O GUARANI E A INTERDISCIPLINARIDADE

Raquel Naveira (USU/

 

A palavra Guarani designa o membro da família dos guaranis, população indígena da América do Sul, que faz parte do grupo mais vasto dos tupis-guaranis e o idioma dos guaranis.

Os guaranis são de origem antilhana, ocuparam todo o Brasil do sul do Amazonas, penetrando também no Paraguai, na Bolívia, na Argentina e no Uruguai. Há divergências sobre a marcha seguida por este povo. Alguns afirmam que penetraram o Brasil através do curso do rio Paraguai. Lembramos que inicialmente o rio era chamado “Paiaguai”, pela definição guarani, por ser navegado pelos hábeis canoeiros Paiaguás, ribeirinhos que controlavam o rio Paraguai, definição castelhana. Na época da expedição de Pêro Lopes de Sousa ao Brasil  ao estuário do Prata, ocupavam a região litorânea entre Cananéia e a lagoa dos Patos, estendendo-se para o oeste até ao vale Paraguai-Paraná. Da antiga população guarani subsistem uns poucos grupos nos Estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Espírito Santo, mas constituem a grande maioria da população do Paraguai e do Território das Missões.

Os guaranis desempenharam papel importante na história da colonização européia do Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai.

A aldeia dos guaranis era constituída de uma a  quatro grandes cabanas retangulares, malocas sólidas,  cobertas de palha, podendo abrigar uma família constituída de cerca de cem pessoas.

As cabanas eram dispostas de forma irregular. O povoado era cercado por altas paliçadas destinadas a protegê-los de algum ataque.

Suas armas eram arcos, flechas, tacapes. Cultivavam algodão, mandioca, batata, feijão, ananás, fumo. Fabricavam utensílios de barro. Preparavam bebidas fermentadas com mel silvestre e sucos vegetais. Fumavam folhas de tabaco enroladas como cigarro e em cachimbos. Usavam a erva-mate com fins religiosos.

Acreditavam num ente supremo, nos espíritos, praticavam feitiçaria. O canibalismo tinha caráter mágico. Os guerreiros e os feiticeiros usavam adornos de penas, braceletes, diademas, cintos, mantos.

As tribos desfrutavam de independência, mas elegiam chefes que iam representá-los nas assembléias confederativas de guerreiros.

Quanto ao idioma guarani, pertence ao grupo lingüístico do tupi-guarani. É o dialeto meridional “aba ñ eeme”, que se confinou ao Paraguai e à província argentina de Corrientes. O guarani moderno conserva muitas formas essenciais de antigas línguas, mas sofreu a influência espanhola.

Os paraguaios constituem um povo com formação étnica homogênea, descendendo de índios guaranis e colonizadores espanhóis, que se cruzaram. Subsistem índios em pequeno número, principalmente algumas tribos do Chaco, mas a cultura guarani reflete-se nas mais diversas formas de vida paraguaia. A maior parte dos habitantes é bilíngüe, falam guarani e espanhol, sendo esta a língua oficial.

A Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), na área de pesquisa, desenvolve o Programa Kaiowá/Guarani, um estudo em defesa da vida, visando à melhoria das condições dos indígenas guaranis  e a preservação de sua cultura, nas aldeias e cidades do Estado de Mato Groso do Sul, notadamente na região da Grande Dourados.

O Programa foi divido em  subáreas: localização das aldeias, comportamento, ocupação tradicional e conceito de posse; recuperação dos recursos naturais; e produção alimentar; educação indígena e  saúde preventiva.

Na subárea Educação Indígena, a principal preocupação é a construção de uma escola diferenciada, que responda às expectativas dos Kaiowá/Guarani. Situam-se nesta subárea os seguintes projetos: A construção de um referencial novo e diferenciado da escola Kaiowá/Guarani na região da Grande Dourados, do professor José Manfrói e Educação bilíngüe, guarani-português nas escolas indígenas Guarani/Kaiowá da região da Grande Dourados, do professor Antônio José Filho.

