PROCESSOS DE GRAMATICALIZAÇÃO
DE
PRONOMES RELATIVOS LATINOS

Lêda Maria Mercês Gonçalves (UEFS)

 

O estudo dos pronomes relativos sempre despertou a curiosidades dos pesquisadores. O emprego desse pronome apresenta-se bastante diversificado na língua latina. Este fato é observado, diante da ligação com o pronome interrogativo e da mudança que o reduz a um elemento de relação.

A relação morfossintática entre o pronome relativo e outras classes de palavras é encontrada nos textos latinos de forma diversa, demonstrando a flexibilidade no uso dessa categoria gramatical, com reflexos na língua portuguesa.

A pesquisa consiste em verificar o uso do relativo, especialmente, no latim, comparando esta utilização com alguns aspectos das semelhanças ou diferenças que se observam, no português, tanto do ponto de vista morfológico, quanto sintático.

A escolha do pronome relativo e de suas relações de emprego justifica-se pela necessidade de interpretar as diversas situações da sua ocorrência e analisar os processos de gramaticalização desse item lexical no latim e no português.

O estudo do pronome relativo do latim à língua portuguesa baseia-se na teoria funcionalista da mudança lingüística, sendo analisados, especificamente, aspectos da gramaticalização desse pronome, nas suas formas latinas quod, quia, quam e cum, em uma perspectiva sincrônica e diacrônica.

A escolha do texto para exame recaiu sobre A Regra de S. Bento, edição bilíngüe (latim-português), traduzida e reeditada por Enout (1980),em virtude de se tratar de um texto do latim eclesiástico, escrito na época medieval, com caráter prescritivo, pois se destinava a ditar normas de comportamento para a vida monástica. Esse conjunto de características propiciava o uso de uma linguagem fundamentalmente prática, mais espontânea, destituída de maiores cuidados com a língua padrão.

Sabe-se que, no século IV (ano 313), o imperador Constantino converteu-se ao Cristianismo. Assim, a religião cristã tornou-se a religião de Roma. Em algumas comunidades, os cristãos insistiam na vida ascética, dedicando-se ao jejum, à pobreza, ao silêncio, à oração (PAIXÃO, 1996, p.47). Nesse contexto sócio-político, surge a figura de São Bento, que conheceu a vida ascética, assim como a de eremita, preferindo a vida cenobítica, ou seja, em comunidade. São Bento permaneceu em Monte Cassino, onde fundou o seu mosteiro e, posteriormente, escreveu a Regra (ca. 480-550).

Uma regra monástica contém escritos, conselhos e propostas de um determinado Abade, admirado pela sua santidade, e que é responsável por todos os monges do mosteiro. Essa regra organizava a vida monástica em comunidade. Os monges dividiam o trabalho, participavam das refeições e das preces comunitárias (Souza, 1993: 26-29).

As regras monásticas são importantes para a contagem do tempo, relacionado com as orações e as obrigações diárias. A oração abrange a dimensão comunitária e o nível individual. Na organização da Regra, São Bento agrupou os salmos por número, distribuindo a quantidade deles em cada ofício, para que todos os cento e cinqüenta fossem rezados durante uma semana.

Partindo-se do capítulo II da Regra de São Bento, inicialmente fez-se uma seleção dos itens lexicais que apresentaram mudanças, desde o latim e ao longo da história da língua portuguesa, procurando-se examinar a trajetória dos itens lexicais selecionadas, com o auxílio de dicionários etimológicos e de usos das línguas latina e portuguesa. Em seguida, fez-se uma análise sincrônica e diacrônica de alguns pronomes relativos, encontrados no referido capítulo.

A escolha dos pronomes relativos deveu-se à constatação de que os mesmos tendem a se recategorizar sintaticamente, mudando de classe gramatical, ou seja, passando de pronomes a conjunções, ainda no latim, como se pode verificar nas seguintes passagens do texto:

            01) Abas qui praeesse dignus est monasterio semper meminere debet quod d icitur [...]20. 17

            quod (que)- conjunção completiva

            O abade digno de presidir ao mosteiro deve lembrar-se sempre daquilo que é chamado [...] 21.18

            02) Ideoque abbas nihil extra praeceptum Domini quod sit debet aut docere aut constituere vel iubere [...] 20. 22

            quod (que)- pronome relativo

            Por isso o Abade nada deve ensinar, determinar ou ordenar, que seja contrário ao preceito do Senhor [...] 21. 24

Como se pode observar, o pronome relativo neutro quod, no exemplo 01, recategoriza-se sintaticamente, passando a uma conjunção completiva, que introduz uma oração subordinada substantiva. no exemplo 02, esse mesmo pronome mantém-se como relativo, evidenciando duas diferentes possibilidades de uso.

