REFLEXÕES
SOBRE O MÉTODO DE PESQUISA GEOLINGÜÍSTICO
NA ANÁLISE SEMÂNTICO-LEXICAL
EM ATLAS LINGÜÍSTICOS

Adriana Cristina Cristianini (USP e UNIBAN)

 

Introdução

A Geolingüística ou Geografia Lingüística, segundo Dubois (1978: 307), “é o estudo das variações na utilização da língua por indivíduos ou grupos sociais de origens geográficas diferentes”.

Podemos também ver a Geolingüística como um estudo cartográfico dos dialetos, como nos mostra Iordan (1962: 273) ao afirmar que “A geografia lingüística significa a representação cartográfica do material lingüístico com o objectivo de determinar a repetição topográfica dos fenômenos”.

Devemos considerar que a Geolingüística é um método, e não uma ciência, pois se trata de um processo da Dialetologia para estudar a linguagem humana. Na realidade, a Dialetologia, investigação científica dos dialetos, já existia antes do surgimento da Geolingüística, embora se utilizassem outros meios.

A Geolingüística consiste na aplicação de um questionário a um conjunto de sujeitos com determinadas características, numa rede de pontos, para que os resultados sejam apresentados em tabelas e, finalmente, em cartas.

Dessa forma, é possível visualizar as relações entre o ambiente geográfico e a difusão e distribuição espacial dos fenômenos lingüísticos, verificando-se a norma diatópica da localidade. É o registro do material coletado em cartas lingüísticas que, compiladas, constituem os atlas lingüísticos.

A idéia de se apresentarem os resultados em forma de atlas surgiu quase espontaneamente, por facilitar com uma vista de olhos as particularidades de um dialeto. Se comparado com o estudo dos glossários, foi um passo à frente nos estudos dialetais, pois por meio de uma carta lingüística podemos visualizar, de maneira sinóptica, as variedades lingüísticas de determinado lexema em uma dada área geográfica.

Considerando que a idéia de Norma está definitivamente caracterizada pela presença da alta freqüência e pela distribuição regular das variações em uma comunidade lingüística, e que cabe à Geolingüística a descrição das variações diatópicas, poderemos especificar, por meio das respostas obtidas de entrevistas aplicadas a sujeitos de um certo grupo numa dada localização, a Norma característica do local, além de precisar a repetição topográfica dos fenômenos observados em cartas.

 

Questionários lingüísticos e seus atlas

A aplicação do questionário lingüístico costuma ser direcionado à investigação da variação diatópica sob algumas perspectivas da norma lingüística, tais como, aspecto fonético-fonológico, aspecto semântico-lexical, aspecto morfossintático.

Podemos perceber que um dos itens altamente relevantes para um estudo geolingüístico é a elaboração do questionário a ser aplicado, pois, partindo das respostas às questões dirigidas aos sujeitos é que são formados os corpora para elaboração das cartas e análise das variações.

No Brasil, o primeiro atlas lingüístico publicado foi o Atlas Prévio dos Falares Baianos - APFB, em 1963. O questionário utilizado, sem modelo precedente, foi elaborado a partir de experiências de estudos dialetais anteriores em que ocorrera a primeira aplicação de um questionário lingüístico experimental com 2965 perguntas. Da análise dos resultados da aplicação desse questionário elaborou-se um extrato de questionário com 182 questões, contemplando principalmente o aspecto semântico lexical, pois se partiu do pressuposto que os dados fonéticos seriam depreendidos a partir das realizações lexicais. As questões foram agrupadas, segundo Rossi (1965: 20), “em áreas semânticas sem maiores preocupações de rigor nos limites entre elas e ordenamo-las segundo a previsão de uma seqüência aceitável como natural num diálogo do tipo daquele em que normalmente se transforma um inquérito”. Dividiu-se o questionário nas áreas semânticas: TERRA, VEGETAIS, HOMEM, ANIMAIS.