Concordo plenamente com a posição defendida pelos professores: a criança indígena deve ser alfabetizada em sua língua materna, o guarani e, só depois, na sua segunda língua, o português, que lhe permitirá conhecer e sobreviver na sociedade envolvente. É necessário valorizar o guarani, instrumentalizar professores indígenas para essa tarefa.

Coloco aqui a necessidade da sociedade envolvente, das escolas das cidades de  Mato Grosso do Sul que convivem com o índio no seu cotidiano, nas ruas, nas feiras, nos mercados, na periferia, nas fronteiras, também estudarem e conhecerem a civilização, a história, a cultura e a língua guaranis.

Só se ama e se respeita o que se conhece. Numa região como a nossa, em tempos de MERCOSUL, é preciso formar uma identidade voltada para a América Latina. Temos muitas afinidades. Temos alguma alegria e muitas amarguras a compartilhar. Amarguras que, ao invés de nos irmanarem, nos distanciaram ainda mais.

Levanto uma questão de Estética. Estética é a ciência do Belo. Conhecemos, respeitamos, amamos uma determinada cultura por percebermos o seu valor intrínseco, profundo e humano. Toda língua é manifestação de Beleza única e insubstituível. Todo o idioma reveste de forma singular o pensamento e a sensibilidade de um povo.

Quando se valoriza e respeita a DIVERSIDADE caminhamos para uma UNIDADE fraterna e conciliadora.

Em três dos meus livros, escrevi sobre a língua guarani. No infanto-juvenil, Pele de Jambo, no capítulo Guarani, conto como a menina Rutinha, na cozinha de uma fazenda da cidade de Bela Vista, fronteira do Paraguai, ouvia as mulheres conversando em guarani e ia descobrindo o fascínio e o significado de alguns vocábulos, ao som das polcas e das guarânias.

No livro de ensaios, Fiandeira, no capítulo Nomes Guaranis escrevi sobre minha paixão pelo guarani e a gênese de alguns de meus poemas que nasceram de palavras guaranis.

No romanceiro Guerra entre Irmãos - Poemas inspirados na Guerra do Paraguai, há o poema Comunicação, que expõe a riqueza das três línguas envolvidas na triste guerra: português, espanhol e guarani. Transcrevo aqui o referido poema:

A comunicação na guerra
É feita de gritos,
Brados,
Ordens imperativas,
Delações,
Intrigas,
Sussurros.

As mensagens vêm em bilhetes,
Cartas seladas,
Asas de beija-flores,
Cascas de árvores,
Folhas de fumo
E chegam aos ouvidos
Que viram conchas,
Abas de gramofone.

Nesta guerra as línguas se fundem,
Amalgam-se
Como desenhos singelos
Em vasilhames úmidos,
Como saliva no pântano das bocas:
Língua portuguesa,
Galega,
Galaica,
Com gotas do Tejo e do Minho,
Aroma de carvalho e vinho,
Lirismos de amor e amigo;
Língua espanhola,
Andaluza,
Castelhana,
De termos árabes,
Trazida nas caravelas de Colombo,
Perpetuada nos sonhos de Dom Quixote;
Língua guarani,
Língua sagrada do tronco tupi,
Espalhada pelo Paraguai,
Por Corrientes,
Pelas cabanas de grossos paus
Cobertos de barro.

Na guerra, irmão mata irmão,
Não há comunicação.

A proposta é que os educadores de Mato Grosso do Sul, professores de português, história, geografia, expressões artísticas, trabalhem a temática guarani com seus alunos, em atividades interessantes, lúdicas, poéticas.

