Tempo e dialética em Álvaro de Campos
Lucia Maria Moutinho Ribeiro (UNIRIO)
É indubitável a tendência metafísica na poesia de Fernando Pessoa. Por isso, despertou-nos Álvaro de Campos para uma reflexão a respeito da sua ansiosa e gritada busca da verdade, que o fez exclamar em “Magnificat” “Onde? Como? Quando?” (p. 353) [1]. O biógrafo João Gaspar Simões afirma que desde jovem Fernando Pessoa lera os filósofos gregos e alemães e tal “propensão metafísica e especulativa” (Simões, 1981: 110) se acirra a partir de “Casa branca nau preta”, isto é, a partir da terceira fase da produção poética de Álvaro de Campos. Sendo assim, recorremos a uma antologia de textos hegelianos por encontrar neles afinidades com as indagações pessoanas.
Baseada na consciência das contradições percebidas por Heráclito de Éfeso, a concepção hegeliana da existência concebe o espírito como tempo. E o único ser que tem consciência disso é o homem, porque é capaz de captar a finitude do tempo e, com ela, o sentimento trágico da vida, bem como sua infinitude, aquela desligada do tempo da vida humana que acaba em morte. O tempo desligado da matéria não tem morte. Assim, o homem percebe a não coincidência do ser e do dever-ser, o que gera uma inquietação absoluta, devido ao caráter transcendente da condição humana e daí a negação de todo limite. A palavra é que dá ordem ao caos, fazendo com que este seja percebido como cosmo, como sistema, portanto, pois não há ser sem pensamento, não há forma sem conteúdo. Isso é, justamente, o que funda a lógica dialética, que designa a realidade como um sistema de elementos opostos que se complementam:
A flor, por exemplo, tem diversas qualidades, a cor, o odor, o gosto, a forma, etc., mas essas qualidades formam uma unidade; nenhuma deve faltar; não estão dispersas, aqui o odor, lá a cor, mas a cor, o odor, etc., estão implicados um no outro, embora como diferenças [...] Não julgamos contraditório, nem perturbador, que o perfume e a cor se oponham, embora estejam unidos. Não os opomos, é o entendimento, o pensar do entendimento, o que determina em que medida os diversos elementos se opõem e como podem ser percebidos como incompatíveis (Corbisier, 1981: 98)[2].
A consciência reflexa, isto é, a consciência da consciência, caracteriza a natureza humana, concebida também como vir-a-ser, que é o movimento da potência para o ato. No vir-a-ser é que se dá a distinção entre o ser e o nada. O nada é o primeiro termo prévio a todo ser, ou seja, o ser sucede ao nada, e é isto que promove o vir-a-ser: “nada há no céu e na terra que não contenha, ao mesmo tempo,o ser e o nada” (Corbisier, 1981: 56). Entretanto o vir-a-ser não se confunde com o ser e o nada, embora ambos existam nele. Assim, a dialética se supõe como negação, o que formará uma síntese (vir-a-ser), proveniente do constante choque entre nada (tese) e ser (antítese). Ou vice-versa, pois o ser também é tese, como o nada também é antítese, já que este ciclo constitui uma alternância permanente, porque o nada deixa de ser nada quando passa a ser que logo será nada e , deste modo, é no vir-a-ser que se dá a distinção entre o ser e o nada. Logo, a realidade é contraditória e dialética em si mesma e a idéia que a apreende separa o idêntico do diferente, o subjetivo do objetivo, o finito do infinito, a alma do corpo, o concreto do abstrato, a aparência da essência, a forma do conteúdo, o real do ideal, mediante o pensamento, a capacidade de reflexão humana. A dialética consiste, pois, numa eterna tensão de contrários que a poesia de Álvaro de Campos também manifesta.
O curso de tal processo dialético se dá no tempo e só o homem é capaz de percebê-lo: “É em virtude da natureza dialética que lhes é imanente, que o ser e o nada manifestam sua unidade e sua verdade no vir-a-ser” (Corbisier, 1981: 57), o que supõe a sucessão temporal e histórica também. Por isso, o homem começa onde a natureza acaba; inconsciente de si mesma, alienada no espaço, esta não tem história, nem tempo, nem morte:
A natureza é a idéia absoluta, na forma da alteridade, da objetividade indiferente, exterior, da efetivação concreta, individualizada, dos seus momentos, isto é, a essência absoluta na determinação da imediatidade, em relação à sua meditação.(Corbisier, 1981: 62).
