O léxico no dialeto carcerÁrio

Maria Lívia Mexias Siebiger (USS)

 

O trabalho a ser apresentado tem como referência o léxico, visto como parte viva da língua. Ele está em constante movimento, incorporando palavras novas e registrando novos significados para palavras já existentes, mas também constatando que outras deixam de ser usadas e, com isso, são esquecidas pelo falante. O léxico de uma língua não é homogêneo: usamos palavras típicas da língua falada, palavras típicas da língua escrita, palavras técnicas, palavras antigas e palavras novas. Estas, chamadas neologismos, são o reflexo de como a língua acompanha as inovações da nossa sociedade. Ao estudá-los, estamos analisando, não só os processos de formação de novas palavras, como também a evolução dessa sociedade. O Léxico constitui um inventário aberto isto é pode ser enriquecido a cada momento por criações dos usuários. Como sabemos o homem vive em sociedade. Comunicação e sociedade relacionam-se intimamente, pois uma língua só existe se há uma comunidade que a utiliza. Dentro de uma língua, temos registros diferentes e o que vem a ser estudado neste trabalho são as variantes dialetais de uma determinada comunidade lingüística. Cada comunidade possui traços marcantes e particulares, acompanhando as suas diferenças geográficas, etárias, sociais etc. e o fato central deste estudo é a participação humana nessas diferenças. É impossível pensar o discurso sem focalizar os sujeitos envolvidos em um contexto de produção.

No presente trabalho iremos observar o dialeto carcerário e tentaremos entender seu uso e o porquê de seus códigos. Nossa pretensão é definir o léxico carcerário, delinear, exemplificar e desvendar códigos existentes nessa comunidade. Para fortalecer nossa idéia embasar-nos-emos em autores que também tentam observar o discurso e seus usuários, como por exemplo: Fernando Tarallo, com A pesquisa sócio – lingüística; Discursos de identidades, com organização de Luiz Paulo da Moita Lopes e participação da professora da USS, Rogéria Costa de Paula. Para falarmos sobre o estudo do léxico, buscamos ajuda nas obras de Eugenio Coseriu sobre lexicologia e lexicografia e semântica estrutural.

A língua é viva e está sempre aberta a mudanças, estrangeirismos, neologismos, empréstimos, gírias e dialetos. Léxico é a parte da língua que compreende tudo isso, no aspecto vocabular, ou seja o nosso vocabulário corrente e tudo o mais que pode vir a surgir. E a cada momento surgem novas palavras ou novos usos para as mesmas.

Toda língua dispõe de um vocabulário, ou léxico, que é complementar à gramática, na medida em que o vocabulário não só lista os lexemas da língua (indexados pela forma de citação ou radicais ou, em princípio, qualquer outra forma capaz de distinguir um lexema de outro), como também associa a cada lexema todas as informações necessárias às regras da gramática. Essas informações são de dois tipos: sintáticas e morfológicas. Por exemplo, num vocabulário latino, os substantivos aparecem acompanhados de informações sobre o gênero e a declinação a que pertencem, enquanto as preposições se fazem acompanhar de informações quanto ao caso por elas regido.

Como falantes de uma língua, temos a impressão de que ela é estática. Essa aparência, no entanto, não é gratuita. Segundo Martinet, em Elementos de lingüística geral, “Tudo conspira para convencer os indivíduos da imobilidade e homogeneidade da língua que praticam: a estabilidade da forma escrita, o conservantismo da língua oficial e literária, a incapacidade em que se encontram de se lembrarem de como falavam dez ou vinte anos antes.” (1975: 77)

Vemos, assim, que, nesse processo de mudança lingüística, há o que chamamos de inovação, isto é, tudo aquilo que se afasta dos modelos existentes na língua. Dependerá dos falantes da língua a aceitação, isto é, a adoção dessa inovação, fato que levará à mudança na língua. Essas fases (inovação, adoção e mudança) confundem-se pelo fato de que quando tomamos consciência da inovação ela já foi adotada pelos falantes e, portanto, já ocorreu a mudança.

Não se pode, contudo, chegar ao indivíduo criador da inovação, nem ao momento em que ela ocorreu. Segundo Saussure (1999, passim), as inovações devem-se à coletividade dos indivíduos, à massa falante. Isso acontece, obviamente, devido às mudanças de ordem social, que não são observadas independentemente dos indivíduos nelas envolvidos. Na verdade, as modificações sociais são feitas pelos indivíduos e adotadas pelo grupo, inclusive as modificações na linguagem.