Fica em aberto também a proposta de se escrever um livro de embasamento para o estudo da temática guarani nas escolas. Um livro composto dos seguintes capítulos: histórico dos guaranis; glossário de palavras guaranis (frutas, animais, lendas, objetos...); lista de topônimos, ou seja, nomes de rios, cidades, fazendas e outros acidentes geográficos da região sul-mato-grossense; fotografias da arte indígena; estudo da música guarani e do cancioneiro paraguaio.

No livro Meus Haicais, do professor J. Barbosa Rodrigues, em que o autor utiliza a delicada arte japonesa de sintetizar uma idéia poética em apenas três linhas, para definir e explicar os nomes das cidades de nosso Estado, encontramos preciosidades como a significação de alguns vocábulos guaranis que nomearam nossas cidades: Camapuã - túmidos seios; Caarapó – raiz de erva; Nhu-verá - campo brilhante; Nioaque - clavícula quebrada.

Relato uma experiência didática realizada com a turma dos acadêmicos da Melhor Idade da UCDB, um projeto voltado à comunidade idosa, onde são ministradas aulas de Literatura Brasileira.

Utilizando o dicionário Português-guarani, de autoria de Tertuliano Amarilha, foram selecionados  vocábulos e/ou expressões guaranis com seus respectivos significados em português: água - y ; poça d'água - y no'ó; aurora - arco co'ê; abelha - cava; algodão - mandy yu; alguém - peteí; aluno - temimbo'é; amarelo - sa'y yu; amor - mborayjhú; antepassado - tamói; andorinha - mby yu'é; árvore - yvyrá; aroma - tyacuã; asa - pepó; azeitona - tarumã-á; anoitecer - pyteimby; baile - yeroky; banana - pacová; bambu - tacuapí; beira de rio - y rembe'y; barro - tuyu; belo - porã; boca - yuru; borboleta - panambi; bolo de polvilho - kyrupé; beija-flor - mainumby; bezerro - vacá'ra'ý; branco - moroti; brilho - verá; brisa - yvytu pô i; bruxa - cuña payé; cabeça - acã; cabelo - tagué; cachoeira - y tororó; cama - tupá; campo - ñu; cana-de-açúcar - taquare'ê; canoa - ygá; caranaúba - caranda'y; casa - oga; cavalo - rendá; sol - cuarajhy; sabiá - jhavia; estrela - mby yá; sangue - tugy; sapo - cururu; cesto de vime - ayacá; céu - tupasy retã; cobra - mboi; colina - yvy ty mi; cuia - ca'y guá; cacique - avá runichá; lua - jacy; sorte, boa estrela - po'á; fogo - tatá; flor - poty; mãe - sy.

Escreveram-se em papeizinhos frases como: Oga em guarani significa “casa”; Panambi em guarani significa “borboleta”; Tatá em guarani significa “fogo”. A seguir, os acadêmicos sortearam um papelzinho e produziram um texto a partir da palavra sugerida. Expliquei que deveriam escrever algo relacionado ao significado da palavra em guarani: um comentário, um sentimento despertado, uma lembrança, uma recordação, um vestígio. Se pudessem colocar no texto elementos de ambientação indígena, melhor.

Os acadêmicos da Melhor Idade possuem mais de 50 anos, sabem ler e escrever, porém têm escolaridade heterogênea. Alguns possuem curso de nível superior, outros não concluíram o Iº grau. Não foram  levados em conta erros ortográficos e de concordância. O que vale nas aulas é o deixar fluir a emoção, é beber da fonte da criatividade e do prazer de sonhar. Os acadêmicos são orientados também para que desenhem, ilustrando suas idéias, outra forma lúdica de expressão.

Os idosos são muito melancólicos, voltam-se para o tesouro de sua memória. Transcrevo algumas produções dos acadêmicos da Melhor Idade:

Oga em guarani significa “casa”.

Como para todos nós que vivemos na cidade, a casa para os índios é um porto seguro, um sinal de vitória. Não há ser humano que não fique feliz ao possuir seu próprio teto. É em nossas casas que nos reunimos com a família e passamos os melhores momentos de nossas vidas.

