Gêneros discursivos e alfabetização:
um olhar sobre sua relação
na proposta pedagógica do livro didático
José Teixeira Neto (UFS)
INTRODUÇÃO
Para falar, compreender o outro, ou fazer-se compreender através da língua oral ou escrita, é necessário que o falante tenha domínio da forma como se organizam os enunciados, bem como das situações de produção de cada um deles. A criança, quando chega à escola em fase de alfabetização, já utiliza determinados comportamentos lingüísticos que precisam ser desenvolvidos e aprimorados a partir de manifestações de uso da própria língua.
Nesse sentido, as discussões sobre o processo de alfabetização têm suscitado a compreensão do que realmente é alfabetizar. Ao longo dos anos, a prática pedagógica desenvolvida nas classes de alfabetização tem sido voltada para a sistematização do “B + A = BA”. Porém, pensar esse processo como apenas a descodificação de palavras ou a junção de duas ou mais letras é negar o caráter comunicativo da língua. É, sobretudo, condicionar o aluno a um mero tradutor do código escrito sem a compreensão dos mecanismos da comunicação lingüística. Por isso, o papel do professor alfabetizador é muito importante, tendo em vista que ele é o responsável pelo desenvolvimento lingüístico dos alunos que chegam à escola nessa fase. Segundo Soares (2003, p. 16), “a língua escrita não é uma mera representação da língua oral”, acrescente a isso o inverso, o que nos faz pensar em alfabetização como um processo que possibilita o domínio do código lingüístico a partir da leitura e da produção escrita.
Muitas vezes, chegamos a uma sala de aula e lá encontramos a exposição de cartazes com letras de vários tipos: maiúsculas, minúsculas, cursivas, etc. Sabe-se que esse material se faz necessário, entretanto não é suficiente para a criação um ambiente alfabetizador.
Compreender o processo de alfabetizar requer a compreensão do conceito de língua. Se esta for entendida como um instrumento de comunicação e interação social, aquele deverá ser visto como uma proposição de habilidades comunicativas, isto é, a preparação do aluno para utilizar a língua nas diversas situações de uso da linguagem. Essa habilidade pode ser adquirida a partir da inserção das várias formas de manifestação da língua escrita, ou seja, os gêneros discursivos. Nessa perspectiva, Ferreiro (apud Tfouni, 2002: 12) afirma que a escrita não deve ser encarada como “um código de transcrição gráfica das unidades sonoras, mas sim como um sistema de representação que evolui historicamente”. Nesse sentido, alfabetizar adquire uma dimensão que envolve além dos aspectos lingüísticos, os de natureza social, cultural e histórica. O aluno é um ser social que, ao chegar à escola, traz consigo seus hábitos culturais, adquiridos ao longo da sua convivência com a família e com a comunidade na qual está inserido, o que mostra, segundo Azenha (2006: 48), esse aluno já deter uma grande competência lingüística, muitas vezes, desconsiderada pelo professor.
O fracasso escolar em alfabetização se explica, talvez, pela irrelevância com que são tratados tais fatores enquanto é ensinado o código escrito. Assim, alfabetizar torna-se uma prática vã, impossibilitando o aluno de exercer uma atividade lingüística que atinja os propósitos sócio-comunicativos da língua, já que apenas a descoberta das primeiras letras não é suficiente para o alfabetizando utilizar a língua, oral e escrita, relacionando-se “com os diversos aspectos do conhecimento discursivo e lingüístico nas práticas de recepção e produção de linguagem” (PCN, p. 37).
Alfabetizar ensinando os alunos a identificarem letras ou mesmo juntarem-nas ou, ainda pior, pedir que eles separem as sílabas das palavras pode se tornar uma atividade mecânica e sem sucesso no tocante à utilização da língua nas situações de comunicação verbal. O simples conhecimento de letras e a junção delas de forma isolada do contexto não dão conta da infinidade de formas de utilização da linguagem exigidas pelas atividades humanas no dia-a-dia do falante.
Ao permitir que o aluno compreenda e interprete o que venha a ler, além de comunicar-se utilizando a língua de acordo com as suas necessidades, o professor estará garantindo a esse aluno a condição de atuar na sociedade em que vive de modo a atingir seus objetivos através do uso consciente da língua. Noutras palavras, alfabetizado estará o indivíduo que conseguir utilizar a língua não como apenas um código escrito, mas como um instrumento com o qual ele possa agir e reagir diante das situações comunicativas com que se deparar no seu dia-a-dia, levando em consideração o contexto de uso da linguagem.