Apoiado nas respostas ao questionário, o APFB foi constituído por 198 cartas lingüísticas, das quais, 44 cartas são resumos de cartas anteriores.

Em 1977, foi publicado o Esboço de um Atlas Lingüístico de Minas Gerais – EALMG e, para a pesquisa, utilizou-se um questionário piloto e vários alternativos para que, depois, se definisse um questionário com 415 questões, de modo a evitar respostas do tipo não sei, tudo, nada ou comentários irrelevantes em torno das questões. Publicou-se, até agora, um dos volumes dentre os três volumes previstos, com 78 cartas lingüísticas.

A pesquisa que resultou no Atlas Lingüístico da Paraíba – ALPB, publicado em 1984, utilizou-se de um questionário com 877 questões, dividido em duas partes: uma geral, abordando as áreas semânticas a terra, o homem, a família, habitação e utensílios domésticos, aves e animais, plantação, atividades sociais; e uma parte específica que diz respeito aos cinco produtos agrícolas mais importantes da Paraíba, ou seja, mandioca, cana-de-açúcar, agave, algodão e abacaxi.

O único Estado brasileiro que conta com dois atlas lingüísticos é Sergipe que teve publicado, em 1987, o Atlas Lingüístico de Sergipe e, em 2002, o Atlas Lingüístico de Sergipe II. A versão final do questionário utilizado para a pesquisa contém 687 questões, 181 retiradas do Extrato de Questionário aplicado para o APFB e 505 selecionados de questionários preliminares.

Em 1994, foi publicado o Atlas lingüístico do Paraná, cujo questionário utilizado para a pesquisa foi basicamente o mesmo utilizado para a coleta de dados para a futura elaboração do Atlas Lingüístico do Estado de São Paulo – ALESP. Num total de 325 questões, o questionário é dividido em duas áreas semânticas: Terra (com as subáreas: natureza, fenômenos atmosféricos, astros, tempo; flora; plantas medicinais; fauna); e Homem (com as subárias: partes do corpo, funções, doenças; vestuário e calçados; agricultura, instrumentos agrícolas; brinquedos, jogos infantis; lendas e superstições).

O Atlas Lingüístico-Etnográfico da Região Sul do Brasil – ALERS, publicado em 2002, contou com três tipos de questionários, com um total de 735 questões: 26 questões no Questionário Fonético-fonológico, além de outras 24 questões para as áreas de colonização não-lusa; 75 no Questionário Morfossintático e 610 no Questionário Semântico-lexical. Este último, na verdade, constitui-se de 6l0 itens (cerca de 800 perguntas), das quais aproximadamente 90% indagam pelo nome (são onomasiológicas), 7% indagam pela acepção (são semasiológicas) e 3% indagam por nomes de espécies de seres de algumas áreas semânticas (são citativas). As perguntas distribuem-se pelas seguintes esferas: acidentes geográficos, fenômenos atmosféricos, astros e tempo, sistema de pesos e medidas, flora, atividades agropastoris, fauna, corpo humano, cultura e convívio, ciclos da vida, religião e crenças, festas e divertimentos, habitação, alimentação e cozinha, vestuário. As perguntas apresentam formulação fixa e se seguem em ordem conceptual. Embora idêntico para os três Estados, o questionário incorpora uma pequena seqüência de perguntas específicas para cada Estado.

Em 1996, em Salvador, por ocasião da realização do Seminário Caminhos e Perspectivas para a Geolingüística no Brasil, com a participação de pesquisadores da área oriundos de diferentes regiões brasileiras, foi retomada e aprovada a idéia da elaboração de um atlas lingüístico nacional, desejo que vem desde 1952, mas que, somente no final do século, começou a tomar corpo. Surge, assim, o Projeto ALiB, um empreendimento de vultosa amplitude, de caráter nacional, que tem por meta a elaboração de um atlas geral no Brasil no que diz respeito ao uso da Língua Portuguesa.