Isto quer dizer que a natureza só existe à medida que o homem a percebe, ou seja, este é que lhe confere realidade. Ela, em si, para ela mesma, não é dialética, mas sim, absoluta, objetiva, indiferente, imediata, sem o par de oposições que essas categorias devem exigir, pois só o entendimento humano pode perceber seus contrários:
Os exemplos mais banais, alto e baixo, esquerda e direita, pai e filho, e assim por diante, ao infinito, contêm os dois opostos em um só termo. É alto o que não é baixo; ser alto significa, apenas, não ser baixo, e o alto só existe enquanto há um baixo, e inversamente; o pai é o outro do filho, e o filho o outro do pai, e o pai e o filho só existem como o outro do outro; e, ao mesmo tempo, cada uma dessas determinações só existe em relação à outra. Sem dúvida, o pai é também alguma coisa para-si, fora da relação com o filho; mas então não é mais o pai, porém, homem em geral; assim também o alto e o baixo são alguma coisa em-si, fora de qualquer relação, mas então são apenas lugares em geral. Os contrários, ou opostos, contêm a contradição, na medida em que se referem negativamente um ao outro, em um ponto dado, ou na medida em que se neutralizam reciprocamente ou são indiferentes um ao outro (Corbisier, 1981: 60).
A filosofia se faz necessária para se perceber a cisão entre os contrários e possibilitar mediante o entendimento a conciliação das oposições, para se chegar a uma unidade, ainda que formada de termos contraditórios. Será que o finito existiria sem o infinito? “Ora, a verdade é a unidade das antinomias”, responderá Hegel (Corbisier, 1981: 49).
Assim, tentaremos surpreender segundo a nossa ótica a dialética do tempo na poesia de Álvaro de Campos e a maneira como ela se processa em termos formais, pela depreensão do uso de paradoxos que no verso provocam uma ruptura lógico-sintática.
O tempo implica a oposição finito e infinito. Entretanto, o tempo só é finito para o homem. Embora transcendente, a vida humana não é infinita, no plano individual e corpóreo, daí a dor da perda da vida que passa a todo momento. Para o poeta a sucessão do tempo durante a vida representa perda, falta, morte, como afirma Maria da Glória Padrão:
... o passado já não é, que o futuro ainda não é, e que o papel desempenhado pelo presente na estrutura da temporalidade é o de um limite ideal, porque no instante em que se atinge o instante, o instante passa porque é constante.
O presente puro é inacessível; aquilo que somos no momento em que somos qualquer coisa de estranho a tudo o que fomos ou seremos; mas, embora prestando à essência a contingência, vamo-nos fixar num conceito de momento que é o instante em que o homem se definiu constantemente... (Padrão, 1973: 132).
Eis aí em outras palavras o conceito hegeliano de vir-a-ser que resulta do choque entre nada e ser. Isto se dá no tempo, na sucessão de passado, presente e futuro, que se alternam entre ser e nada, pois o presente, ao deixar de ser presente e passar a ser passado, é nada, assim como o futuro, enquanto ainda não é, também é nada, mas passa a ser, ao se tornar presente e assim, sucessivamente. Desta forma repetimos com Maria da Glória Padrão o “presente puro é inacessível”, logo, é um nada que pode vir a ser, quando se torna instante e, em seguida, passado, dando lugar ao futuro que se tornará presente. Por conseguinte, o nada implica o ser e o ser, o nada.
Vários poemas de Álvaro de Campos denotam essa concepção de tempo dialético. Entre eles, encontram-se Faróis distantes, Apostila, Demogorgon, Na noite terrível, Substância natural de todas as noites, Acaso, Sim, sou eu, Eu mesmo, tal qual resultei de tudo, Realidade, Datilografia, Não: devagar, O descalabro a ócio e estrelas...
Para Eduardo Lourenço Álvaro de Campos é:
... o mais próximo dos seus “fantasmas”, como também lhe chamou [...]. Na sua companhia acedemos à mais íntima fusão da vivência quotidiana, da prosa da sua vida sem ela, com a preocupação metafísica em estado de pura incandescência. O milagre raro é que não se recebe da poesia de Álvaro de Campos a impressão de uma metafísica que se ecoa em imagens. Ao contrário é da consideração dos acontecimentos ou objectos mais banais (constipação, aniversário, dobrada à moda do Porto) que a imaginação ilumina de maneira insólita, que decorre uma espécie de meditação metafísica vertiginosa mas sensível, e com ela, a mais alta poesia [...], Campos é o pessoa mais nu, deixando correr à solta a torrente de angústia que o sufoca, fazendo o processo de sua abulia, outorgando-lhe uma dimensão de fábula, dilacerando-se com um patetismo e uma raiva dementes, em suma, elevando ao sentimento da sua existência ( e da existência em geral) como absurdo radical a Única Epopéia que a poesia Moderna pode conceber, uma epopéia do negativo e da negação (Lourenço, 1973: 169-170).
A afirmação acima transcrita descerra a chave da poética de Álvaro de Campos: é na observação do cotidiano, pelo olhar, que ele mostra a sua indagação metafísica. Isto é, como observador do mundo que há em volta, observá-lo o leva ao questionamento sobre a existência e à possibilidade de realização no tempo da vida e à possibilidade de apreensão do instante, tal como se vê no poema Faróis distantes (p. 321):
Faróis distantes,
De luz subitamente tão acesa,
De noite e ausência tão rapidamente volvida,
Na noite, no convés, que conseqüências aflitas!