Assim, preocupado em discutir questões inerentes ao processo de alfabetização das crianças nessa fase, realizamos uma análise sobre as atividades propostas em três livros didáticos, na tentativa de verificar a concepção de alfabetização que cada um deles apresenta.
O GÊNERO DISCURSIVO
Os estudos sobre os Gêneros discursivos, ainda pouco enfocados nos cursos de graduação das universidades brasileiras, têm proporcionado muitas discussões acerca do ensino e da aquisição da língua materna numa perspectiva em que os aspectos social, cultural e histórico se imbricam no processo de desenvolvimento das habilidades comunicativas. Marcuschi (2005: 19) afirma que “os gêneros contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia-a-dia”; Schneuwly e Dolz (2004) desenvolvem a “idéia de que o gênero é que é utilizado como meio de articulação entre as práticas sociais e os objetos escolares, mais particularmente no domínio do ensino da produção textos orais e escritos”. Apesar de haver muitas leituras que discutem o assunto em questão, optamos por uma definição de gênero discursivo, considerada mais abrangente e defendida por M. Bakhtin (2003).
A todo o momento, estamos diante de situações que exigem determinadas formas de expressão, oral ou escrita. Cada uma suscitando uma habilidade lingüística apropriada. Assim, quando se quer dar um conselho, opta-se pela persuasão; quando se pretende vender algo, emprega-se a linguagem publicitária; quando se pretende dar as regras de um jogo, utiliza-se a instrução. Em fim, essas e outras atividades humanas exigem formas específicas de utilização da linguagem, isto é, suscitam “tipos relativamente estáveis de enunciados” (Fiorim, 2006: 61).
Segundo Bakhtin (2003: 262), “cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados”, aos quais o autor chama de gêneros do discurso. Nesse sentido, podem-se entender os gêneros discursivos como uma forma de enunciado que vai se adequar a cada uma das necessidades e situações de comunicação lingüística. Partindo desse pressuposto, pode-se pensar em alfabetização como um processo que, além de ensinar as “primeiras letras”, dê condições ao indivíduo de utilizar a língua com autonomia nas diversas situações lingüístico-comunicativas, tornando-o capaz de ler literal e criticamente textos alheios e de criar os seus de acordo com os propósitos do processo de comunicação.
Schneuwly e Dolz (2004) partem da hipótese de que “é através dos gêneros que as práticas de linguagem materializam-se, nas atividades dos aprendizes.” Isso demonstra que o desempenho lingüístico do aluno não se constrói a partir de informações sobre o código escrito. É preciso, pois, que o aluno compreenda a situação e as condições de produção do que está lendo, para poder se tornar um leitor crítico e consciente do seu papel enquanto usuário da língua materna.
O GÊNERO DISCURSIVO E O LIVRO DIDÁTICO
O livro didático, doravante LD, tem sido um dos instrumentos mais utilizados tanto na escola pública, quanto nas particulares. Essa importância dada a ele provém da necessidade que tem o professor de se guiar pelas suas sugestões de atividades como subsídios para suas aulas. Isso tem transformado uma grande parte dos professores em transmissores de conteúdos, muitas vezes, distantes dos objetivos a serem atingidos; no caso da alfabetização, aquisição de habilidades para leitura, escrita e as chamadas práticas sociais de linguagem.
Para este estudo, foram analisados três LD pertencentes a editoras distintas: Alfabetização, de Luci Mendes de Melo Bonini, da Editora Ática (2006); Alegria de saber, de Lucina Maria M. Passos, da Scipione (2006); e Alfabetização: todas as letras, de Marisley Augusto, da Atual Editora (2004). Nessa análise, levaram-se em consideração a metodologia e os recursos empregados no processo alfabetização. Procuramos observar os textos e as atividades propostas para que o aluno seja alfabetizado não para apontar “defeitos” do LD, mas propor uma reflexão acerca da metodologia aplicada no processo de alfabetização, levando em consideração a língua enquanto instrumento de comunicação e a aquisição das práticas do letramento.
De acordo com os PCN, o aluno precisa ler, embora não saiba ler, e escrever, apesar de não saber escrever. Isso implica não só colocar o aluno diante dos diversos tipos textuais, como ainda criar situações que exijam a necessidade de se comunicar construindo enunciados, a fim de que ele possa compreender o texto não como um conjunto de palavras ou frases, mas como um instrumento que está relacionado com cada uma das situações reais de utilização da linguagem. Segundo Teberosky (1998: 44), não é necessário que o aluno escreva bem ou que não cometam erros, mas que adquira diferentes tipos de linguagem e saibam utilizá-los. Considerar alfabetizada a criança que apenas identifica letras em palavras, ou que consegue juntar sílabas sem compreender o sentido e/ou o contexto de uso dessa palavra é desconhecer o caráter dialógico da língua.
