PROBLEMAS DA DIDÁTICA DO LATIM

Nestor Dockhorn (UNIG)

 

INTRODUÇÃO

No presente minicurso, serão tratados os itens que vêm abaixo discriminados, relativos a problemas da didática do latim.

Os vários  métodos de ensino do latim e as experiências pessoais do autor. As várias linhas de tratamento das estruturas morfossintáticas do latim. Os problemas fonético-fonológicos. A variedade popular do latim.

 

OS VÁRIOS MÉTODOS DA DIDÁTICA DO LATIM
E AS EXPERIÊNCIAS PESSOAIS DO AUTOR.

No presente item, tentamos mostrar sucintamente várias linhas didáticas que as escolas utilizaram no ensino da língua latina. Aproveitamos para inserir dados da própria experiência.

A língua latina, depois que teve sua utilização prática confinada à escola, às chancelarias, aos ambientes eruditos, à vida litúrgica, continuou a ser ensinada, provavelmente, mais pelo estudo dos textos usados na escola, na Igreja, nas bibliotecas do que por teorias muito aprofundadas de gramática.

Nas diretrizes apontadas pelos jesuítas, em sua Ratio Studiorum havia grande grau de praticidade. Pode-se dizer que a orientação didática ia do texto à gramática e não da gramática ao texto.

Nos tempos mais modernos, porém, podemos dizer que a orientação partia do teórico e só muito vagarosamente chegava ao texto.

Aliás, esse problema didático não se deu só com o latim: também nas línguas modernas – e no próprio estudo do português – somente nas últimas décadas é que se começou a enfatizar o estudo do texto.

No estudo do latim – e também do grego – o estudo teórico da língua latina tomou uma linha muito característica devido à morfologia complexa do nome latino. O estudo das declinações latinas tornou-se uma obsessão para os professores – e um tormento para os alunos – que consideravam o domínio das declinações como um pedestal para aí colocar a estátua da língua latina. Era uma didática totalmente desviada dos objetivos de conhecer a língua latina, porquanto se exigia o conhecimento memorizado das declinações, com exceções e minúcias, de que, provavelmente, nem um falante de latim da época de Cícero  teria conhecimento. Um exemplo dessa didática é o livro Gramática Latina, de Napoleão Mendes de Almeida (1974). Nessa obra, depois de informações teóricas sobre cada declinação, o autor propõe alguns exercícios de pequenas frases em latim para serem traduzidas para o português ou pequenas frases em português para serem traduzidas para o latim.

Linha semelhante segue a Profa. Gilda S. de Brito, na obra Lições de Latim (1980).

Percebemos acentuados progressos nas várias obras didáticas do P. Milton Valente, especialmente no seu Ludus – que ajudei a revisar – onde o autor parte para uma linha didática que lembra a conversação. É um começo da libertação da escravidão das declinações.

Obras que representam muito progresso didático são de dois colegas da UFRJ: a obra O Latim Através de Exercícios (1982), do saudoso amigo Luiz Carlos S. Marcellino de Carvalho, falecido prematuramente e a obra em dois volumes O Latim e Suas Estruturas (1986), de Carlos Antonio Kalil Tannus e outros.

Sinto-me obrigado aqui a relatar minhas experiências, porque são enriquecedoras. Desde que comecei a lecionar latim, no Curso de Humanidades dos Jesuítas, no Rio Grande do Sul – hoje incorporado à UNISINOS – a minha maior preocupação foi a didática do latim. Passei por várias experiências que ajudaram a aperfeiçoar o método de ensino.

Essas experiências foram as seguintes:

1 – A parafraseação em língua latina de textos de Cícero, Vergílio e Horácio.

2 – A tradução diretamente para o latim de textos gregos.

3 – A conversação em língua latina em muitas situações concretas

4 – A descoberta de que o latim poderia ser ensinado em método direto, isto é, sem passar pela intermediação da língua portuguesa.

5 – O vislumbramento de que seria possível montar um método de ensinamento do latim (e do grego) de forma sistemática.