De modo a atender às transformações socioeconômicas e culturais, a língua se vale da criação de novos termos, ou de novos significados para termos já existentes. Esse fenômeno recebe o nome de neologia, processo de criação lexical, cujo produto é o neologismo. A palavra nova pode ser formada através de mecanismos da própria língua, ou por empréstimo.

Observa-se, também, que a definição de neologismo vem sempre vinculada a uma tipologia (neologismos formais, semânticos, de vocábulo, de significação, de sentido, completos, incompletos, estrangeiros, intrínsecos e extrínsecos, científicos, literários, populares).

Independente da tipologia, o importante é notarmos que, nos neologismos, encontramos o verdadeiro retrato da sociedade de uma determinada época. Neles estão presentes novidades no que diz respeito à economia, à política, aos esportes, à arte, à tecnologia, à faixa etária.

Abordaremos, a seguir, conceitos e visões de alguns estudiosos que se dedicaram aos neologismos:

Se o neologismo for bastante freqüente, é inserido em obras lexicográficas e considerado parte do sistema lingüístico. Ocorre, no entanto, que há certa arbitrariedade no que se refere ao modo de agir dos lexicógrafos. Freqüentemente, termos muito usados são esquecidos e aqueles pouco difundidos fazem parte de seus dicionários. Apesar disso, essas obras lexicográficas são os parâmetros disponíveis para tomarmos conhecimento se um item léxico pertence ou não ao acervo de uma língua. Segundo Nelly Carvalho, quando se fala em neologismo, temos sempre como referência conceitos como mudança, evolução, novidade, novo, criação, surgimento, inovação. Além de testemunhar a criatividade e a imaginação fértil de seus falantes, os neologismos têm profunda ligação com as manifestações do mundo exterior e as mais diversas áreas de conhecimento (1987: 09). A autora chama, ainda, “neologismos formais” as palavras que ainda não aparecem no verbete dos dicionários. Sob essa denominação encontram-se os casos de derivação, composição, redução, siglas, empréstimos, derivação imprópria. Encontramos também, em outros autores, a expressão neologismo lexical. Para Nelly Carvalho, "a maneira mais simples e econômica de surgimento de uma palavra não é através de construção e sim de mudança de sentido." (1987: 23) Ainda segundo a autora, "são conceitos novos, introduzindo novos hábitos, ou velhos hábitos vistos por um prisma diferente". Esse tipo de neologismo é, aqui, chamado de neologismo conceptual ou semântico. Para Maria Aparecida Barbosa, em "Da neologia à neologia na literatura", o estudo da renovação lexical é muito importante na medida em que mostra de maneira clara as transformações (apud Isquerdo & Oliveira, 1998: 32) pelas quais o sistema de valores compartilhados por um grupo passa. Segundo ela, “não é pelo fato de uma palavra ter caráter inédito que passa a ser imediatamente considerada neológica”. Com efeito, há vários momentos importantes na criação do neologismo: a) o instante mesmo de sua criação; b) o momento pós-criação, que se refere à recepção, ou ao julgamento de sua aceitabilidade por parte dos destinatários, bem como sua inserção no vocabulário e no léxico de um grupo lingüístico cultural; c) o momento em que começa a dar-se a sua desneologização. Na criação lexical, devem distinguir-se duas fases: aquela que considera o neologismo no instante em que é produzido no quadro enunciativo e aquela em que é apreendido e registrado pelos falantes-ouvintes do grupo. Para Isquerdo & Oliveira (1987: 23 e 35), a partir do momento em que o neologismo é criado, ele só passa a ter esse estatuto, se for usado generalizadamente, a ponto de ser um vocábulo disponível para, pelo menos, um grupo de indivíduos e se, depois, começa a ser empregado, difundindo-se. Assim, segundo as autoras, o neologismo pode completar seu percurso, perdendo a consciência de fato neológico, ou seja, pode ocorrer a desneologização. Isso vai ocorrendo na medida em que seu uso aumenta, diminuindo, portanto, seu impacto de novidade lexical. A autora ainda chama a atenção para o fato de o conceito de neologismo ser relativo, já que pode ser analisado do ponto de vista diacrônico, diatópico, diastrático e diafásico. Segundo a perspectiva diacrônica, o neologismo criado em determinada etapa da língua, caso não desapareça, integra-se à norma, isto é, se desneologiza. Se quisermos conhecer os neologismos de uma determinada época, será preciso ter como parâmetro fontes dessa época, como jornais, revistas, cartas e dicionários para confrontá-los com as de etapas posteriores.