            03) [...] sed semper cogitet quia animas suscepit regendas [...] 24. 29

            quia (que)- conjunção completiva

            [...] mas pense sempre que recebeu almas a dirigir [...]

25. 33

            04) [...] quia sive servus sive líber, omnes in Christo unum summus [...] 22.28

            quia (porque)- conjunção causal

            [...] porque, servo ou livre, somos todos um em Cristo [...] 23.24

O pronome relativo qui, quae, quod é classificado como pronome relativo itálico comum (Ernout; Meillet, 1994, s. v.). Entre as formas do relativo, encontra-se quod, acusativo neutro de qui, tornando-se uma partícula de ligação subordinante. O emprego do pronome relativo e do interrogativo está sempre interligado, desde a origem. No plural, o latim fixou a forma quia, antigo neutro de quis, quid, que tem relação com o grego.

No exemplo 03, o pronome quia recategoriza-se sintaticamente, transformando-se em uma conjunção completiva, que introduz uma oração subordinada substantiva e, no exemplo 04, passa a uma conjunção subordinativa causal, introduzindo uma oração subordinada adverbial causal.

            05) Sciatque quam difficilem et arduam rem suscipiti [...] 24. 21

            quam (que)- conjunção completiva

            E saiba que coisa difícil e árdua recebeu [...] 25. 23

            06) Non unus plus ametur quam alius, nisi quem in bonis actibus aut oboedientia invenerit meliorem. 22.24

            quam (que)- conjunção comparativa

            Que um não seja mais amado que outro, a não ser aquele que for reconhecido melhor nas boas ações ou na obediência. 23.28

O pronome relativo feminino quam recategoriza-se sintaticamente, passando à conjunção completiva, no exemplo 05, e à conjunção subordinativa comparativa, no exemplo 06.

            07) Ergo, cum aliquis suscipit nomen abbatis [...] 22. 11

            cum (quando)- conjunção temporal

            Portanto, quando alguém recebe o nome de Abade [...] 23. 12

Bassols de Climent (1956: 136) explica que quanto à forma cum, os autores utilizam preferencialmente quom (qu(o)m), cum. Esta conjunção representa o acusativo masculino do relativo, transformando-se, rapidamente, pelo processo de recategorização sintática, em uma conjunção subordinativa temporal. Vale ressaltar, por fim, que a forma cum não se mantém como conjunção, na língua portuguesa.

Na passagem do latim ao português, houve uma perda das conjunções. Coutinho (1981: 269-270) seleciona as formas que se mantiveram, assinalando:

Ao contrário das preposições, poucas foram as conjunções que o português herdou do latim. Para suprir tal deficiência, recorreu a língua às outras classes de palavras, sobretudo aos advérbios e às preposições, dando-lhes função conjuncional: todavia, também, para que, depois que, etc.

Dentre as conjunções subordinativas, esse autor classifica as seguintes:

            que < quid              ca (arcaico) < qua por quia       (causal)[1]

ca (arcaico) < quam (comparativo) como < quomo < quomodo”

Assim, a maioria das conjunções subordinativas latinas não sobreviveu no português. Entretanto, caso se comparem os processos hipotáticos que ocorreram no latim clássico e o número de conjunções subordinativas que permaneceram no português, observa-se que, além da redução dessas conjunções, ficou, principalmente, apenas uma forma, o complementizador que.

Dessa maneira, Câmara Júnior (1976: 184) assinala:

O fato primacial foi o aparecimento da partícula que como conjunção subordinativa por excelência, em homonímia com o pronome relativo que: a) pronome relativo – (...) o homem que vejo; b) conjunção subordinativa: digo que vejo.

O advento da conjunção subordinativa que resultou primordialmente de um esvaziamento da significação pronominal da forma neutra quid do pronome indefinido-interrogativo e sua coalescência com a outra forma neutra quod reservada ao pronome relativo. Secundariamente, houve a convergência da evolução fonética da partícula de conexão comparativa quam e da conjunção causal quod.

De tudo isso, resultou uma partícula multifuncional que para os mais variados padrões frasais.