Os índios moram em ocas que são feitas de madeira e palha e são nelas também que se reúnem para decidirem os rumos da tribo.

Ñu em guarani significa “campo”.

Os campos da fazenda Vista Alegre, onde estão minhas raízes, são tão vastos e planos, que ao longe se unem com o céu. Campos floridos, ora verdes, ora acizentados, conforme a estação do ano.

Tuyu em guarani significa “barro”

O barro, matéria-prima para tantas coisas importantes: telha, tijolo, utensílios, potes, cerâmicas. Tudo tirado do barro.

y rembe'y em guarani significa “beira de rio”.

Y rembe'y... beira de rio, lugar convidativo para uma boa pesca, para meditar e curtir as belezas da natureza.

Tatá em guarani significa “fogo”.

O fogo nos faz lembrar várias comemorações; o dia de São João é comemorado com a fogueira.

Em muitos acontecimentos festivos são usados fogos de artifício, sendo cada um mais belo que o outro.

Também os índios gostam muito de usar o fogo, eles dançam em volta do mesmo para festejarem suas vitórias e suas crenças.

Pacová em guarani significa “banana”.

Lembrei quando era criança, em minha cidade, Poconé, tinha uma índia que diariamente batia à nossa porta com um balaio de bananas na cabeça para vender.

O nome dela era Maricota. Que saudades!

Po ' á em guarani significa “sorte”, “boa estrela”.

Faz-me lembrar do romance Iracema, de José de Alencar, onde figura a pessoa do Araquém que previa a triste sorte da sua tribo. Araquém era o conselheiro do seu povo.

Kyrupé em guarani significa “bolo de polvilho”.

O significado de Kyrupé em guarani é bolo de polvilho, ele é feito de mandioca, que, depois de ralada a sua raiz, é extraído o polvilho, um processo muito trabalhoso.

Em seguida é usado para fazer bolos, chipas, tapioca etc. Em Mato Grosso a mandioca, “aipim”, os bolos de polvilho são tradições culinárias.

Todas as produções ficaram líricas, poéticas, simbólicas. Fizemos um mural colando as produções misturadas a ilustrações sobre índios e natureza.

O professor pode levar música para a sala de aula: polcas e guarânias. Músicas para ouvir simplesmente, dançar, coreografar, dramatizar, ler, traduzir, analisar, interpretar. Letras em espanhol ou em guarani falando da pátria, da amada, da natureza, da terra, da água, da América Latina. Sugerimos o CD  “La Carreta”de nossa saudosa cantora, Jandira, da dupla Jandira e Benites. Jandira cantou com sua voz potente e seu talento dramático canções inesquecíveis como Vila Guilhermina, Passionaria, Che pyharé Mombyri, Galopera, Panambi Jerovy e tantas outras do cancioneiro paraguaio que tocam profundamente a nossa alma de fronteira.

Este trabalho interdisciplinar pode ser desenvolvido com alunos de todas as faixas etárias e níveis de escolaridade. Um trabalho que despertará para a beleza da cultura guarani; para o autoconhecimento a partir do estudo de nossas raízes, da etnia de nosso povo; para o respeito e a valorização de nossa identidade latino-americana e ameríndia.

 

BIBLIOGRAFIA

AMARILHA, Tertuliano. Dicionário português-guarani. Cuiabá, 1994.

CD - La Carreta. Jandira e Benites. Compact Disc.

Jornal da UCDB. Abril/98 ano XII nº 3

NAVEIRA, Raquel. Fiandeira. São Paulo: Estação Liberdade, 1992.

––––––. Guerra entre irmãos – poemas inspirados na Guerra do Paraguai. 2ª ed. Campo Grande (MS): Gráfica Ruy Barbosa, 1997.

––––––. Pele de jambo. Belo Horizonte (MG):RHJ Editora, 1996.