OTHON MOACYR GARCIA[1]
Seu labor científico
(19-06-1912 – 1-6-2002)

Evanildo Bechara

 

Othon M. Garcia integrou uma geração de mestres emblemáticos que se vem desfalcando ano a ano: Olmar Guterres da Silveira, Sílvio Elia, Gladstone Chaves de Melo, só para lembrar-nos dos que mais estreitamente se ligaram às atividades do instituto de Língua Portuguesa do Liceu Literário Português.

Conhecedor admirável do sistema e das potencialidades expressivas do idioma, Othon soube aplicar sua fina sensibilidade a dois campos de estudos: a análise literária e a técnica de redação. No campo da análise literária, integrou a plêiade de jovens estudiosos que soube levar avante os alicerces de uma nova crítica literária exposta e praticada pioneiramente por Afrânio Coutinho e Eduardo Portella.

Pelos seus dotes excepcionais, este primeiro campo foi aquele pelo qual Othon se mostra mais produtivo e, por isso mesmo, conhecido e aplaudido entre os especialistas e o público devotado ao fenômeno literário. Aí estão seus ensaios Esfinge Clara: palavra puxa palavra em Carlos Drummond de Andrade (1955); Luz e fogo no lirismo de Gonçalves Dias (1956); A janela e a paisagem na obra de Augusto Meyer (1958); A página branca e o deserto, luta pela expressão em João Cabral de Melo Neto (1958/1959); Cobra Norato, o poema e o mito (1962, sobre o poema de igual título de Raul Bopp); Exercícios de numerologia poética (1978), entre outros artigos em revistas e jornais.

Em 1996, pela Topbooks, sai, em 2ª edição, uma coletânea intitulada Esfinge Clara e Outros Enigmas – Ensaios estilísticos, que engloba Esfinge Clara – Palavra puxa palavra em CDA, Luz e fogo no lirismo de Gonçalves Dias, A janela e a paisagem na obra de Augusto Meyer, A página branca e o deserto, Cobra Norato – O poema e o mito e Exercícios de numerologia poética.

Num admirável Prefácio de síntese, diz-nos Antônio Houaiss:

Tais ensaios são, com justa razão, tidos como fundamentais para a exegese desses poetas e para a consolidação de nossa crítica literária moderna. É que as feições assumidas pela análise, crítica, sistemática e síntese literárias contemporâneas no Brasil, sobretudo as de origens bacharelescas ou doutorais, embora por vezes altamente tecnificadas, não colidem com ensaios deste gênero, antes os valorizam, pois que estes têm a seu favor qualidades não apenas provindas do método, mas também de uma bagagem de leituras em primeira mão de fontes de várias línguas de cultura.

Nesses ensaios, Othon M. Garcia exerce uma crítica literária cujas virtudes são realçadas pela riqueza empírica do exemplário, pela acuidade da análise, pela organicidade da interpretação, e pela sensibilidade e intuições estéticas, que o singularizam no gênero entre nós.

No segundo campo, desenvolveu sua atividade de magistério – atividade silenciosa – na tarefa de desenvolver nos seus alunos a técnica da redação. Aqui Othon, robustecido por uma prática de sala de aula e dos cursos ministrados a candidatos ao Instituto Rio Branco, concretizou essa experiência num livro excepcional que, saído em 1967 pela Fundação Getúlio Vargas, ainda hoje é o mais profundo guia na especialidade: Comunicação em Prosa Moderna. Partia de informações sobre os elementos estruturais da oração, de uma atividade que hoje é execrada por modernosos, mas que dela a velha geração de professores se serviu para conseguir que seus alunos chegassem a escrever com razoável decência de forma e fundo: a análise sintática. Sim, a análise sintática! Mas a análise sintática, antigamente chamada também análise lógica, ensinada sem os pruridos de erudição, e muito menos, da lógica e má lógica, oferecendo aos educandos a compreensão das relações gramaticais e semânticas que as palavras e funções mantêm entre si para a adequada e conforme manifestação do que se quer transmitir aos ouvintes ou leitores.

Começou Othon, nessa convicção, apoiando-se na lição sempre segura de uma autoridade, hoje injusta e lamentavelmente esquecida de seus colegas mais jovens de sala de aula; referimo-nos a Mário Barreto, que, num livro publicado em 1916, assim prevenia a professores e alunos:

É um dos defeitos do nosso ensino gramatical a importância excessiva que se dá nas classes a isso que se chama análise lógica. Certo que é necessário saberem os alunos o que é um sujeito, um atributo, um complemento; certo que também é bom que eles saibam distinguir proposições principais e subordinadas, e vejam que estas acessórias ou subordinadas não são mais que o desdobramento de um dos membros de outra proposição e se apresentam como equivalentes de um substantivo, de um adjetivo ou de um advérbio: proposições substantivas, adjetivas, adverbiais, – nomenclatura que tem a duplicada vantagem de evitar termos novos e de fazer da análise lógica uma continuação natural da análise gramatical. Qualquer outra terminologia que se adote para a classificação das proposições dependentes levanta discussões entre os professores (...)

Passar daí será para nos embrenharmos no intrincado labirinto das sutilezas da análise. A análise lógica pode ser de muito préstimo, se a praticarmos como aprendizado da estilística, como meio de conhecermos a fundo os recursos da linguagem e de nos familiarizarmos com todas as suas variedades (Fatos da língua portuguesa, 1ª ed., págs. 50 e 51).

Eis aí a grande e larga estrada que percorríamos em nossas classes, partindo da análise sintática para a construção com sentido do parágrafo, e daí para a construção de um texto integral. É o caminho magistralmente percorrido por Othon no livro Comunicação em Prosa Moderna, alicerçado na exposição didática dos manuais de língua inglesa e francesa sobre o conhecimento da estrutura gramatical do idioma, a variedade dos recursos expressivos da estilística (ainda não no sentido restrito da estilística de Charles Bally) e na fundamentação da arte de pensar e dizer.

Eis o grande patrimônio de herança que nos legou Othon Moacyr Garcia, exemplo de homem e de companheiro de profissão, que dignificou a família e que agora, a 1° de junho de 2002, às vésperas de completar noventa anos bem vividos, deixa órfãos também seus numerosos discípulos e amigos.


 

[1] Transcrito da revista Confluência, n° 32 – 2° semestre de 2006. Rio de Janeiro, 2007, p. 35-37.