Quanto à proposta do LD, podemos verificar que as atividades desenvolvidas estão voltadas para um conhecimento lingüístico superficial, como mostram as mencionadas a seguir. O livro 1, Alfabetização, utiliza vários textos, inclusive, canções conhecidas se não de todos os alunos, mas de uma grande parte deles, entretanto as atividades aplicadas limitam-se à mera identificação de letras:
Texto do livro 1- Alfabetização
NO BARRACO DO CARRAPATO
– Mico Maneco, cadê meu sapato? – Ficou sujo de barro, no meio da terra, no barraco do carrapato. – Burro, sabe como se vai até o barraco do carrapato? – Sei. Sobe no meu carro e eu corro. Subo a serra e vou ao morro.
Ana Maria Machado e Claudius. |
Quando se lê a primeira questão, “Você e dois colegas vão ler as falas de cada personagem do texto”, espera-se que vai haver um trabalho de exploração do texto mais voltada para as questões de uso da linguagem, entretanto a atividade parece se esgotar apenas na leitura, pois logo em seguida nos deparamos com uma outra questão que diz “Copie do texto palavras escritas com rr”. Isso evidencia uma preocupação puramente com a localização de letras no texto, o que pode se tornar uma atividade sem resultados para a criança, já que ela pode encontrar a letra não por estar consciente da sua funcionalidade, mas por mera semelhança com a da questão. O aluno olha para a letra e vai procurar a que aparece igual, no texto. Não se pretende negar que é importante a demonstração dos elementos que compõem o código lingüístico, mas só a localização de letras nos textos não é suficiente para alfabetizar o indivíduo. Segundo Cardoso e Ednir (2002: 45), em experiência realizada em sala de alfabetização, “em vez de trabalharem com fragmentos, isto é, com letras, sílabas ou palavras, as crianças, desde o início, relacionam-se com textos e com as possibilidades da língua escrita.” Daí, ela passa a ver sentido naquilo que lhe está sendo apresentado e se sentirá estimulada a usar a língua com criatividade e segurança.
Observemos outra atividade, agora no livro 2, Alfabetização:
Texto do livro 2 - Alegria de saber Se a terra fosse mãe, seria a mãe das sementes, pois mãe é tudo que abraça, acha graça e ama a gente. Cada mãe é diferente: mãe verdadeira, ou postiça, mãe vovó e mãe titia. Dona mamãe ralha e beija, erra, acerta cozinha, trabalha fora... Sylvia Orthof |
Nesse outro texto, através de cuja leitura se poderia levar o aluno à reflexão do papel da mãe no contexto familiar por meio da conversa na sala de aula, além de pedir aos alunos que falem sobre suas mães ou mesmo construam desenhos que ilustrem o seu lar dando enfoque à posição da mãe no seio familiar, propõem-se questões como “Leia o texto com o professor e os colegas. Depois, circule a palavra mãe toda vez que ela aparecer” e “Quantas letras tem a palavra mãe? E a palavra mamãe?” Essas atividades podem transformar o aluno em um simples “caçador” de palavras no texto. Segundo Soares (2003: 16), “não se consideraria alfabetizada uma pessoa que fosse apenas capaz de decodificar símbolos visuais em símbolos sonoros, lendo, por exemplo, sílabas ou palavras isoladas (...)”. Isso nos faz perceber que a simples descodificação de palavras pode tornar o aluno um leitor que não consegue entender o que lê nem produzir textos com sentido. Essa realidade se percebe no momento em que damos uma prova, por exemplo, a um aluno dito alfabetizado, e ele, ao ler a questão, pergunta o que é para ser feito. Tal comportamento significa que ele descodificou as palavras, mas não atribuiu sentido, já que lhe faltaram habilidades de uso da linguagem.
De igual modo, acontecem com as atividades ligadas à alfabetização no terceiro livro analisado, Todas as letras:
Texto do livro 3- Todas as letras PINTOR DE JUNDIAÍ TIM, TIM, TIM QUEM BATE AÍ? SOU EU, MINHA SENHORA O PINTOR DE JUNDIAÍ PODE ENTRAR E SE SENTAR CONFORME AS PINTURAS NÓS IREMOS CONVERSAR (...) Cantiga popular |
As atividades que se propõem para esse texto não atendem a critérios básicos para o processo de alfabetização, uma vez que a criança nessa fase de escolarização não tem noção do que seja acento nem da sua função no texto, conforme exigem as questões aplicadas pelo autor do livro Todas as letras: “Você encontrou palavras acentuadas na cantiga? Circule-as.” e “Procure outras palavras acentuadas em jornais e revistas. Recorte-as e cole-as no seu caderno”. Sem negar a importância do estudo da acentuação gráfica como um dos instrumentos para se aprender a correta grafia e pronúncia das palavras da língua, acredita-se que esse tipo de questão deve ser exigido em séries mais elevadas, situação em que o aluno já possua um domínio maior das questões lingüísticas.