O questionário utilizado pelo ALiB é composto de três tipos de questionário direcionados, especificamente, cada um deles, para os aspectos: fonético-fonológico (QFF), semântico-lexical (QSL) e morfossintático (QMS).

O QSL, sobre o qual nos interessa refletir neste artigo, é constituído por 202 perguntas de orientação basicamente onomasiológica divididas em 14 subárias semânticas: Acidentes geográficos; Fenômenos atmosféricos; Astros e tempo; Atividades agropastoris; Fauna; Corpo humano; Ciclos da vida; Convívio e comportamento social; Religião e crenças; Jogos e diversões infantis; Habitação; Alimentação e cozinha; Vestuário e acessórios; Vida urbana.

Pretende-se com o QSL que o sujeito responda às questões com lexias que conhece para o conceito proposto. Com os resultados, intenciona-se descrever a norma lexical e documentar a riqueza sinonímica de cada localidade.

Cada questão do questionário é apresentada sobposta a uma ou mais possibilidades de respostas, entretanto, é importante salientar que isso não restringe as respostas dos sujeitos. O intuito, com essa organização, é guiar o pesquisador durante a aplicação do questionário.

Vejamos, por exemplo, a seguinte questão:

20. ORVALHO/SERENO

De manhã cedo, a grama geralmente está molhada. Como chamam aquilo que molha a grama?

21. NEVOEIRO / CERRAÇÃO / NEBLINA

Muitas vezes, principalmente de manhã cedo, quase não se pode enxergar por causa de uma coisa parecida com fumaça, que cobre tudo. Como chamam isso?

Como recursos auxiliares para a obtenção dos dados, está prevista a utilização de gravuras de alguns dos objetos, principalmente daqueles característicos da vida e das atividades rurais.

 

Reflexões a considerar

Desde a elaboração do questionário para o APFB, o primeiro atlas estadual do Brasil, algumas preocupações sempre inquietaram os pesquisadores, tais como: O que nos garante que essas sejam as questões mais indicadas a propor? As perguntas estão devidamente claras para os sujeitos? O número de questões é o ideal para esse tipo de questionário? As questões estão organizadas por áreas semânticas de maneira adequada? E o quanto isso é relevante? Qual dos atlas estaduais já elaborados contou com o melhor questionário?

Busquemos, então, uma reflexão sobre essas indagações.

Considerando que temos, em nossa língua, um infinito número de possibilidades, um leque gigantesco de variações, usuais e virtuais, seria impossível a elaboração de um questionário que contemplasse toda a variação.

Todos os questionários surgiram da análise de sondagens anteriores para a elaboração de um questionário definitivo. Portanto, as perguntas contempladas no questionário não foram definidas por escolha aleatória, mas pela reflexão sobre os resultados obtidos nas pesquisas com outros questionários.

O questionário utilizado pelo projeto ALiB, além de ter como base questionários aplicados em atlas já publicados no Brasil e estudos em andamento, também considerou os questionários do ALiR – Atlas Linguistique Roman e do Atlas Lingüístico-Etnográfico de Portugal e da Galiza. Algumas versões do questionário foram publicadas para aplicação de caráter experimental realizadas em diferentes pontos do Brasil. Na seqüência, deu-se uma análise crítica dos resultados e uma elaboração do questionário para a da versão final a ser aplicada em todo o território brasileiro.

Mesmo com esse trabalho, intenso e sério, algumas questões, como aconteceu em outros questionários, apresentam, algumas vezes, reações e interpretações diversas por parte do sujeito. Essas reações podem denotar um aparente problema quanto à elaboração ou relevância da pergunta. Entretanto, nesses casos, a perspicácia do pesquisador permite que a questão seja reelaborada, facilitando o entendimento da pergunta, dessa forma, o objetivo da pergunta poderá ser alcançado.

Temos relatos que nos mostram algumas dessas reações. Caruso (2005: 374) diz que “[...] verificou-se com a questão referente a ‘Como se chama o dia antes de hoje?’ As respostas eram dadas em números, em dia da semana e só algumas vezes com a resposta correta ontem.”