Mágoa última dos despedidos,
Ficção de pensar...
Faróis distantes...
Incerteza da vida...
Voltou crescendo a luz acesa avançadamente,
No caso do olhar perdido...
Faróis distantes...
A vida de nada serve...
Pensar na vida de nada serve
Pensar de pensar na vida de nada serve...
Vamos para longe e a luz que vem grande vem menos grande
Faróis distantes...
No convés do navio, um olhar casual para os faróis leva o poeta a pensar na vida e à conclusão de que esta de nada serve, nem tampouco pensar na vida. A imagem do choque entre noite e escuridão e a luz subitamente acesa trazem-lhe à mente as “conseqüências aflitas” dos atos intempestivos do passado de quem quer que seja, à medida que a expressão é plural, trazem-lhe à mente a mágoa dos abandonados, “Mágoa última dos despedidos”. O pensar na vida será eterno até o apagar dos faróis, isto é, a morte vindoura – “Vamos para longe e a luz que vem grande vem menos grande”.
“Aproveitar o tempo!”, exclama o poeta em Apostila (p. 328-329). E se pergunta “Mas o que é o tempo, que eu o aproveite?”. Quer dizer como conciliar o tempo que passa implacavelmente como os nossos afazeres? Será que o cotidiano seria capaz de reter o tempo? Como definir o tempo? Ter consciência de cada minuto ou segundo que passa” “Não ter um minuto que o exame de consciência desconheça... / Não ter um ato indefinido nem factício...” Enfim, parece, ele preferiria não ter consciência disso, do tempo que passa, da banalidade do cotidiano em relação à amplitude do tempo. Expressa a vontade da não ser como um “caniço pensante” como dissera Pascal:
Aproveitar o tempo!
Ah, deixem-me não aproveitar nada!
Nem tempo, nem ser, nem memórias de tempo ou de ser!...
Deixem-me ser uma folha de árvore, titilada por brisa,
A poeira de uma estrada involuntária e sozinha,
O vinco deixado na estrada pelas rodas enquanto não vêm outras,
O pião do garoto, que vai a parar,
E oscila, no mesmo movimento que o da alma,
E cai, como caem os deuses,no chão do Destino.
Fim do poema. Nele as imagens – folha de árvore, brisa, poeira, estrada, vinco das rodas, pião – são imagens presentes, de seres inanimados que não têm consciência de si, mas ganham sentido quando são vistos, e, ao mesmo tempo, evocam efemeridade e movimento, ou seja, tudo o que é passageiro e finda, como a vida.
Então, “Na noite terrível, substância natural de todas as noites”, volta a pensar no passado, no que ficou para trás tal como foi sem alterar-se – “O irreparável do meu passado – esse é que é o cadáver!” – e na possibilidade de este estar guardado em algum lugar. Seria isso possível? Conservar intacto tudo o que podia ter sido ou feito e não foi e não se fez ou tudo o que não teria sido ou foi e se fez? Não. Isso não é possível. Daí a sensação de perda. Como seria o hoje se a atitude outrora tivesse sido outra?
Se em carta altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim:
[...]
Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,
Mas virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;
Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;
Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,
Claras, inevitáveis, naturais,
A conversa fechada concludentemente,
A matéria toda resolvida...
Mas só agora o que nunca foi, nem, será para trás, me dói.
Em Acaso (p. 340), vem-lhe à lembrança a imagem de mulheres que vira e que representam o passado irremediavelmente perdido...
O tempo do cosmo é, pois, imutável, infinito e inconsciente, em oposição ao tempo humano, finito e consciente da sua mutabilidade, o que é experimentado nos versos de Álvaro de Campos com imensa dor. E a relação homem-mundo se dá pela dialética, isto é, pela relação entre termos opostos, percebidos na poesia mediante a observação do cotidiano, embebido, porém, de transcendência, porque o concreto, o palpável e aparente contém o abstrato, o impalpável e essencial. Tais noções são veiculadas através de novos recursos, inusitados, originais, com intenção estética e artística.
Bibliografia
CORBISIER, Roland. Hegel; textos escolhidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.
LOURENÇO, Eduardo. Pessoa revisitado; leitura estruturante do drama em gente. Porto: Invoa, [1973].
PADRÃO, Maria da Glória. A metáfora em Fernando Pessoa. Porto: Inova, [1973].
PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Aguilar, 1960.
SIMÕES, João Gaspar. Vida e obra de Fernando Pessoa; história de uma geração. 4ª ed. Lisboa: Bertrand, 1981.
[1] Pessoa (1960): Todas as citações de versos de Fernando Pessoa são extraídas desta edição e o número de página figura entre parênteses no fim da citação.
[2] As citações do mestre da dialética Georg Friedrich Hegel são extraídas de uma antologia de textos hegelianos organizada pelo professor Roland Corbisier e fazem parte dos seguintes livros: Fenomenologia do espírito, Lições sobre a história da filosofia, Ciência da lógica e Propedêutica filosófica.