Após a observação nos livros aqui analisados, pôde-se perceber uma preocupação bastante acentuada com a aprendizagem da língua a partir de práticas pedagógicas que tratam a língua em seus aspectos formais, sem uma preocupação com as circunstâncias em que se podem utilizar a linguagem. O trabalho com os gêneros textuais variados faculta ao aprendiz a oportunidade de ele sentir-se um usuário ativo e consciente do seu papel enquanto leitor e produtor de textos dentro da escola ou fora dela.
Quanto ao trabalho com os textos nos três livros, as atividades propostas não levam o aluno à reflexão sobre o conteúdo temático, nem ao estilo e muito menos à estrutura composicional de nenhum gênero textual. Talvez essa prática ainda esteja presente nos LD porque, até pouco tempo atrás, bastava o aluno escrever o nome e/ou conseguir fazer pequenas leituras, mesmo que não conseguisse compreender a mensagem, que já se poderia considerá-lo alfabetizado. Hoje, essa realidade mudou. Alfabetizar tornou-se um processo mais abrangente, “que não se esgota na aprendizagem da leitura e da escrita” (Soares, 2003: 15). A própria sociedade exige do cidadão habilidades lingüísticas que vão além do simples ler e escrever. Vivemos a era da informação, e o indivíduo precisa estar apto a lidar com ela. Para isso, ele precisa ter domínio das práticas de linguagem utilizadas pela mídia para que possa ler, compreender e emitir juízo de valor acerca do que lhe é informado.
Partindo da hipótese de que alfabetizar não se limita apenas levar o indivíduo à aquisição do alfabeto, nota-se que os textos utilizados nos três livros poderiam ser trabalhados sob a perspectiva dos gêneros discursivos, procurando desenvolver nos alunos habilidades comunicativas a partir da discussão e da descoberta das situações de produção de cada um dos textos trabalhados. Teberosky (1998: 108) propõe atividades que colocam a criança em verdadeiras condições de uso e compreensão do gênero do discurso:
Dividi a lousa em quatro partes, de tal maneira que pudessem escrever quatro crianças ao meso tempo. Interessava-me que o nível de realização dos quatro textos fosse diferente, pois dessa maneira podia fomentar a discussão e a reflexão sobre como se deve escrever a letra de uma música. (Teberosky, 1998: 108).
Na sugestão acima, a autora propôs a atividade a partir do trabalho com a letra de música, entretanto, podem ser utilizados outros gêneros, como a carta, o bilhete, o cartão postal, entre outros. O que importa é colocar a criança em contato constante com os gêneros discursivos não para ela estudar o código lingüístico a partir de sua estrutura fragmentada, mas desenvolver habilidades de utilização desse código conforme as necessidades comunicativas. Além disso, quanto mais o aluno mantiver contato com uma variedade de gêneros textuais, mais ele desenvolverá a capacidade comunicar-se utilizando a língua em seus aspectos discursivos. Segundo Marcuschi (2005, p. 22), “é impossível se comunicar verbalmente a não ser por algum gênero, assim como é impossível se comunicar verbalmente a não ser por algum texto”. Nesse sentido, partimos da idéia de que a escola deve criar um ambiente que promova situações de usos reais de leitura e escrita das quais o aluno possa participar ativamente e compreender os textos como um todo significativo e contextualizado.