O neologismo diatópico, ainda segundo Isquerdo & Oliveira, pode ocorrer das seguintes maneiras:

- Um neologismo pode ser criado, por exemplo, numa única região, ficando a ela restrito.

- Um vocábulo pertencente a uma norma regional e exclusivo dessa região, às vezes até um arcaísmo, passa para outra região e se torna conhecido nesta, onde é adotado com função neológica. Trata-se de um fenômeno comum, favorecido pelas correntes migratórias, pelo comércio ou pela difusão através da mídia, etc., como, por exemplo, no caso do vestuário, das comidas típicas, da dança (op. cit., p. 37).

Diante do exposto, podemos observar que o estudo do léxico nos mostra como o falante pode ser criativo a partir dos recursos oferecidos por uma língua.

Desse modo, vemos a possibilidade de enriquecermos a língua com os neologismos. Isso nos mostra que o léxico é a parte viva da língua, que está sempre aberta a inovações oriundas da diversidade dos seus usuários.

A língua é um dos traços mais marcantes de uma cultura, é a identidade de um povo. É usada não só para comunicar, mas também para restringir a comunicação e se proteger. A linguagem de certos grupos, ou seja o uso que fazemos da língua é uma forma ainda mais restrita de comunicação. Dentro do nosso idioma (Língua Portuguesa) temos inúmeras linguagens e dialetos denominados como variações lingüísticas. Temos variantes regionais, etárias, por sexo, por classe social, por campo de trabalho etc.

O grupo aqui estudado é o efetivo carcerário das mulheres do estado do Rio de Janeiro, no centro de triagem da Polinter feminina. A linguagem e os códigos usados por esse grupo é de difícil entendimento para os de fora, mas isso tem um motivo específico: proteger esse grupo e manter a ordem dentro da cadeia.

Em um grupo como esse, de excluídas e sofredoras, os códigos são a única forma de resgatar o mínimo de dignidade e preservar o resto da sua identidade. Como a maioria das detidas mora em favelas e morros do grande Rio, os códigos usados são provenientes dessas comunidades. Porém há determinados usos que só são pertinentes dentro da carceragem, como por exemplo boi, que é uma espécie de banheiro onde não há vaso sanitário e sim um buraco no chão; plim, código secreto para designar celular, uma vez que é proibido portar aparelhos telefônicos dentro de presídio, ficando o infrator sujeito a pena legal; perereca que é um artefato elétrico usado para esquentar água para o preparo de comidas instantâneas, preparo de café, leite, etc. o que também é proibido, pois pode causar curto circuito e, conseqüentemente, incêndios. Um código curioso e criativo é cantar a música Parabéns pra você, batendo palmas para abafar brigas e discussões, com a finalidade de os carcereiros não ouvirem e proteger o grupo de represálias por parte dos policiais, sendo que nesses acertos de contas nem mesmo outras presas podem interferir e são todas obrigadas a cantar e só assistir à briga.

Podemos observar, através desses exemplos, que o uso de códigos por vezes se torna imprescindível para sobrevivência e relativo bem-estar do grupo e o cumprimento das leis dessa comunidade marginal.

Corpus

Lexias Simples

Barriguda - grávida
Blindão - seriedade
Boi - banheiro
Boldinho - maconha boa
Book - solitária
Buceteira - mulher que transporta droga, celular, ou arma para penitenciária mas-culina, dentro da vagina
Bucha - quem assume a culpa de outro, por medo, ameaça, ou para proteger al-guém
Cadeião - muitos anos de cadeia
Cadeiera - quem já foi presa várias vezes
Caô, caozada - mentira, papo furado
Carrinho - transferência para outra penitenciária
Carrocinha - camburão
Catuque - carta, bilhete, meio de comunicação dentro de grandes presídios
Comarca - pedaço do chão em que a pessoa dorme
Comédia - pessoa que trabalha, que não é do crime
Correria - forma de ganhar dinheiro na cadeia, lavagem de roupa , faxina, tráfico etc.
Cubículo, xadrez - cela
Dimenor - menor de idade
Entocar, tretar - esconder
Estocada - perfuração no corpo de outra pessoa com artefato rudimentar feito dentro da cadeia
Etapa - comida dada pelo governo
Faqueiro - quem fura os outros
Fervo - bagunça
Jabiraca - papel higiênico enrolado, que se acende no boi, para evitar mau cheiro
Lili - liberdade
Malote, paco - dinheiro
Maria, comadre - lacraia (acredita-se que, ao se falar o nome do animal, esse será atraído)
Medina - pátio
Mickey - rato
Mula - quem transporta droga
Mundão - todo lugar fora da cadeia
Perereca - artefato de fios e pilhas usado, para esquentar água ou qualquer líqui-do
Plim - telefone celular
Quieto - parte da cela isolada por lençol, como se fosse um quarto
Quilingar - furtar dentro da cadeia
Quilingue - aquele que furta na cadeia
Quiquita - coceira , sarna
Rodar - ser presa
Saideira - quem sai correndo com o roubo
Sapatão - travesti, mulher que se veste e age como homem
Sereiar - dormir espalhada na cela
Sucata - comida que a família traz
Teresa - corda feita de lençol
Tratar - ficar com sapatão
Vacilão - cinzeiro
X9 - fofoqueiro, aquele que denuncia, dedura
Xisnovear - denunciar, intrigar

