Tornar lógico o absurdo
o desmascaramento das certezas
Gabriel Cid de Garcia
gcidgarcia@gmail.com
António Mora, o heterônimo louco e filósofo de Fernando Pessoa, afirma que a tradição do pensamento filosófico ocidental incorreu em dois grandes erros: a atribuição à matéria de qualidades do nosso espírito e a atribuição ao espírito de qualidades que cabem aos sujeitos particulares, aos psiquismos e corpos singulares. Constatando este caráter antropomórfico da filosofia, Mora nos permite ensaiar aproximações que colocam em questão os limites entre o filosófico e o literário, quando busca enfatizar as sensações que haviam sido ofuscadas, em nome da razão, na história do pensamento. Estabelecendo a relação das sensações com o pensamento, Mora teoriza implicitamente sobre a heteronímia pessoana, alçando-a a uma dimensão impessoal do sujeito, uma forma de relação diferencial com a enunciação, onde diversas vozes enfatizariam a impessoalidade de fundo que lhes é constitutiva. Operando o desmascaramento das certezas e pretensões da razão por meio da profusão incessante de máscaras, os escritos de Pessoa/Mora se apresentam como lugares de contestação da verdade, da significação e da enunciação, privilegiando elementos que autorizam o pensamento a afirmar a criação de sentidos plurais, dado o campo virtual aberto do não-sentido, do aparentemente absurdo. Este trabalho busca pensar, em ressonância com o pensamento de Nietzsche, Foucault e Deleuze, esta característica afirmativa da linguagem que, associada a elementos sofísticos voltados ao discurso, não almeja significar ou referir-se a algo que reuniria sentidos identificáveis, mas sim justapor pontos de vista, visões de mundo, sem a remissão a algum significado balizador. Não é à toa que Mora pensa ser possível considerar os sistemas filosóficos como obras de arte, assim como as correntes literárias como metafísicas próprias, destituindo a metafísica de seu sentido canônico para defini-la como um modo de sentir as coisas.