Letras da UFRJ. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ, 2005.
SANTOS, Fabiano Vilaça dos. Trajetória política e ação colonizadora: a revitalização do Império Colonial Português na administração do Marquês do Lavradio. Dissertação de Mestrado em História – Programa de Pós-graduação em História. Rio de Janeiro: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ, 2002.
SILVA, Andreza & BARCIA, Lucia Rosado. Formas nominais e pronominais de tratamento nos séculos XVIII e XIX. Trabalho apresentado na XXIII Jornada de Iniciação Científica e XIII Jornada de Iniciação Artística e Cultural. Rio de Janeiro, 2002.