Posteriormente, depois de estudar alguns anos na Europa, o autor deste minicurso tentou tornar mais concreta a tentativa de criar um curso fundamental de latim de forma semelhante ao método empregado na aprendizagem de línguas modernas. O autor já tinha utilizado o célebre método Berlitz, no ensino de francês e inglês. Adotou para o latim algumas lições fundamentais do método Berlitz, aplicando-as a um grupo de jovens em Salamanca, na Espanha. Era a sua primeira tentativa sistematizada de fugir das teorias gramaticais. Esse foi seu primeiro ponto de partida para outros melhoramentos. Outros melhoramentos aparecem depois de o autor ministrar cursos de latim em várias faculdades do Estado do Rio, e depois de fazer cursos de Mestrado e Doutorado. Nessa fase, o autor aplicou um método de ensino, que pode ser assim caracterizado:

a)       O método era direto (sem intervenção da língua portuguesa)

b)       O método conjugava ação e fala: com muita ação, encenação e dramatização.

c)       A aprendizagem da escrita era feita paulatinamente.

d)       A parte teórica era mínima.

e)       O aluno ia aprendendo o latim de forma natural, como uma criança latina teria aprendido.

Lamentavelmente, não redigi formalmente o método, apesar de ter tido muita aceitação. Creio que didaticamente, o método teve muito sucesso.

Redigi, na década de 70, o método Roteiros de Língua Latina, inicialmente mimeografado, depois impresso em IBMComposer, em duas edições. Uma parte era o Roteiro Prático, a outra era o Roteiro Teórico. Penso que a obra ainda contém excesso de noções teóricas, provavalmente por influência das aulas do Mestrado de Lingüística.

Em 2001, redigi e publiquei em dois volumes, a obra Sermo Latinus Facilis, Gradus Primus e Gradus Secundus. Essa obra apresenta mais características de modernidade, como pode ser visto na seqüência de cada lição. Cada lição obedece à seguinte ordem:

a) Frases simples.

b) Texto simples.

c) Conversação.

d) Assuntos teóricos (gramática)

e) Exercícios.

Uma característica da obra é que é redigida toda em latim. No Gradus Primus, usam-se somente maiúsculas (letras capitais). No Gradus Secundus, aparecem as minúsculas.

 

VÁRIAS LINHAS DE TRATAMENTO
DAS ESTRUTURAS MORFOSSINTÁTICAS DO LATIM.

No estudo das estruturas morfossintáticas do latim, podemos seguir por duas linhas. Ou damos ênfase à forma ou damos ênfase ao conteúdo semântico.

Naquele estudo exagerado das declinações, a ênfase era totalmente formal, sem nenhuma referência ao conteúdo semântico. Ora, a diversidade das formas não é uma esquisitice da língua: ela tem um sentido e esse sentido deve ser buscado.

Podemos também partir de uma determinada forma, por exemplo, o genitivo, e buscar em que situações semânticas ele pode ser empregado.

Podemos também partir de situações semânticas concretas, em que percebemos a relação semântica entre determinados pares, como Agente/ Ação, Possuído/Possuidor, etc. e buscar a maneira de exprimir formalmente essa relação. Isso obedeceria às idéias do lingüista Fillmore e  sua Gramática de Casos, que hoje é trabalhada como Papéis Temáticos.

Essa linha de trabalho é mais racional e se aproxima de uma linha mais natural de aprendizagem.

Pode-se perfeitamente organizar um método fundamental do estudo de qualquer língua, seja viva ou morta dentro dos moldes dessa linha. O método que usei nos anos 68 a 72 situava-se dentro dessa linha. Infelizmente, afastei-me dessa linha, para elaborar métodos mais impregnados de noções lingüísticas. Hoje, voltei a ela.

 

OS PROBLEMAS FONÉTICO-FONOLÓGICOS

Durante muito tempo, a minha preocupação como docente de latim, no que diz respeito aos aspectos fonético-fonológicos da língua latina, se referiam unicamente a uma pronúncia correta das consoantes (na pronúncia chamada restaurada). Não voltava minha atenção nem à pronúncia correta das vogais, nem ao problema do agma[1], e muito menos a uma transcrição fonética do latim dentro de um sistema fonético internacional.

Minha atenção voltava-se para a observação de vogais longas /breves, (por posição) unicamente para a observação do ritmo de poemas latinos ou para a tonicidade dos vocábulos. Ora, a quantidade das vogais por natureza é importantíssima para perceber a evolução das mesmas no português, e principalmente no espanhol, no francês, no italiano e no romeno.

Por essa razão, em minas aulas e escritos defendi a importância científica da transcrição fonética de textos latinos, tanto da variedade culta, como da variedade popular do latim. Adotei, para isso, o sistema do IPA, que pode, aliás, ser reproduzido no computador.

Obras como Fonética Histórica do Latim, de Ernesto Faria ou a obra tão meritória Dicionário Latino-Português, de nossos colegas Amós & Airto só teriam a ganhar se nelas aparecessem transcrições fonéticas.