Lexias Compostas

Balangar cadeia - gritar, pedir socorro, fazer rebelião
Banho de sol - sair da cela para qualquer finalidade, não necessariamente ficar ao sol
Botar a boca na grade - se queixar com o carcereiro
Cadeia de barbante - prisão onde se permitem muitas regalias e com pouca segurança, onde se negocia com os carcereiros
Cair no sistema - ir para a penitenciária
Dar a roupa - dar cobertura
Dar mole nos papos - falar o que não deve
Dormir de valete - quando a cadeia está cheia é necessário que se durma um pra cima e outro pra baixo para todos caberem
É nós que tá, Fé em deus - saudação do comando vermelho
Foi de rua - saiu livre da cadeia
Jogar no pisa - colocar o produto do furto dentro da calça
Largar o aço, aplicar - dar tiro
Meter 155 - furtar
Meter o pé, dar o pinote - fugir
PJL - paz, justiça e liberdade
Rachar a cara - passar vergonha
RL - usado para encerrar a conversa quando o assunto é sério, sigla das iniciais do fundador do comando vermelho, Rogério Lemgruber
Sujeita mulher - mulher de honra, de palavra, valente.
Tá agarrado - está preso
Tirar a diferença, cair no miolo - briga, acerto de contas
Tirar cadeia - ficar preso

 

 

Lexias complexas

Quando se canta a música "Parabéns pra você" a finalidade é abafar a confusão, para que o carcereiro não ouça o barulho da briga. - Música de despedida quando alguém recebe alvará de soltura:

É, agora só falta o meu, logo, logo vai chegar a minha vez e eu vou poder gritar: fé em Deus, meu alvará, aí eu retorno pro mundão, rever meus amigos de questão, os amigos de questão, que saudade do mundão.

Conta pra mim como tá lá fora. Fim de semana ainda rola bola? Neguinho, como tá lá fora? Eu penso em vocês toda hora. E minha mãe, como é que está? Faz um tempo que não vem me visitar, tenho tanto pra falar, tenho tanto pra falar!

E uma lágrima rolou, colega de cela perguntou: Qual foi, mana, o caô? Qual foi, mana, qual foi? É que eles calam nossa voz, meu Deus, é um massacre em cima de nós. Mas, eu ainda vou poder gritar: Fé em Deus meu alvará!!!!

 

REFERÊNCIAS

ALVES, Ieda Maria. Neologismo. São Paulo: Ática, 1990..

CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. Dicionário de lingüística e gramática. 15ª ed. Petrópolis: Vozes, 1986.

––––––. Princípios de lingüística geral. 7ª ed. Rio de Janeiro: Padrão, 1989.

CARVALHO, Nelly. Empréstimos lingüísticos. São Paulo: Ática, 1989.

COSERIU, Eugênio. Sincronia, diacronia e história. Rio de Janeiro: Presença/EdUSP, 1979.

COSERIU, E. “A perspectivação funcional do léxico”. In VILELA, M. Problemas de lexicologia e lexicografia. Porto: Livraria Civilização Editora, 1979.

ISQUERDO, Aparecida & OLIVEIRA, Ana Maria (org.). As ciências do léxico. Mato Grosso do Sul: UFMS, 1998.

LOPES, Luiz Paulo da Moita. Discursos de identidades. Rio de Janeiro: Mercado de Letras, 2003.

MARTINET, André. Elementos de lingüística geral. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1971.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1999.

TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolingüística. São Paulo: Ática 1998.