Para a solução do problema, segundo Caruso, os pesquisadores passaram a formular a questão da seguinte maneira: se de manhã, perguntavam “O(A) Senhor(a) ainda não almoçou hoje, quando é que o(a) Senhor(a) almoçou pela última vez?”. Se fosse à tarde, simplesmente trocava o almoço pelo jantar. Dessa maneira, facilmente o pesquisador obtinha ontem como resposta.

Outra reação relatada por pesquisadores ocorre quando se pergunta ao sujeito “Quais são os meses do ano?”. O sujeito, às vezes, expressa uma inquietação, revelando certa “desconfiança”, pois, supostamente, pensa que o pesquisador acha que ele não sabe os meses do ano, coisa bastante incomum, mesmo em regiões mais longínquas.

Na subária “Alimentação e cozinha” do questionário do ALiB, temos a questão 179, como se chama “... uma papa cremosa feita com coco e milho verde ralado, polvilhada com canela?”, que, dependendo da cultura regional à qual o sujeito está inserido, revela algumas dificuldades, pois esses ingredientes variam na feitura do CURAU / CANJICA. É importante, nesse caso, que o pesquisador faça uma adequação da pergunta aos costumes locais.

A organização dos questionários por áreas semânticas recebe, em alguns momentos, algumas críticas, as quais fazem objeções sobre a distribuição dos temas nas subárias. Um exemplo plausível de objeções refere-se aos questionários do ALESP e do ALPR, os quais apresentam, na área semântica “I – Terra”, as subárias “b) Flora: árvores, frutos, etc.” e “c) Plantas medicinais”. Obviamente as plantas medicinais fazer parte da flora da região e poderiam estar inseridas em uma única subária – flora.

Entretanto, parece-nos pouco relevante essa observação, pois, essa organização tende a ser seguida porque facilita a aplicação do questionário. Justifica-se uma não preocupação de rigor nos limites dessas subárias pela necessidade de uma ordenação que preveja uma seqüência natural, tanto para o sujeito quanto para o pesquisador. Essa divisão não compromete os resultados da pesquisa.

 

Considerações finais

Não é possível, nem pertinente, elegermos um dos questionários como o melhor para a análise semântico-lexical. Cada qual, a sua maneira, trouxe importantes contribuições para os trabalhos posteriores e para aqueles que ainda virão.

É importante, entretanto, que se faça reflexão sobre a necessidade de um questionário único nos trabalhos de dialetologia que estão em desenvolvimento e os que ainda serão iniciados. Se observarmos os atlas estaduais já publicados, notamos que somente quatro itens estão presentes em todos os atlas: arco-íris, estrela cadente, lagartixa e cambalhota.

O questionário do ALiB nos parece o mais indicado para ser adotado como questionário padrão nesse tipo de estudo, pois, pelo fato de já ter sido, e continuar sendo, aplicado em diversos pontos do território brasileiro, nos proporciona a possibilidade de um cotejamento entre as variantes presentes em cada local e um estudo comparativo sobre as suas respectivas comunidades lingüísticas.

 

Referências bibliográficas

CARUSO, P. Metodologia da Pesquisa Dialetológica In: AGUILERA, V. (org.). A Geolingüística no Brasil: trilhas seguidas, caminhos a percorrer. Londrina:Eduel, 2005

COMITÊ NACIONAL DO PROJETO ALIB. Atlas lingüístico do Brasil: questionários. Londrina: UEL, 2001.

DUBOIS, J. Et al. Dicionário de Lingüística. São Paulo: Cultrix, 1978.

IORDAN, I. Introdução à Lingüística Românica. Trad. Júlia Dias Ferreira. 2ª ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1962.

ROSSI, N. Atlas prévio dos falares baianos: introdução, questionário comentado e elenco das respostas transcritas. Rio de Janeiro: INL; MEC, 1965.

––––––. Atlas prévio dos falares baianos. Rio de Janeiro: INL; MEC, 1965.