Seguindo a mesma proposta de trabalho com crianças, Cardoso e Ednir (2002: 51) apresentam a seguinte atividade, desenvolvida por outra professora em uma sala de alfabetização:
Quando destaquei o uso de jornais ou revista em sala de aula, não quis apenas apresentar mais uma estratégia de trabalho e a possibilidade de uma nova atividade para os alunos. A atividade em questão foi apenas um exemplo de como colocar as crianças em contato com a linguagem do anúncio de jornal, que tem determinadas características muito precisas como a sedução e a persuasão. (Cardoso e Ednir, 2002: 51)
Com essa proposta de atividade sugerida pelas autoras, a criança se sentirá desafiada a lidar com as normas que compõem esse e outros gêneros textuais. Nesse caso, cabe ao professor selecionar os textos que vai levar para seus alunos, bem como criar as situações em que as crianças possam conhecer o código lingüístico ultrapassando os limites do estabelecimento da relação dos sons com as letras que os representam.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise aqui realizada levou-nos à conclusão de que há a necessidade de uma abordagem sobre alfabetização a partir da perspectiva do gênero discursivo, tendo em vista a importância da apresentação ao aluno das práticas sociais que se realizam através da linguagem. Isso implica escolher uma série de textos que representem as diversas situações de comunicação lingüística que ocorrem no dia-a-dia. Esses textos podem ser escolhidos de acordo com a realidade da criança que vai ser alfabetizada, a fim de que se torne mais fácil, para ela, a compreensão das condições de produção de cada um desses textos. Nesse sentido, podem ser levados para a classe de alfabetização recortes de propagandas de produtos que a criança conhece, bem como letras de música, cantigas de ninar, etiquetas e embalagens, que são portadores de textos que cumprem a função de informar, dizendo a composição do produto, fabricante, cuidados exigidos para seu funcionamento e manutenção, data de validade, modo de usar e de armazenar esse produto, etc. Portanto, a sala de alfabetização deve ser encarada como o lugar da comunicação, o que implica o planejamento de atividades que trate a língua em seus aspectos comunicativos e não em peculiaridades formais.
Apesar de as discussões já alertarem para essa nova realidade quanto ao processo de alfabetização, alguns LD ainda trazem atividades que não desenvolvem habilidades lingüísticas nas crianças. Servem apenas para torná-las conhecedores de letras e “ledores” de palavras sem compreender o sentido em que estão empregadas no texto. Por outro lado, se não é fácil encontrar LD que abordem a alfabetização na perspectiva do gênero discursivo, também não é fácil encontrar professores alfabetizadores conscientes dessa abordagem e que possam conduzi-la com ou sem o livro didático.
Com base na fundamentação teórica sobre o gênero discursivo aqui apresentada, acreditamos na importância de aprofundarmos mais o assunto em questão na tentativa de encontrarmos caminhos que possam desenvolver no aluno habilidades comunicativas a partir das práticas sociais da linguagem. Não se pretende com esse trabalho estigmatizar os vários tipos de exercícios de fixação de conteúdos propostos no ambiente escolar, mas alertar para o fato de que as práticas pedagógicas não devem se tornar mecânicas, advindas da idéia de que a criança aprende por meio da repetição e da fragmentação de conteúdos, herança do behaviorismo. Além disso, o que propomos é que não se usem os textos nas aulas de alfabetização como pretexto para a localização de letras ou palavras, mas como instrumentos para desenvolver no aluno habilidades comunicativas.
Desse modo, o que nos resta é aguardar que os autores de LD possam despertar para esse novo paradigma de alfabetização, propondo práticas pedagógicas que tratem a língua numa perspectiva dialógico-comunicativa e que os professores venham a compreender que o processo de alfabetização se realiza a partir de situações reais de comunicação lingüística, além de não se deixarem anular pelas sugestões única e exclusivamente dos LD. Nesse sentido, concluímos que são necessárias mudanças de posturas e de concepções dos professores e dos autores dos LD no que tange à aprendizagem da língua, para que possamos ter cidadãos letrados e capazes de resolverem situações que suscitem habilidades de utilização da linguagem na comunidade em que vivem, ou fora dela. Para isso, várias situações favoráveis, que facultem aos alunos uma grande diversidade de contato com a língua, podem ser desenvolvidas em sala de aula, basta que os professores alfabetizadores façam dessa proposta de trabalho o principal objetivo da escola.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CARDOSO, Beatriz; EDNIR, Madza. Ler e escrever, muito prazer! São Paulo: Ática, 2002.
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MARCUSCHI, Luiz Antonio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO, Ângela Paiva; MACHADO, Anna Rachel; BEZERRA, Maria Auxiliadora. Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.
SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim. Os gêneros escolares – das práticas de linguagem aos objetos de ensino. In: ROJO, Roxane; CORDEIRO, Glais Sales. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas:: Mercado de Letras, 2004.
SOARES, Magda. Alfabetização e letramento. São Paulo: Contexto, 2003.
TEBEROSKY, Ana; CARDOSO, Beatriz. Reflexões sobre o ensino da leitura e da escrita. Petrópolis: Vozes, 1998.
TFOUNI, Leda Verdiani. Letramento e alfabetização. São Paulo: Cortez, 2002.