Em nossa penúltima produção didática do ensino de latim, intitulada Esruturas Básicas do Latim Culto, as Sententiae, que aparecem no início de cada lição são apresentadas em quatro linhas. Na primeira linha, a Sententia  aparece em letras capitais; na segunda linha, em minúsculas; na terceira linha, em transcrição fonética; na quarta linha, em tradução portuguesa.

Apresento aqui alguns exemplos:


 

DISCIPVLVS LIBRVM MAGISTRAE REDDIT.
Discipulus librum magistrae reddit.
[
dIs;kipUlUs ;librUm ma;gistraj ;dat]
O aluno devolve o livro à professora.

 

IMPERATOR GLADIVM MILITI TRADIT.
Imperator gladium militi tradit.
[ImpE;r7tOr ;gl7dIUm ;milItI: ;tr7:dIt]
O comandante entrega a espada ao soldado.

O meu último método, que está sendo elaborado, recolhe as experiências já realizadas e, na minha opinião é o melhor, do ponto de vista didático.

Apresento alguns exemplos.

LIBRVM CAPIO                               LIBRVM TOLLO
Librum capio.                                     Librum tollo.
[
librUm ;k7pIo:]                           [librUm ;tOllo:]
Pego (=estou pegando) o livro.        Levanto o livro.

LIBRVM MOVEO                             LIBRVM IACIO
Librum moueo.                                   Librum iacio.
[
librUm ;mOwEo:]                         [librUm ;j7kIo:]
Movimento o livro.                             Jogo o livro.

 

A VARIEDADE POPULAR DO LATIM

As gramáticas latinas pouca ou nenhuma importância deram à variedade popular do latim. Essa posição correspondia à linha geral de estudos lingüísticos, que só valorizava as variedades cultas das línguas. A valorização das variedades populares deve muito ao lingüista Labov, com seu variacionismo.

Os antigos romanos já constatavam as variedades de linguagem popular, mas sempre as estigmatizaram. No estudo mais moderno do latim, as variedades populares aparecem tratadas sempre como latim vulgar, termo que traz em seu bojo sempre algo depreciador.

Ora, o estudo das variedades populares do latim é importantíssimo para a compreensão dos vários processos que transformaram o latim em línguas românicas.

Pelo menos, alguns itens deveriam ser inseridos no estudo do latim: a) os processos fonéticos das vogais, especialmente dos ditongos (crescentes e decrescentes); b) processos fonéticos das consoantes; c) processos morfológicos dos casos; d) processos morfológicos de alguns tempos verbais.

Isso pressupõe um conhecimento básico da fonética e fonologia da variedade culta, com a devida habilidade de operar transcrições fonéticas.

 

CONCLUSÃO

Neste minicurso, apontamos algumas linhas utilizadas na didática do latim por vários discentes. Incluímos aí várias experiências realizadas pelo autor nesse campo, com as várias produções do mesmo.

Apresentamos a antinomia possível de input inicial: teoria x texto ou texto x teoria.

Levantamos outra antinomia: uso de língua intermediária  x não uso de língua intermediária (método direto).

Essa segunda alternativa nos leva ao tratamento do latim semelhante ao tratamento de qualquer língua moderna. Isso nos leva à busca de recursos e técnicas mais atualizadas.

Acentuamos a necessidade do estudo aprofundado da fonética latina, incluindo a necessidade da operação de transcrição fonética moderna.

 

BIBLIOGRAFIA

BOURCIEZ, É. Éléments de linguistique romane. 3e. éd. rév. Paris: Klimcksieck, 1950.

CANÇADO, M. Um estatuto teórico para os papéis temáticos. In: MÜLLER, A.L. Semântica formal. São Paulo: Contexto, 2003.

COUTINHO, I.L. Gramática histórica. 6ª ed. rev. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1970.

DOCKHORN, N.. Sermo latinus facilis: gradus primus. Nova Iguaçu: UNIG, 1999.

––––––. Sermo latinus facilis: gradus secundus. Nova Iguaçu: UNIG, 2001.

FARIA, E. Fonética histórica do latim. 2ª ed. rev. aum. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1957.

––––––. Gramática superior da língua latina. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1958.

––––––. Introdução à didática do latim. Rio de Janeiro: FNF, 1959.

LABOV,W. Sociolinguistique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1976.

SILVA, T.C. Fonética e fonologia do português. São Paulo: Contexto, 1999.

VÄÄNÄNEN, V. Introducción al latin vulgar. Trad. Manuel Carrión. Madrid: Gredos,1967.


 

[1] Agma é a representação da nasalidade velar no grego e, freqüentemente, no latim.