Concluímos que esta mudança lingüística vem ocorrendo, provavelmente, desde o latim tardio, quando o pronome relativo, que era específico das orações adjetivas explicativas e restritivas, sofreu um processo de recategorização, gramaticalizando-se em um transpositor ou subordinante que passou a introduz as orações completivas e as adverbiais. Verificamos, durante a pesquisa, a grande complexidade que envolve a gramaticalização do pronome relativo latino. Alguns aspectos dos processos que ocorreram com esse subordinante foram analisados neste trabalho. Contudo, esperamos que outras pesquisas venham complementar o estudo desse pronome e da sua gramaticalização.


 

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Gramática latina. 24ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992.

BASSOLS DE CLIMENT, Marino. Sintaxis latina. Madrid: C. Bermejo, 1956.

BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37ª ed. rev. e ampliada. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999.

BLUTEAU, D. Raphael. Vocabulario portuguez e latino... Coimbra: No Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712.

CÂMARA JÚNIOR, J. Mattoso. História e estrutura da língua portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Padrão, 1976.

CASTILHO, Ataliba T. de. A gramaticalização. Estudos lingüísticos e literários, Salvador, v. 19, p. 25-64, mar. 1997.

COROMINAS, Joan. Diccionario crítico etimológico de la lengua castellana. Madrid: Gredos, 1954-1957.

COUTINHO, Ismael de Lima. Pontos de gramática histórica. 7ª ed. rev. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1981.

CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. 2ª ed. rev. e acrescida de um suplemento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley Luís Filipe Nova gramática do português contemporâneo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

ENOUT, D. João Evangelista. (Ed.). A Regra de São Bento. 2. ed. Edição bilíngüe (latim-português) Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1980.

ERNOUT, Alfred; MEILLET, A. Dictionnaire etymologique de la langue latine: histoire des mots. 4e éd. augmentée d’additions et de corrections nouvelles par Jacques André. Paris: Klincksieck, 1994.

FARIA, Ernesto. Dicionário escolar latino-português. 5ª ed. Rio de Janeiro: FENAME, 1975.

FARIA, Ernesto. Gramática superior da língua latina. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1958.

GAFFIOT, Félix. Dictionnaire illustré latin-français. Paris: Hachette, 1934.

HOPPER, Paul J.; TRAUGOTT, Elizabeth Closs. Grammaticalization. Cambridge: CUP, 1993.

HUBER, Joseph. Gramática do português antigo. Trad. de Maria Manuella Gouveia Delille. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986.

LAUSBERG, Heinrich. Lingüística románica. Traducción española de J. Pérez Riesco y E. Pascual Rodríguez. Madrid: Gredos, 1966.

MEILLET, Antoine. Linguistique historique et linguistique générale. Paris: Honoré Champion, 1975.

NEVES, Maria Helena de Moura. A gramática funcional. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

PAIXÃO, D. Gregório. São Bento: um mestre para o nosso tempo. 2ª ed. Salvador: São Bento, 1996.

RUBIO, Lisandro. Introducción a la sintaxis estructural del latín. Barcelona: Ariel, 1989.

SAID ALI, M. Gramática histórica da língua portuguesa. 6ª ed. melhorada e aumentada de lexeologia e formação de palavras e sintaxe do português histórico. São Paulo: Melhoramentos, 1966.

SARAIVA, F. R. dos Santos. Novíssimo dicionário latino-português: etimológico, prosódico, histórico, geográfico, mitológico, biográfico... 10ª ed. Redigido segundo o plano de L. Quicherat. Rio de Janeiro: Garnier, 1993.

SOUZA, Marcelo de Barros. Na estrada do evangelho: uma leitura comunitária e latino-americana da Regra de São Bento. Petrópolis: Vozes, 1993.


 

[1] Segundo Nunes (1975, p.259) “Na Regra de São Bento (Códice Alcobacence 329), no capitulo Da obedeeença, lê-se: Deos, ca esguarda o coraçon do murmurante, etc., onde evidentemente o ca é o relativo que: semelhante forma pode ter resultado desta última ou ser devida à confusão com outra idêntica (também hoje que) mas conjunção causal e por vezes integrante.” Para Dias (1970, p.277), ca foi empregado no sentido de porque causal. Observa-se que na Regra de São Bento, a ocorrência em latim é do pronome qui: “[...] Deo, qui [...] eius respicit murmurantem.” (Ernout, 1980, p. 36. 12)